sábado, 25 de fevereiro de 2023

São Cristóvão pela Europa (208).

 

 

Madrid, como muitas outras cidades europeias, contribui largamente para a iconografia do nosso Santo. Mas há sempre a possibilidade de encontrar mais imagens.

O museu Lázaro Galdiano é pouco conhecido. Situado na Calle Serrano foi instituído por José Lázaro Galdiano (1862-1947), editor literário e homem de finanças, casado com rica herdeira argentina. Coleccionador compulsivo, reuniu um acervo de enorme qualidade no domínio da pintura e das artes decorativas em geral.

 


 

O Museu possui um óleo muito interessante do primeiro quartel do Século XVI de autor anónimo, representando Cristóvão Colombo vestido com o hábito de Almirante sobre a armadura, o nosso Santo e a Virgem Maria. Ao fundo, a Catedral de Santo Domingo, a primeira cidade cristã da América. É Intitulado A Virgem de Cristóvão Colombo

 


Perto de Barajas, que dá nome ao Aeroporto Internacional de Madrid, ergue-se a cidade de Pegaso, construída para alojar os trabalhadores da fábrica espanhola de automóveis, camiões e autocarros que existiu entre 1946 e 1990 data em que foi adquirida pela italiana IVECO. A Igreja paroquial é dedicada a São Cristóvão.

No seu interior uma estátua de madeira de grandes dimensões:




 

No exterior, um cruzeiro datado de 2010, contendo a imagem de São Cristóvão:

 







                                                            Fotografias de 19 de Fevereiro de 2023

 

                                                                                                José Liberato

Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos, com o desnorte na alma.



 

Guardo num bloco um registo de certas frases que me parecem merecedoras de alguma visita, com ou sem propósito de estado de alma, esta devo-a Chico Buarque, meu músico e escritor de eleição: “Solidão não é o vazio da gente ao nosso lado… isto é circunstância. Solidão é muito mais do que isto. Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.” Ocorreu-me este aforismo a propósito do belíssimo ensaio de Ana Margarida de Carvalho intitulado Viver Só, Portugueses esmagadoramente sós, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023. É talvez porque há uma certa parentela entre viver só e sentir solidão. Não é obrigatório, viver só pode ser opção, contingência dolorosa, o resultado de um exilio, de uma separação, de um estado de abandono; enquanto a solidão é uma dor, uma apoquentação em permanência, os líderes políticos, financeiros, militares ou religiosos sentem-na na pele, é por vezes na mais completa das solidões que se tomam medidas de peso para a vida de muitos outros, cabendo-lhes o ónus total dessas decisões, não podem ser partilhadas em termos de responsabilidade.

Esta autora, uma magnífica revelação na escrita, estruturou de forma aliciante a trajetória do ensaio. Temos cada vez mais idosos, ninguém desconhece tal realidade, cerca de meio milhão de idosos sós, vai dentro da tendência europeia, mas parece que queremos tomar a dianteira. E dá-nos elementos factuais dignos de ponderação: o envelhecimento populacional, a litoralização do país, o aumento da esperança de vida, a drástica diminuição da natalidade, o facto de existirem, hoje, mais divórcios e muito menos casamentos – esta gama de fatores conflui para um conjunto recorde de mono-agregados. E não se esquece de elencar quem vive só: por vocação, autónomos por predisposição, celibatários por aptidão, isolados por circunstâncias, infortúnios vários, entre os perenes até aos transitórios. E dedica o seu ensaio às 1.027.924 pessoas que vivem só em Portugal.

Quando procuro estudar a realidade do envelhecimento e os quadros de vida solitária, procuro reter um dado influente nas sociedades de países mais desenvolvidos que é o hiperindividualismo que leva à quebra de laços, às responsabilidades de vida em comum a favor de relações impessoais, pragmáticas ou assentes em redes sociais. E bem elenca a autora os matizes da solidão, porque não há solidão, há solidões, não esquecendo mesmo obras literárias relevantes centradas em contextos de solidão, um desses expoentes foi José Saramago que compôs uma galeria de personagens solitárias, pega mesmo nessa obra-prima que é O Ano da Morte de Ricardo Reis onde há uma expressiva definição: “a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio de uma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz”.

Também nos esclarece que pode haver uma larga distância entre estar só e estar sozinho. A generalidade das pessoas temem a solidão, recordem-se das manifestações durante o período mais aceso da pandemia da covid e as formas bem imaginosas como todos nós procurámos estender as mãos, desde as salas de música que ofereceram récitas e concertos gratuitos, canais televisivos que puseram à disposição do público programas que tinham tido êxito no passado, espetáculos engenhosamente preparados com cada um dos artistas em sua casa, não faltou bailado e cantores na rua para fustigar a solidão. E depois há a informação médica que é devastadora para quem vive em solidão, contraem-se mais doenças, pode crescer até a propensão para o suicídio. E os investigadores questionam o que verdadeiramente está por detrás desta era de comunicação e em que os laços humanos, paradoxalmente, se desgastam ou puramente se ignoram. E não podemos igualmente esquecer que há vidas em que a solidão parece satisfatória e até necessária.

Chegou a hora de pôr protagonistas em pleno palco, vozes isoladas mas também iremos conhecer o SOS Voz Amiga, uma linha preventiva e de apoio em que os voluntários apenas lidam com solidão, angústia, tristeza; iremos conhecer a aldeia das mulheres sozinhas, mais propiamente A Aldeia das Mulheres Divorciadas, é bom ver estes testemunhos para entender como o nosso mundo é versátil e a gente à procura de estacionar em locais onde se sinta bem, onde campeie a amizade.

Mas não é possível ignorar as plataformas de encontros, o Tinder é o mais famoso veículo em Portugal, ouvem-se testemunhos, conhecem-se sonhos e ilusões. Fica-se com a ideia que Ana Margarida de Carvalho abriu em toda a sua extensão a angular sobre o conhecimento de quem vive só, como se confronta com a solidão e como se buscam novas partilhas, colhe mesmo o testemunho da vida de faroleiro, acabamos por descobrir que é a profissão que é tudo menos solidão e contemplação, há muitíssimo para fazer e seguramente que não é por acaso que é profissão que passa de pais para filhos, talvez por se ganhar um sentido de devoção e respeito pelo mar, por se aprender a desenvolver a imaginação, o mar torna-se incansável. Alguém que viveu no farol do Cabo Carvoeiro não se inibe em dizer que ainda tem memórias de ver e ouvir a maresia bater nos vidros do quarto em dias de tempestade, ainda recorda o som do ritmo cadenciado do rebentar das ondas deitado numa praia em dias da acalmia, concluindo: “No fundo, a solidão nunca passou por mim. Provavelmente esteve lá. Mas nunca a senti. Ou, por outras palavras, fez-me sempre boa companhia.”

E há quem se envolva em projetos, caso da Associação Salvador (a sua missão é promover a inclusão de pessoas com deficiência motora na sociedade e melhorar a sua qualidade de vida); fala-se no projeto Conversas Com Alma, da Associação Salvador, e ouvimos o depoimento de um tetraplégico, afinal há casos felizes, dois portadores de deficiência superaram preconceitos.

É um belíssimo ensaio sobre o quanto viver sozinho é diferente de se sentir sozinho. “A experiência de solidão é tão individual e privada que se torna quase indefinível. Como se poderá ler relatos de vidas solitárias aqui expostas, viver só pode ser um privilégio, uma questão de liberdade irrenunciável ou uma dor profunda irreversível. A solidão pode ser desde sempre ou para sempre.”

De leitura obrigatória.

  

                                                                                            Mário Beja Santos


domingo, 19 de fevereiro de 2023

Porque era ele, porque era eu.

 




 

1 – Este blogue chama-se Malomil porque, há alguns anos, eu e o João Pedro George (JPG) assim o baptizámos. Passávamos os dois, já noite alta, pela Mouraria, Rua do Benformoso, quando ali tropeçámos no reclame luminoso de um distinto estabelecimento de quinquilharias, propriedade do não menos distinto e porventura já saudoso Manuel Alonso Misa. Assim ficou este nome Malomil: copiado, apropriado, descaradamente plagiado – e ainda hoje são muitos os que me enviam fotos da montra do Malomil, Lda., julgando tratar-se de feliz e fortuita coincidência…

 

2 – No tempo áureo dos blogues, mais sadio e interessante do que este agora do “Face” e das redes, o Malomil era um projecto pensado e criado a dois, ou mesmo três, já que o Diogo Ramada Curto também tencionava juntar-se ao grupo, na veste ou traveste de Padre Lagosta, seu herói da pluma. Como em várias outras ocasiões (por ex., na escrita do livro Da Direita à Esquerda, em que a ele competia ter feito um Da Esquerda à Direita), JPG deixou-me na mão e sozinho, mas não menos seu amigo, que o sou deveras e muito – e há muitos e muitos anos. Daí o título deste escrito, que plagiei de Montaigne, sem citar edição e página.

 

3 – Está feita a declaração de amizade, que não de interesses, porque o JPG  não os tem, sendo essa, aliás, uma das suas principais qualidades: em tudo quanto  opina e escreve, jamais o vi movido por intenções escondidas ou propósitos obscuros de servir a Abel ou Bento, de maldizer Sicrano em benefício de Beltrano. Quem age como ele, no métier e no estilo, na implacável ética dos que aspiram a malditos, não faz “amizades” nem “pontes”, dessas que dão lugares e empregos, cátedras na academia, presença assídua nos media, almocinhos e jantares. E isto tem de ser dito, precisa mesmo de ser dito: em JPG, tudo leva e come em igual medida, num salutar exercício de cacetada ecuménica, lapidarmente democrática, que nem os amigos poupa. Há nisso muita coragem, talvez loucura, mas há nisso também, goste-se ou não, uma independência de carácter e uma transparência de intenções que não são raras – são únicas, absolutamente únicas, num meio paroquial feito de cunhas, vaidades, invejas e muitas capelas. E não deixa de ser curioso, caricato até, observar os que ontem se compraziam com as suas impetuosas críticas, louvando-lhe o génio e o arrojo, calarem-se quando lhes toca e magoa (e em surdina almejarem-lhe a desgraça e queda). Quer dizer, sejamos honestos, sobretudo com nós próprios: quem flagele JPG, no modo como ele se posiciona e opina, não pode depois dizer que a sua voz, mesmo que excessiva e por vezes abusiva, é “necessária” e “saudável”, “imprescindível”, a bem do asseio do nosso meio cultural e literário.

 

4 – Acumulada durante anos de raiva e ranger de dentes, a vingança contra JPG serviu-se agora, mais morna do que fria, sob a forma de um artigo no Expresso a propósito da sua biografia de Pessoa, O Super-Camões.

Sobre esse inacreditável e miserável texto, assinado pela jornalista Luciana Leiderfarb, há que dizer sem rodeios que:

 

a) –  é mentiroso, descaradamente falso e inverídico, pois afirma, e cito, que, na obra de JPG, “a biografia de Zenith apenas consta, genericamente, da bibliografia listada no fim do livro, e só na versão portuguesa” (sic). Ora, logo na página 20 do livro de JPG a bio de Zenith é citada, como, de resto, também nas páginas 406 ou 880. Aliás, os trabalhos de Richard Zenith são citados mais de 30 vezes – 30 vezes! – na biografia de João Pedro George. A par disso, Luciana Leiderfarb trunca e deturpa as respostas que JPG lhe enviou: este considerou “ridícula” uma afirmação de Cavalcanti, baseada em Botto (ver aqui); Luciana corta e amputa, para fazer parecer que JPG considera “ridícula” a discussão sobre a sexualidade de Pessoa e todos os seus protagonistas, o que é falso e abusivo, eticamente abjecto;

 

          b) – é canalha, pois que a sua autora (e autora de uma reportagem há pouco alvejada por JPG, mandando a ética que os leitores o saibam), pretende figurar como uma neutra e imparcial “comparação” entre dois livros aquilo que é, do princípio ao fim, uma mal disfarçada tentativa de assassinato de carácter, sabendo-se de antemão que lamas como esta são indeléveis e irreversíveis, colando-se aos visados como uma segunda pele ou como o fumus da eterna dúvida, que de futuro será recorrentemente lembrada.   

Diz Luciana que “o Expresso falou com ambos”, mas um deles, Richard Zenith, é apresentado como “especialista na obra e no espólio pessoanos há três décadas”, que “trabalhara 12 anos no volume de mais de mil páginas, que veio actualizar e ampliar as abordagens do género anteriormente feitas e acabou sendo finalista do Prémio Pultizer”, enquanto o outro, JPG, autor de diversas biografias, com obra mais extensa e variada do que a de Zenith, surge descrito, sem mais, como “crítico literário e sociólogo”. De um lado, um colosso; do outro, um gaiato. Bastaria isso, não mais do que isso, para desqualificar o artigo com que Leiderfarb analisa os dois livros e com que o Expresso, até com chamada de 1ª página, pretendeu fazer passar por “reportagem” aquilo que é, no fundo, o artigo de opinião que Richard Zenith não teve a lisura nem a coragem de ousar escrever. Fazê-lo implicaria descer do pedestal em que pretende situar-se, rebaixar-se ao nível de JPG, cujo livro, todavia, esmiuçou ao milímetro. Depois, foi fácil arranjar uma jornalista que lhe fizesse o serviço e um jornal que o patrocinasse, na mira do escândalo e das vendas. O descaro é tal que a própria Leiderfarb confessa, e cito, que “só um pessoano munido de uma lupa” poderia detectar os erros de JPG, reconhecendo, no fundo, que se limitou a ser um alter ego ou heterónimo de Richard Zenith. Para disfarçar a coisa, e como compete, lá está a frase “quando o Expresso abordou Richard Zenith…”, como se não tivesse sido ele a engendrar a marosca, do princípio ao fim, e a produzir o essencial do texto da jornalista-ventríloqua.

Diz Luciana que, no seu artigo, se confrontam as duas obras, mas isso é mentira, uma falsidade abjecta: o livro de JPG é sempre colocado ao lado, ou em baixo, do de Richard Zenith, mas este não sofre uma só crítica, uma beliscadura sequer, jamais sendo escrutinado nas suas virtudes e defeitos, que também os tem, seja nas propostas interpretativas que faz, alvo de controvérsia, seja nas fontes em que se apoia e não cita (v.g., os “ensaios luminosos” de Robert Bréchon), seja nos erros que naturalmente comete, e que Luciana obviamente papa (ex., dizer que Pessoa não tinha telefone em casa, o que a sobrinha do poeta desmente), próprios de qualquer empresa humana, decerto, mas menos desculpáveis num especialista de três décadas na vida e obra de Pessoa, sobre a qual escreveu – e nada custa reconhecê-lo – uma biografia notável, que por muitos e muitos  anos ficará como referência dos que se interessarem pelo autor de Mensagem.  

  

c) – o artigo é também cobarde e desonesto, porque insinua o plágio, não o dizendo, ou seja, sem ter a coragem de proclamar a fraude, tão-somente sugerida – no fundo, sem ter a coragem que JPG indiscutivelmente teria e aliás já teve em ocasiões várias, algumas das quais lhe valeram o chamamento à justiça, entre mil outros dissabores e dores.

Luciana fala de “semelhanças flagrantes”, mas o que encontra é, pasme-se, a afirmação de que, lá na ponta da África meridional, ao Cabo Agulhas, começa o Índico e termina o Atlântico. Segundo ela, portanto, tendo Zenith escrito que “Cabo Agulhas, onde oficialmente o Atlântico acaba e o Índico começa”, George teria a obrigação de citar a fonte, pois teve o desplante de afirmar que o dito do Cabo Agulhas é “onde o Atlântico termina e o Índico começa”. Eu nunca estive no Cabo Agulhas para dizer se sobre ele se poderia dizer algo mais do que esta obviedade geográfica, que Zenith aliás chupou, ipsis verbis, de uma obra sobre… submarinos no Índico. Quer-me parecer, no entanto, que, pelo exigentíssimo critério de Leiderfarb, que impõe citação e nota até para banalidades de Wikipédia, muito pouco se aproveitaria do que é escrito nos nossos jornais e nas nossas academias.

Por exemplo: há dias, publiquei no Expresso, versão online, o obituário da Rachel Welch; como nunca tive a dita de a conhecer pessoalmente, com grande pena, baseei-me na Wikipédia, no The New York Times, no que disseram sobre ela os jornais portugueses e estrangeiros, num ou outro link ou site. Possivelmente, provavelmente, e como em todos os textos que vou publicando no Diário de Notícias, no Público, na Mensagem de Lisboa, na LER, na Almanaque, etc., usei expressões alheias, frases de outros autores e contextos, talvez na íntegra, mas não os citei (com pena: quem me conhece sabe que sobrecarrego os meus textos com escusadas notas e referências). Pelo crivo de Leiderfarb, serei um plagiador e dos reles, sobrando-me tão-só o consolo de, nessa minha desventura, merecer a companhia de muitos, quase todos. Na última edição do Expresso, um belo artigo sobre Sá Carneiro chamava-lhe, em título, “um meteoro na política”, faltando portanto dizer que, em 1992, José Freire Antunes publicara uma bio de Sá Carneiro intitulada “um meteoro nos anos setenta”. E já que falamos dos astros, o Expresso/Blitz apelidou António Variações de “cometa”, expressão já usada, anos antes, no Diário de Notícias (“passou como um cometa pelo panorama pop/rock”) e, depois, no Público (“o cometa que iluminou a música portuguesa”) e na publicidade de uma sua biografia (“foi fugaz como um cometa”).

Por este novel critério do Cabo Agulhas, seriam de facto poucos, quase nenhuns, a bordejarem o Cabo, cabendo também dizer-se que a própria Luciana Leiderfarb, tão exigente, é igualmente dada à paráfrase e ao pastiche, já que ainda há dias descreveu o apartamento nova-iorquino de Norman Mailer e a sua “vista monumental sobre a baixa de Manhattan” na esteira da “panoramic view of lower Manhattan”, de um artigo na Paris Review, que cita, sem que isso a redima daquilo que a própria designa, a propósito de JPG, de “semelhança flagrante”. Como é evidente, nem Zenith nem JPG estiveram no Cabo Agulhas, nem Luciana era visita de casa de Mailer em Nova Iorque: baseiam-se todos no que outros viram e disseram por eles, e muito bem. Lembrai-vos, irmãos, da velha máxima, vinda de tempos bíblicos: quem copia um, é plagiador; quem copia vários, é investigador.  

          Além do Cabo Agulhas, notou Zenith, ou Luciana por ele, que existem “semelhanças flagrantes” com a descrição feita de um encontro, num “americano”, entre o padrasto e a mãe de Pessoa. A notícia desse encontro fora dada há muitos anos, em 1951, por Eduardo Freitas da Costa, no livro Fernando Pessoa – Notas para uma biografia romanceada. As versões de Zenith e de JPG são bastante diferentes, como se pode ver aqui, mas, sem sequer ter falado com o JPG, admito perfeitamente que ele se tenha inspirado e baseado num trecho da biografia feita pelo americano-luso, adaptando-o, remodelando-o profundamente.

O ponto, esse sim assaz curioso, é que a própria descrição de Zenith é inteiramente inventada, efabulada, ou, como diz Luciana Leiderfarb, “o autor [Zenith] esclarece que encenou o episódio”. Quer dizer, a sua obra é uma biografia romanceada, com pedaços recriados? Além deste episódio, que outras liberdades criativas se permitiu o maroto? No seu volume de 1200 páginas, obra de summo rigore factual (pelos vistos, não…), onde termina a realidade e começa a ficção? Teriam os leitores do seu livro – e, já agora, os leitores do Expresso – o direito de saber onde se situa, afinal, o Cabo Agulhas da verdade e ficção, pois havendo este episódio “encenado”, que outros não haverá? Esse teria sido o serviço que o Expresso bem poderia ter prestado a quem o compra: confrontar, na substância, as interpretações de Pessoa feitas numa e noutra das obras (até porque são divergentes, sobretudo no que à sexualidade do poeta diz respeito), coisa que, como é evidente, Zenith não gostaria, pois isso implicaria situar-se em plano de igualdade com JPG, o que é para si impensável (atente-se, no artigo do Expresso, no altivo e condescendente paternalismo, na insuportável sobranceria, com que Zenith trata JPG, acusando-o de o ter copiado e, em simultâneo, de o não ter seguido suficientemente).    

          Por outro lado, e mais decisivamente, JPG jamais escondeu que se inspirou em Zenith, como se inspirou por igual, ou mais, em muitos outros autores. Nas entrevistas que concedeu, fez até questão de louvar a obra de Zenith, faltando acrescentar que seria muito, mas mesmo muito estúpido da parte dele, o “crítico-buldôzer” escrutinado ao milímetro pelos seus (numerosos) inimigos, estar a copiar desbragadamente um livro de que todos falam, ademais acabado de sair. Como o conheço, posso afiançar: JPG é casmurro como um burro, mas burro jamais será (sobretudo a este ponto, tão óbvio e infantil).

 

5 – Quanto aos erros da biografia de JPG, a primeira coisa a dizer é que o meu amigo teve a sorte, a grande sorte, de ter um “pessoano munido de uma lupa” (Luciana dixit) a rever-lhe o texto. Isso é, aliás, outro momento caricato do retrato leiderfarbiano de Zenith, ora elevado às alturas de Prémio Pessoa e finalista do Pulitzer, ora descido às funduras do close reading miudinho. Os erros que detectou são uma bênção para o George, que num livro de 900 páginas, cometeu seis ou sete deslizes, apontados por Zenith: a maioria niquices, como um pormenor sobre onde morava Gandhi ou casas “eduardianas” em Durban. De Pessoa, num livro de 900 páginas, há três, quatro lapsos, caricatos e menores, prova de que a obra, afinal, passou com distinção no mais exigente dos crivos, o da lupa de Richard Zenith. Quanto aos erros deste último, como dizer que Pessoa não tinha telefone em casa (essencial para compreender o relacionamento com Ofélia), passam incólumes e em claro, pois o artigo de Luciana Leiderfarb é um inquisitório a George, desleal e parcial, não uma comparação honesta. Mais caricato ainda, JPG já assumiu outros erros, também menores decerto, mas nenhum deles topado na implacável lupa de Zenith, pelos vistos murcha e bem fraca.

Resta a questão das falsas cartas de Pessoa a Sá Carneiro, merecedora de chamada de atenção na 1ª página do Expresso, a mesma com que, há meses, se noticiou que Pedro da Silveira era informador da PIDE, a prova provada de que só Deus está livre do erro, o que importa é reconhecê-lo de forma aberta e honesta (como o Expresso fez, e muito bem, à semelhança do que fez há anos, quando Nicolau Santos admitiu ter sido “embarretado” pelo saudoso embusteiro Artur Baptista da Silva, para não falar, por mais antigos, dos plágios de Miguel Veiga, esses sim verdadeiros e comprovados em tribunal). A este propósito, JPG já admitiu o erro de ter citado como verdadeiras três cartas pessoanas constantes da Internet, num exercício literário de Pedro Eiras, que decidiu publicar lado a lado cartas verdadeiras, outras imaginárias. Antes de JPG, outros haviam cometido o mesmo lapso, como um “crítico de um jornal” referido por Eiras, cabendo agora aos leitores de Super-Camões (e muitos são eles, o livro vai a caminho dos dois milhares de exemplares and counting) dizerem se isso mancha e compromete em definitivo um livro que, à uma, não foi escrito por um especialista, nem com pretensões a sê-lo; e, à outra, que se baseia num monumental volume de informações, das quais, pelos vistos, só uma meia-dúzia estarão erradas.    

 

6 – É inútil perguntarmo-nos sobre que diria Pessoa de tudo isto, já que ele nunca e jamais imaginaria a projecção mundial que conquistou nas últimas décadas, convertendo-se numa “marca” de valor universal e de consumo urbi et orbi. A milhas de distância de Saramago ou Lobo Antunes, Fernando Pessoa é o único autor português que permite alcançar fama e crédito internacionais, razão que explica que sobre ele e a sua obra se precipitem, e em parte bem, tantos académicos e estudiosos vindos do estrangeiro. É também isso que explica as eternas polémicas e quezílias pessoanas, com o poeta, coitado, convertido em ninho de vespas ou saco de lacraus, como é isso que explica que muitos se acotovelem para comprar o que de Pessoa resta, sejam as cartas ou a arca mítica, pois a posse dos seus bens garante, ipso facto, uma legitimidade acrescida na hora de falar dele. A remuneração é alta, pode ir até ao Pulitzer, o que explica a ferocidade do mercado e o empenho implacável em esmagar à nascença todos os potenciais focos de concorrência (como há anos sucedeu ao historiador Orlando Figes, que, sob pseudónimo, escrevia recensões na Amazon a denegrir o trabalho dos colegas). Só alguém obcecado com isso, como Zenith, pode cometer a deselegância atroz de menorizar a obra de Robert Bréchon, já falecido, com o qual diz ter aprendido muito, mas dizendo que ela “não se preocupou em descobrir informações sobre Pessoa, mas sim em mapear a sua vasta obra literária”. Na verdade, só a sofreguidão em possuir Pessoa, pondo-o a render, e sem largar a bola, pode explicar que alguém com o estatuto de Richard Zenith se ponha a esmiuçar à lupa uma biografia popular, destinada ao grande público, que do ponto de vista da profundidade não tem, e jamais teve, pretensões de ombrear com a sua. Que o Expresso se disponha, neste texto, a defender-lhe os interesses (até comerciais!), fazendo-o de uma forma tão canhestra e abusiva, tão moralmente corrupta, é algo que impressiona e confrange. Mas que demonstra que a acção crítica de João Pedro George, mesmo que controversa e polémica (e da qual tantas vezes discordei e lho disse), é urgente e necessária. Que honra ser seu amigo.

 

                                                                                     António Araújo   

 

P.S. – e não, este não é o habitual texto em socorro de um amigo em apuros, pois várias vezes esteve JPG debaixo de fogo e, em muitas delas, não ergui um dedo sequer em sua defesa. Porquê? Porque achei que ele não tinha razão, ou não tinha toda a razão. Aqui, estou tranquilo e sereno: JPG tem toda, mas toda, a razão consigo. E a verdade também.    















sábado, 18 de fevereiro de 2023

Resposta a Zenith (e ao Expresso) - 2


 





Tendo obtido entretanto a versão portuguesa da biografia de Richard Zenith, deixo-vos aqui o confronto das passagens a que a jornalista do Expresso chama "semelhanças flagrantes", para que possam fazer um juízo cabal sobre as mesmas. Quanto aos motivos não-declarados que estiveram na base do artigo da revista do Expresso, ficam para ocasião mais propícia.

 

1.

 

Richard Zenith (pp. 65-66): "Nesse mesmo mês de Janeiro, num dia em que andava nos seus afazeres, subiu para um dos 'americanos' que cruzavam Lisboa. Dava-se-lhes este nome porque eram importados dos EUA: veículos sobre carris abertos, puxados por cavalos, que eram mais velozes e mais suaves do que carruagens que circulavam nas calçadas irregulares. (Os veículos motorizados, também importados da América, não começaram a circular senão em 1901.) Sentada num dos bancos de madeira do carro, Maria Madalena observava as fachadas das lojas e os grupos variados de transeuntes passarem devagar. Os estratos sociais elegantes – cujas luvas e chapéus da moda, incluindo as penas para as senhoras, eram indício de estatuto social – misturavam-se livremente nas ruas com os pobres vestidos com roupas simples e por vezes descalços. A dado momento, Maria Madalena apercebeu-se de que um homem sentado à frente dela a olhava, e não era com total discrição: queria que ela percebesse que estava a ser observada. Maria Madalena lançou-lhe um olhar fugaz, desviou os olhos, depois voltou a olhar para ele. Tinha uma testa alta e faces cheias, uma tez rosada, olhos azuis e um bigode à inglesa, com suíças compridas de ambos os lados. Deve ter feito um comentário fortuito, para meter conversa, e logo revelou ser comandante de um navio que tinha percorrido o mundo ao serviço da marinha portuguesa. Como era diferente do falecido marido! Ela deve ter-lhe explicado a razão de estar vestida de preto, e ele ter-lhe-á apresentado os habituais sentimentos. Gostou da sonoridade da voz dele e dos modos delicados mas confiantes. Chamava-se João Miguel Rosa. Concordou em voltar a encontrar-se com ele, provavelmente no mesmo transporte público – um expediente que Fernando Pessoa também haveria de usar, muitos anos depois, para se encontrar com uma jovem.

As regras de decoro desses tempos não permitiam que as mulheres se encontrassem sozinhas com homens, e Maria Madalena era uma viúva ainda no período de luto, facto que tornava tudo ainda mais complicado. O problema não se resumia a saber como a sociedade a julgaria mas também como ele, seu inesperado pretendente, interpretaria cada movimento dela. De acordo com um velho estereótipo, era suposto que as viúvas fossem sexualmente rapaces e capazes de dominar qualquer homem desprevenido. Por isso, tanto ela como o comandante avançaram devagar, mas a atracção era magnética, pelo que não demorou muito a declararem-se um ao outro. O novo amor de Maria era muitas coisas que o primeiro marido não era: tinha quase a mesma idade que ela (era quatro anos mais velho, em vez de onze), forte e robusto, extrovertido, jovial e sereno".

 

João Pedro George (pp. 38-39): "Em Janeiro de 1894, duas ou três semanas depois de Jorge ter sido transportado para o cemitério dentro do seu minúsculo caixão, a mãe de Pessoa conheceu um capitão da Marinha de Guerra, de nome completo João Miguel dos Santos Rosa. Nascido em Lisboa em 1857, João Miguel Rosa estava na Marinha Portuguesa desde os 14 anos e já viajara por todo mundo, em comissões de serviço que o tinham levado a Macau, Angola, Guiné-Bissau, América do Sul, etc. As fotografias do futuro padrasto de Pessoa dão a entender que seria um homem imponente e entroncado, com um rosto quadrado, onde sobressaía o bigode de pontas eriçadas, como o de Guilherme II (o último imperador alemão e Rei da Prússia, que começara o seu reinado no ano em que nasceu Fernando Pessoa, em 1888, e teria de abdicar no final da I Grande Guerra, em 1918), e mãos grandes, de dedos compridos e grossos, que inspiravam confiança.

Maria Madalena conheceu este cavalheiro distinto numa viagem de carro americano (ou apenas americano), o nome com que em Lisboa, na segunda metade do século XIX, era conhecido o meio de transporte colectivo, movido por tracção animal sobre carris, que levava os passageiros de um ponto da cidade a outro (o americano seria substituído, no século XX, pelo eléctrico).

Começou por reparar no cavalheiro que, sentado mesmo em frente, olhava para ela, viu que os olhos dele a seguiam e se mantinham, por vezes, fixos nela. Durante alguns minutos, estabeleceu-se a dialéctica entre o homem que espia e a mulher que exibe. Provavelmente, João Rosa queria que aquela mulher bonita e elegante como uma escultura de Rodin percebesse que estava a ser observada. 'Quantos dias da minha vida daria para possuir aquela mulher', seria talvez uma das suas fantasiosas elaborações.

A escassos centímetros da sua perplexidade, Maria Madalena mudava de posição na cadeira (sinal de que não pôde evitar certa perturbação em face daquele olhar masculino), tentando dar a impressão de ser uma mulher orgulhosa, completamente auto-suficiente no seu mundo interior – o chapéu que levava na cabeça abrigava toda a mágoa de uma alma já muito experimentada pelo sofrimento –, e terá intuído aquilo em que ele estava a pensar, inferindo o seu estado de ânimo e intenções. De repente, sentiu-se de novo a ganhar vida e importância, sentiu-se uma mulher apetecida, desejada pelo desejo de outro, o que lhe terá causado uma satisfação evidente.

Gozador dos efeitos que as palavras gentis (e os seus olhos azuis) produziam nas mulheres que queria conquistar, João Rosa entabulou conversa com Maria Madalena, a qual sentiu, de imediato, o rubor subindo-lhe pelas maçãs do rosto.

Ele disse-lhe que era capitão de um navio — o Liberal, assim se chamava a embarcação onde trabalhava, pertencente à frota portuguesa da África Oriental — que atracara em Lisboa em 24 de Dezembro de 1893, vindo de Moçambique, para os tripulantes gozarem um ano de férias na metrópole. Ela, deixando-se cativar, explicou-lhe vagarosamente que era viúva e estava de luto, por isso trajava de negro. No final, combinaram que voltariam a encontrar-se.

Ao contrário do intelectual Joaquim Seabra Pessoa, seu falecido marido, João Rosa era forte, extrovertido e jovial, um macho possante e robusto, com aquelas cores de romã que são sinal de saúde."

 

NOTA: A informação de que Maria Madalena, mãe de Fernando Pessoa, terá conhecido João Miguel Rosa, o futuro padrasto do poeta e futuro cônsul em Durban, num "americano", foi posta a circular por Eduardo Freitas da Costa em Fernando Pessoa. Notas a uma biografia romanceada, Guimarães, 1951.

 

2.

 

Richard Zenith (p. 378): "Pessoa não era pedante, como alguns dos frequentadores habituais de cafés que denegria nos seus textos, mas era pedagógico, como os projectos de revistas de 1911 demonstram. Queria ensinar aos políticos como se deviam comportar, aos intelectuais o que pensar e aos portugueses em geral por que razão era importante ser patriota. E enquanto jovem também aspirou a ser um moralista sexual – por razões que levantam suspeitas. Por um lado, Jean Seul teria demasiado comprazimento na narração das práticas sexuais bizarras que as suas sátiras condenam ostensivamente. Por outro, a castidade atormentada de personagens como Marcos Alves e o Duque de Parma, para os quais o simples pensamento de uma vagina causa pânico, leva a que nos questionemos sobre se Pessoa estava a usar a sua campanha moral para evitar enfrentar, na sua própria vida, o sexo e a sexualidade. No entanto, praticamente todas as empresas intelectuais de Pessoa, incluindo as actividades pedagógicas, eram parcialmente empreendidas pelo seu valor de entretenimento".

 

João Pedro George (pp. 209-210): "Marcos Alves, por sua vez, descreve os sentimentos e opiniões de uma pobre alma possuída pela 'agoniada tristeza de não ter feito nada´. Romance 'sobre o que sentiria o Marcos Alves' (como revelou Pessoa num dos seus textos), é um 'cavaqueador brilhante', 'triunfador das atenções', com 'reputação de blagueur, de artista', além de virgem e de sentir um medo patológico de mulheres, entrando em pânico só de imaginar uma vagina à sua frente.

Numa das chamadas Cartas de Marcos Alves, é o próprio quem nos diz que '(...) Levei a vida toda a sentir-me inadaptado mesmo às suas coisas mais altas e [a] adaptar-me a todas, mesmo, às mais reles. (...)'

Mas os dois grandes projectos da empresa Íbis talvez fossem os dois seguintes jornais antimonárquicos e anticlericais, com periodicidade quinzenal: O Iconoclasta e O Fósforo. A intenção destas duas publicações militantes era informar e esclarecer os militantes republicanos, contribuindo, ao mesmo tempo, para "provocar uma revolução aqui" (para Pessoa, toda a ordem estabelecida é incapaz de perdurar se algo ou alguém, paradoxalmente, a não vem perturbar)."

 

3.

 

Richard Zenith (p. 381): "Por outro lado, o dinheiro ganho em Inglaterra poderia ajudar a pagar algumas dívidas e fugir talvez não fosse má ideia. Em Novembro de 1911, depois de elaborar uma lista actualizada de dívidas antigas e novas despesas num caderno, rabiscou em grandes letras, em inglês: 'Cortar e fugir para clarificar a vida intelectual! Dezembro para reconstruir a vida'.

Que melhor lugar para fugir poderia haver do que Londres? Teria sido a realização de um sonho maravilhoso, que Pessoa continuaria acalentar durante pelo menos mais vinte anos, mas o pensamento de ir realmente para um lugar novo e encontrar pessoas novas perturbava-o".

 

João Pedro George (p. 264): "Embora respeitante a um período de apenas seis meses de trabalho, a oferta era aliciante por vários motivos. Incluía pagamento da viagem e das despesas em Inglaterra, mas, sobretudo, era a oportunidade, tantas vezes sonhada, de concretizar o seu projecto de, no futuro, ir viver para Inglaterra e transformar-se, quiçá, num poeta inglês. Pessoa conhecia os nomes dos editores, críticos e escritores britânicos que o poderiam ajudar a reconstruir a sua vida literária no país de Shakespeare, e a referência de Warren Kellogg e da Biblioteca, podiam ajudá-lo a abrir essas portas.

Note-se que, num bloco-notas de Novembro de 1911, depois de fazer uma lista com as dívidas ainda por saldar (que incluíam empréstimos de dinheiro pedidos a amigos e conhecidos), Pessoa apontou em maiúsculas e em inglês: 'Cortar e correr para a vida intelectual clara! Dezembro para reconstruir a vida'.

Mas, contra todas as expectativas, e apesar de sentir-se por vezes prostrado por causa das dívidas e de ter pensado, inclusivamente, em largar tudo, vivendo outras aventuras, morando noutras casas, tendo outras profissões, Pessoa recusaria a proposta do editor".

 

NOTA: A citação de Pessoa - "Cortar e correr para a vida intelectual clara! Dezembro para reconstruir a vida'. - está em "Os Objectos de Fernando Pessoa", de Jerónimo Pizarro, António Cardiello e Patricio Ferrari, Publicações Dom Quixote, p. 122.

 

4.

 

Richard Zenith (p. 369): "Numa das cartas semanais para Durban, enviada em Maio de 1911, Pessoa espicaçou a curiosidade da mãe quando lhe disse que precisava de escrever uma longa carta para explicar algumas coisas. Aquilo que precisava de explicar, é claro, era que tinha dissipado a herança e estava atolado em dívidas, mas haveria de protelar essa confissão por mais um ano e meio. No interim, foi enganando os credores com promessas vãs. Continuou a fazer traduções para a Biblioteca Internacional e Obras Célebres, recebendo os maiores louvores do coordenador do projecto multilingue, Warren Kellogg, e tentou – ou pensou tentar – arranjar mais trabalhos com base nas suas competências linguísticas".

 

João Pedro George (pp. 262-263): "O dinheiro obtido com estas e outras traduções serviu para amortizar as dívidas contraídas pela falência da Íbis. Mesmo depois da venda da tipografia, Pessoa continuava cheio de complicações e dificuldades de dinheiro, tinha de fazer pagamentos mensais ao banco pelo empréstimo que pedira depois da extinção da Íbis.

Em Maio de 1911, numa das cartas que escrevia semanalmente à mãe, dava a entender que estava com problemas, que algumas coisas negativas se tinham passado na sua vida, sem nunca revelar exactamente o quê (só um ano e meio depois é que confessaria à mãe que gastara a totalidade da herança da avó Dionísia e que estava crivado de dívidas).

Nesse Verão, deixou o quarto no Largo do Carmo e foi viver com a tia materna Anica (Ana Luísa Nogueira) e com os primos Mário em Maria, em Arroios, na Rua Passos Manuel, no 3.º andar do n.º 24 (ficando os seus livros no escritório do Largo do Carmo, que o primo continuava a alugar). Pouco depois, em 21 de Setembro de 1911, morreria nessa casa, onde também vivia, a tia-avó Maria.

Talvez porque ficara sem a responsabilidade de pagar uma renda — a tia nunca lhe pediu para pagar pelo quarto onde se instalou —, Pessoa foi adiando a necessidade de encontrar outro tipo de trabalho, que lhe permitisse respirar melhor no meio de tantas dívidas".

 

5.

 

Richard Zenith (p. 100): "O navio passou outros promontórios rochosos antes de chegar ao Cabo das Agulhas, lugar mais a sul do continente, onde oficialmente o Atlântico termina e o Índico começa".

 

João Pedro George (p. 53): "Continuando para sul, rodearam o Cabo da Boa Esperança, assim baptizado por Bartolomeu Dias, o primeiro a conseguir contornar (1488) sem incorrer num dos habituais naufrágios, que vitimaram centenas ou mesmo milhares de marinheiros. Mais tarde, em homenagem a este navegador português, Pessoa escreveria na Mensagem (...). Seguiu-se o Cabo Agulhas, onde o Atlântico acaba e o Índico começa, com as suas praias de areia fina, depois Porto Elizabeth e East London".

 

 

João Pedro George

 


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Resposta a Zenith (e ao Expresso).

 



           

           

 

 

Richard Zenith, um "pessoano munido de uma lupa" (reportagem do Expresso de hoje), leu a minha biografia de Fernando Pessoa, O Super-Camões. Durante o tempo que roubou ao sono, dedicado a ler o meu livro, encontrou, segundo se queixou ao Expresso, 11 ou 12 erros factuais. Que Richard Zenith, Prémio Pessoa e finalista do Prémio Pulitzer, só tenha encontrado uma dúzia de "erros factuais" (como chamar Clara Alves Claudino à governanta de Pessoa, de nome Claudina), num livro com quase mil páginas (959), só poderia ser, para mim, motivo de regozijo.

          Mas Zenith não fez só isso. Incomodado porque a minha biografia saiu no mesmo ano que a sua, e talvez vendo o elevado número de exemplares que O Super-Camões já vendeu, foi lamentar-se ao Expresso, que lhe fez o frete.

          Segundo ele, há algumas semelhanças entre a biografia dele e a minha. Percebe-se: desde os tempos da antiga Assírio & Alvim, quando ficou com o monopólio sobre os direitos de publicação da obra de Pessoa, Zenith considera-se detentor de privilégios exclusivos sobre a obra do poeta de O Guardador de Rebanhos.

          Antes de reproduzir o "inquérito" a que o Expresso me submeteu, a autora da reportagem diz a certa altura que "A biografia de Zenith apenas consta, genericamente, da bibliografia listada no fim do livro, e só na versão portuguesa".

          Isto é manifestamente falso. Logo no início do livro, no primeiro capítulo (p. 20, nota de rodapé 9) digo: "Richard Zenith, em Pessoa. Uma Biografia (Lisboa, Quetzal, 2022), não refere esta possibilidade, o que poderá indicar que se trata de um rumor sem fundamento" (referência à informação de que a mãe de Fernando Pessoa teria supostamente beneficiado das lições dos preceptores dos príncipes reais D. Carlos e D. Afonso, filhos do rei D. Luís e da rainha D. Maria Pia).

          De resto, há várias referências aos trabalhos de Zenith ao longo da minha biografia (o nome e os textos de Zenith aparecem citados mais de 30 vezes!).

          Por exemplo, na página 880: "Richard Zenith, em Pessoa. Uma Biografia, fala em 47 heterónimos"; na página 114, explico que "(...) Horace James Faber, o autor das Detective Stories, posteriormente reintituladas Tales of a Reasoner, tendo como personagem principal — ou "raciocinador infalível" — o ex-Sargeant William Byng (muito provavelmente inspirado, segundo Richard Zenith, no protagonista das histórias policiais de Herbert Flowerdew, que tinha esse nome)"; p. 406: "Como afirma Richard Zenith, 'se é certo que Pessoa e Sá-Carneiro realmente gostavam da poesia de Ângelo de Lima, o facto de ser um louco certificado, residente no Manicómio Miguel Bombarda desde 1902, só podia valorizá-lo'".

          Mais um exemplo, na página 612: “Há toda uma discussão em torno do suposto budismo-zen d'O Guardador de Rebanhos, como poderão verificar em Richard Zenith, "Alberto Caeiro as Zen Heteronym”, Portuguese Literary and Cultural Studies, n.º 3, 1999, pp. 101-109; Paulo Borges, "As coisas são coisas? Alberto Caeiro e o Zen", Pessoa Plural, n.º 9, Primavera de 2016, pp. 107-127”.

 

          Vejamos agora as respostas que dei a Luciana Leiderfarb, do Expresso.

 

          Respostas ao “inquérito” do Expresso

 

            1. Como é que chegou à ideia de fazer uma biografia de Fernando Pessoa? Foi um convite da editora ou uma proposta sua?

          R: Foi um convite feito há vários anos por Francisco Camacho, editor do Grupo Leya. Um convite, já agora, para fazer uma "biografia popular", não académica, acessível a todos. Pessoa merece-o.

 

          2. Quanto demorou a escrevê-la, quanto tempo de preparação e recolha o trabalho requereu?

          R: Pouco mais de dois anos.

 

          3. Tendo saído alguns meses após a versão portuguesa da biografia de Richard Zenith, e mais de um ano após a versão inglesa original, como aproveitou esse material? Leu-o? Inspirou-se nele?

          R: Claro que li, mas na versão original, em inglês, como procurei ler o muito que tem sido publicado sobre Fernando Pessoa ao longo de décadas. Ninguém é dono de Pessoa (e Pessoa, já agora, é sempre muito maior do que os seus comentadores e biógrafos).

 

          4. Admite que possa ter sido influenciado pela biografia de Richard Zenith em certas passagens — como a descrição do primeiro encontro de Maria Madalena com João Miguel Rosa?

          R: Estranho seria que não fosse influenciado por tudo o que li, e que cito na bibliografia final. Nem percebo, aliás, porque isola essa passagem, pois basta os leitores compararem o que Zenith escreveu (p. 28, da edição original, em inglês) e o que eu escrevi (pp. 38-39), para verem que são completamente diferentes. E que a minha versão desse encontro é, sem falsa modéstia, muito mais completa e criativa do que a de Zenith.

          As passagens falam por si:

 

Richard Zenith (p. 28): "In that same month of January, while running errands, she boarded one of the open-air, horse-drawn americanos that crisscrossed Lisbon. Imported from the United States, these streetcars traveled faster and more smoothly than carriages pulled over uneven, stone-paved roads. (Motorized streetcars, also imported from America, would not begin circulating until 1901.) Seated on one of the car's wooden benches, Maria Madalena watched the storefronts and motley pedestrians slowly slip past. The genteel classes—whose gloves and stylish hats, including plumes for women, were indicators of social status—mixed freely on the streets with the plainly dressed, occasionally barefoot poor. At a certain point she realized that a man sitting across from her on the americano was watching her, discreetly but not too: he wanted her to notice that she was being noticed. She eyed him quickly, veered her gaze, then eyed him again. He had a broad forehead and full cheeks, a ruddy complexion, blue eyes, and an English-style moustache, with long whiskers pulled to each side. He must have made a casual remark to start a conversation, soon revealing that he was a ship's captain who had sailed all over the world for the Portuguese navy. How unlike her late husband! She no doubt explained why she was dressed in black, and he responded with the usual condolences. She liked the sound of his voice and his polite yet self-confident manners".

 

João Pedro George (pp. 38-39): "Em Janeiro de 1894, duas ou três semanas depois de Jorge ter sido transportado para o cemitério dentro do seu minúsculo caixão, a mãe de Pessoa conheceu um capitão da Marinha de Guerra, de nome completo João Miguel dos Santos Rosa. Nascido em Lisboa em 1857, João Miguel Rosa estava na Marinha Portuguesa desde os 14 anos e já viajara por todo mundo, em comissões de serviço que o tinham levado a Macau, Angola, Guiné-Bissau, América do Sul, etc. As fotografias do futuro padrasto de Pessoa dão a entender que seria um homem imponente e entroncado, com um rosto quadrado, onde sobressaía o bigode de pontas eriçadas, como o de Guilherme II (o último imperador alemão e Rei da Prússia, que começara o seu reinado no ano em que nasceu Fernando Pessoa, em 1888, e teria de abdicar no final da I Grande Guerra, em 1918), e mãos grandes, de dedos compridos e grossos, que inspiravam confiança.

Maria Madalena conheceu este cavalheiro distinto numa viagem de carro americano (ou apenas americano), o nome com que em Lisboa, na segunda metade do século XIX, era conhecido o meio de transporte colectivo, movido por tracção animal sobre carris, que levava os passageiros de um ponto da cidade a outro (o americano seria substituído, no século XX, pelo eléctrico).

Começou por reparar no cavalheiro que, sentado mesmo em frente, olhava para ela, viu que os olhos dele a seguiam e se mantinham, por vezes, fixos nela. Durante alguns minutos, estabeleceu-se a dialéctica entre o homem que espia e a mulher que exibe. Provavelmente, João Rosa queria que aquela mulher bonita e elegante como uma escultura de Rodin percebesse que estava a ser observada. 'Quantos dias da minha vida daria para possuir aquela mulher', seria talvez uma das suas fantasiosas elaborações.

A escassos centímetros da sua perplexidade, Maria Madalena mudava de posição na cadeira (sinal de que não pôde evitar certa perturbação em face daquele olhar masculino), tentando dar a impressão de ser uma mulher orgulhosa, completamente auto-suficiente no seu mundo interior – o chapéu que levava na cabeça abrigava toda a mágoa de uma alma já muito experimentada pelo sofrimento –, e terá intuído aquilo em que ele estava a pensar, inferindo o seu estado de ânimo e intenções. De repente, sentiu-se de novo a ganhar vida e importância, sentiu-se uma mulher apetecida, desejada pelo desejo de outro, o que lhe terá causado uma satisfação evidente.

Gozador dos efeitos que as palavras gentis (e os seus olhos azuis) produziam nas mulheres que queria conquistar, João Rosa entabulou conversa com Maria Madalena, a qual sentiu, de imediato, o rubor subindo-lhe pelas maçãs do rosto.

Ele disse-lhe que era capitão de um navio — o Liberal, assim se chamava a embarcação onde trabalhava, pertencente à frota portuguesa da África Oriental — que atracara em Lisboa em 24 de Dezembro de 1893, vindo de Moçambique, para os tripulantes gozarem um ano de férias na metrópole. Ela, deixando-se cativar, explicou-lhe vagarosamente que era viúva e estava de luto, por isso trajava de negro. No final, combinaram que voltariam a encontrar-se.

Ao contrário do intelectual Joaquim Seabra Pessoa, seu falecido marido, João Rosa era forte, extrovertido e jovial, um macho possante e robusto, com aquelas cores de romã que são sinal de saúde."

 

          5. Admite que o modo como aborda certas passagens é semelhante ao utilizado por Richard Zenith na sua biografia? Exemplos: Marcos Alves “entra em pânico só de imaginar uma vagina à sua frente”/ Zenith: Marcos Alves e o Duque de Parma, para os quais o simples pensamento de uma vagina causa pânico”. Ou: “Cabo das Agulhas, onde o Atlântico acaba e o índico começa”. / Zenith: “(...) Cabo das Agulhas, onde oficialmente o Atlântico termina e o Índico começa.” 

             R: Não. Basta comparar a escrita e o contexto das mesmas (p. 313/pp. 209-210; p. 61/pp. 52-53). Dizer que “o Cabo das Agulhas é onde o Atlântico acaba e o Índico começa” é uma verdade de Wikipédia, uma constatação geográfica banal. "Where the Atlantic officially ends and the Indian Ocean begins", a mesmíssima frase de Zenith já tinha sido usada num livro sobre submarinos no Índico, de Lawrence Paterson (U-Boats in the Indian Ocean, de 2017). Isso faz de Zenith um plagiador? Que ridículo.

          Outro exemplo, para que se perceba melhor: Na Nova História de Portugal (1999), António do Carmo Reis diz assim: "Diogo Cão atingiu a foz do rio Zaire e Bartolomeu Dias dobrou o Cabo das Tormentas, no extremo Sul da África onde o Atlântico termina e o Oceano Índico começa".  Repito: Isso faz de Zenith um plagiador? Que ridículo.

          Igualmente ridículo seria fazer este exercício: Zenith diz na sua biografia que Salazar "era paciente e tenaz", mas Marcello Caetano, antes dele, já dizia que Salazar "era paciente, cortês e tenaz". Portanto, por esta ordem de ideias, Zenith está a inspirar-se em Marcello Caetano, no livro Minhas Memórias de Salazar, de 1977 (obra que Zenith, aliás, não cita na bibliografia). Será um plagiador, por ter usado as expressões “paciente” e “tenaz”?

 

          Mas vejamos as passagens das duas biografias de Pessoa, cuja avaliação deixo ao cuidado dos leitores:

         

                    Pânico da Vagina

 

Richard Zenith: "Pessoa was not pedantic, like some of the café habitués he disparaged in his writings, but he was pedagogical, as these magazines projects from 1911 demonstrate. He wanted to teach politicians how to behave, intellectuals what to think, and the Portuguese in general why it was important to be patriotic. And as a young man he also aspired to be a sexual moralizer - for motives that arouse suspicion. On the one hand, Jean Seul takes too much delight in narrating the kinky sexual practices that his satires are ostensibly condemning. On the other, the tormented chastity of characters like Marcos Alves and the Duke of Parma, in whom the mere thought of a vagina strikes panic, makes us wonder whether Pessoa was using his moral campaign to avoid dealing, in his own life, with sex and sexuality."

 

João Pedro George: "Marcos Alves, por sua vez, descreve os sentimentos e opiniões de uma pobre alma possuída pela 'agoniada tristeza de não ter feito nada´. Romance 'sobre o que sentiria o Marcos Alves' (como revelou Pessoa num dos seus textos), é um 'cavaqueador brilhante', 'triunfador das atenções', com 'reputação de blagueur, de artista', além de virgem e de sentir um medo patológico de mulheres, entrando em pânico só de imaginar uma vagina à sua frente.

Numa das chamadas Cartas de Marcos Alves, é o próprio quem nos diz que (...). Mas os dois grandes projectos da empresa Íbis talvez fossem os dois seguintes jornais antimonárquicos e anticlericais, com periodicidade quinzenal: O Iconoclasta e O Fósforo. A intenção destas duas publicações militantes era informar e esclarecer os militantes republicanos, contribuindo, ao mesmo tempo, para "provocar uma revolução aqui" (para Pessoa, toda a ordem estabelecida é incapaz de perdurar se algo ou alguém, paradoxalmente, a não vem perturbar)."

 

                    Cabo Agulhas

 

Richard Zenith: "The ship passed other rocky promontories before reaching the southernmost Cape Agulhas, where the Atlantic officially ends and the Indian Ocean begins".

 

João Pedro George: "Continuando para sul, rodearam o Cabo da Boa Esperança, assim baptizado por Bartolomeu Dias, o primeiro a conseguir contornar (1488) sem incorrer num dos habituais naufrágios, que vitimaram centenas ou mesmo milhares de marinheiros. Mais tarde, em homenagem a este navegador português, Pessoa escreveria na Mensagem (...). Seguiu-se o Cabo Agulhas, onde o Atlântico acaba e o Índico começa, com as suas praias de areia fina, depois Porto Elizabeth e East London".

 

                    Bloco de Notas:

 

Richard Zenith: "In November 1911, after drawing up an updated list of old debts and new expenditures in a memo book, he scribbled in large letters, in English: “Cut & run for clear intellectual life! December to reconstruct life.”

 

João Pedro George: "Note-se que, num bloco-notas de Novembro de 1911, depois de fazer uma lista com as dívidas ainda por saldar (que incluíam empréstimos de dinheiro pedidos a amigos e conhecidos), Pessoa apontou em maiúsculas e em inglês: 'Cortar e correr para a vida intelectual clara! Dezembro para reconstruir a vida'".

 

          6. Há alguma razão por que, tendo citado uma carta de maio de 1911 que Pessoa dirigiu à mãe, não tenha referido que essa carta faz parte da Coleção de Cartas da Família Pessoa, atualmente na posse de Richard Zenith, e que só através da biografia dele é que podia ter dela conhecimento?

          R: A descrição dos problemas de dinheiro depois de Pessoa ter desbaratado a herança da avó Dionísia foi-me relatada por Manuela Nogueira. A sua filha, Isabel Murteira França, em Fernando Pessoa na Intimidade, refere que a mãe de Pessoa escrevia semanalmente ao filho e quando não recebia resposta ficava preocupada e apreensiva. Sobre as cartas familiares há também várias referências em Manuela Parreira da Silva, Silva, Realidade e Ficção. Para uma biografia epistolar de Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.

          Em relação a essa carta em concreto, não só nem sequer a transcrevo como nem sabia que era propriedade de Richard Zenith.

 

          7. A dada altura (págs. 460-463) cita profusamente cartas de Pessoa, datadas de setembro de 1915. Mas não revela a fonte destas cartas. Porquê? Quais são?

          R: As cartas de Pessoa estão profusamente editadas em diferentes livros, muitos dos quais cito na minha bibliografia. A partir do momento em que a citação respeita escrupulosamente o original, e sendo referidos o dia, o mês e o ano em que as cartas foram escritas, qualquer leitor pode ir às Cartas a Fernando Pessoa, vol. II, Edições Ática, 1959; a Mário de Sá-Carneiro. Correspondência com Fernando Pessoa: Agosto 1914-Abril 1916, organizada em 2003, por Teresa Sobral Cunha; a Correspondência: 1905-1922 (edição de Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio & Alvim, 1999; às Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, edição de Manuela Parreira da Silva, em 2001. Inclusive, quase todas estas cartas ou excertos das mesmas estão publicados na Internet. Depois da publicação da minha biografia, disseram-me que cito duas cartas de Fernando Pessoa que são fictícias e que foram inventadas por Pedro Eiras. Erradamente, quando as encontrei na Internet (aqui: https://phala.wordpress.com/2018/03/06/como-se-escrevem-cartas-de-fernando-pessoa/), tomei-as por verdadeiras. Se me tivesse apercebido disso, naturalmente não as teria citado. Note-se, ainda, que no site referido antes, as cartas inventadas por Pedro Eiras são intercaladas com cartas verdadeiras, daí a confusão.

 

          8. Em que sentido é que a biografia que escreveu difere das já existentes? O que pensa que traz de novo?

          R: Procuro levar Pessoa aos leitores comuns, que doutra forma talvez não tivessem conhecimento da sua biografia. Aquilo em que este livro difere e o que traz de novo vem do contacto da minha subjectividade com os textos de Fernando Pessoa. E na forma como me recuso a embarcar em especulações sobre a sexualidade ou o racismo de Fernando Pessoa. A suposta homossexualidade de Pessoa é uma questão bizarra, que já foi amplamente discutida e, até, rejeitada pela família. Há cartas de Pessoa para Ofélia reveladora do desejo sexual do poeta pela namorada. João Gaspar Simões, Jorge de Sena, José Carlos Barcellos, Mario Cesar Lugarinho, Fernando Arenas, Susan Quinlan e outros dedicaram-se a especular sobre a homossexualidade de Pessoa e nenhum trouxe nada de novo quanto a isso. Também José Paulo Cavalcanti insiste nesta ideia, considerando que Fernando Pessoa escondia a sua homossexualidade. Vai inclusive ao ponto de afirmar que Antonio Botto teria contado a Jorge de Sena que Fernando Pessoa "olhava de certa maneira para os rapazinhos". Isto é, apenas, ridículo.

 

          9. Depois da publicação de O Super-Camões, descobriu erros que pretenda ver corrigidos no futuro?

          R: O livro tem certamente alguns erros e gralhas, como todos os trabalhos que envolvem uma gigantesca massa de informação. Um erro que me foi apontado por Miguel Freitas da Costa, familiar de Fernando Pessoa, foi numa página ter chamado Mário Freitas da Costa e não Mário Nogueira de Freitas ao primo direito de Pessoa. Felizmente, isso acontece apenas uma vez. Descobri também que, por lapso, já cometido por outros, quando, numa das vezes em que me refiro a José Pacheco, autor da capa do nº 1 da Orfeu, cito-o como José Coelho Pacheco. Mas isso, também felizmente, só acontece uma vez, nas outras cito-o correctamente.  

 

          10. Está prevista uma nova edição de “O Super-Camões”? Se sim, para quando?

          R: Não faço ideia. Terá de perguntar à editora. Mas, pelo que sei, a biografia está a chegar a muita gente, cumprindo o seu objectivo de democratizar Pessoa e de mostrar que Pessoa não é nem tem de ser uma coutada de académicos ou eruditos nas suas torres de marfim.

 

          Conclusão

 

          Em 1935, Fernando Pessoa foi acusado de plagiar uma quadra de António Correia de Oliveira. Tratava-se, nada mais, nada menos, de dois dos versos mais conhecidos de Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal | São lágrimas de Portugal!”. Estes versos, como todos sabem, pertencem ao livro de poemas Mensagem, de 1934.

          Em 1902, no seu livro Cantigas, Correia de Oliveira escrevera: “Ó ondas do mar salgado,/D’onde vos vem tanto sal?/Vem das lágrimas choradas/Nas praias de Portugal.”

          Por causa disto, Pessoa foi acusado de plágio nas páginas do jornal Fradique (onde Pessoa colaborara), dirigido por Tomás Ribeiro Colaço, com quem o poeta da Mensagem trocara antes correspondência.

          Depois de ter sido acusado de plágio, nas suas notas, Pessoa descreveu Tomás Ribeiro Colaço como um homem “de vaidade patológica” e um "invejoso". Segundo José Barreto, em "Mar Salgado: Fernando Pessoa perante uma acusação de plágio" (Pessoa Plural, n.º 3, 2013), "Pessoa falava da inveja de Colaço em relação com o impacto junto do grande público que o artigo 'Associações Secretas' alcançara, algo que o director do Fradique, embora esforçando-se muito, nunca teria conseguido".

          Ainda segundo Barreto, Pessoa estava talvez convencido de que "a denúncia de plágio divulgada no Fradique tinha uma motivação política, na sequência do seu artigo 'Associações Secretas', publicado no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro desse ano, que causou sensação pela sua defesa da Maçonaria e desencadeou reacções escandalizadas nos arraiais dos apoiantes do regime de Salazar".

          Deixo aos leitores a avaliação sobre as semelhanças entre esta história e o frete que o jornal Expresso fez a Richard Zenith. Exponho apenas uma dúvida: se fosse vivo em 1935, qual a posição de Zenith sobre este suposto plágio de Fernando Pessoa?

 

João Pedro George

 

 

 

          P.S. – só um pormenor, entre muitos, que demonstra a diferença entre o trabalho de Zenith e o meu e, mais ainda, que a sua biografia de Pessoa, com pretensões a “esmagadora” e “definitiva”, não está isenta de errros, falhas, omissões. 

 

Diz Zenith sobre a existência de um telefone em casa de Fernando Pessoa: "Nem nunca o instalou na casa da Rua Coelho da Rocha, como se defende algumas páginas à frente".

 

          Digo eu: "No apartamento do lado esquerdo viviam duas senhoras da família Sena Pereira, sempre vestidas de preto, que já tinham telefone em casa (aparelho que o poeta utilizava para fazer e atender telefonemas, pois as Sena Pereira não se importavam que o vizinho se servisse dele). (...) Preferia os telefonemas, que lhe ocupavam menos tempo, tanto que, no ano seguinte, mandou instalar um telefone na casa da Rua Coelho da Rocha (antes, Pessoa usava as cabines telefónicas e o aparelho das vizinhas do lado)".

 

          Ora, esta informação foi-me transmitida pela sobrinha de Pessoa, Manuela Nogueira, em Novembro de 2021, como se pode verificar por este excerto da entrevista que lhe fiz:

 

          "P- E o resto do prédio?

          MN- No 1.º esquerdo, ao nosso lado, viviam umas senhoras que eram da família Sena Pereira. Estou a vê-las vestidas de preto. Deviam ser muito mais novas do que eu sou agora, mas como eu era muito pequena, pareciam-me muito velhas.

          P- E o Pessoa dava-se com elas?

          MN- Elas tiveram telefone mais cedo que na nossa casa, então nós servíamo-nos do telefone das Sena Pereira. Isso eu lembro-me, íamos lá.

          P- O Pessoa também ia lá falar ao telefone?

          MN- Sim, sim. Depois, entretanto, tivemos telefone também."