sábado, 18 de fevereiro de 2023

Resposta a Zenith (e ao Expresso) - 2


 





Tendo obtido entretanto a versão portuguesa da biografia de Richard Zenith, deixo-vos aqui o confronto das passagens a que a jornalista do Expresso chama "semelhanças flagrantes", para que possam fazer um juízo cabal sobre as mesmas. Quanto aos motivos não-declarados que estiveram na base do artigo da revista do Expresso, ficam para ocasião mais propícia.

 

1.

 

Richard Zenith (pp. 65-66): "Nesse mesmo mês de Janeiro, num dia em que andava nos seus afazeres, subiu para um dos 'americanos' que cruzavam Lisboa. Dava-se-lhes este nome porque eram importados dos EUA: veículos sobre carris abertos, puxados por cavalos, que eram mais velozes e mais suaves do que carruagens que circulavam nas calçadas irregulares. (Os veículos motorizados, também importados da América, não começaram a circular senão em 1901.) Sentada num dos bancos de madeira do carro, Maria Madalena observava as fachadas das lojas e os grupos variados de transeuntes passarem devagar. Os estratos sociais elegantes – cujas luvas e chapéus da moda, incluindo as penas para as senhoras, eram indício de estatuto social – misturavam-se livremente nas ruas com os pobres vestidos com roupas simples e por vezes descalços. A dado momento, Maria Madalena apercebeu-se de que um homem sentado à frente dela a olhava, e não era com total discrição: queria que ela percebesse que estava a ser observada. Maria Madalena lançou-lhe um olhar fugaz, desviou os olhos, depois voltou a olhar para ele. Tinha uma testa alta e faces cheias, uma tez rosada, olhos azuis e um bigode à inglesa, com suíças compridas de ambos os lados. Deve ter feito um comentário fortuito, para meter conversa, e logo revelou ser comandante de um navio que tinha percorrido o mundo ao serviço da marinha portuguesa. Como era diferente do falecido marido! Ela deve ter-lhe explicado a razão de estar vestida de preto, e ele ter-lhe-á apresentado os habituais sentimentos. Gostou da sonoridade da voz dele e dos modos delicados mas confiantes. Chamava-se João Miguel Rosa. Concordou em voltar a encontrar-se com ele, provavelmente no mesmo transporte público – um expediente que Fernando Pessoa também haveria de usar, muitos anos depois, para se encontrar com uma jovem.

As regras de decoro desses tempos não permitiam que as mulheres se encontrassem sozinhas com homens, e Maria Madalena era uma viúva ainda no período de luto, facto que tornava tudo ainda mais complicado. O problema não se resumia a saber como a sociedade a julgaria mas também como ele, seu inesperado pretendente, interpretaria cada movimento dela. De acordo com um velho estereótipo, era suposto que as viúvas fossem sexualmente rapaces e capazes de dominar qualquer homem desprevenido. Por isso, tanto ela como o comandante avançaram devagar, mas a atracção era magnética, pelo que não demorou muito a declararem-se um ao outro. O novo amor de Maria era muitas coisas que o primeiro marido não era: tinha quase a mesma idade que ela (era quatro anos mais velho, em vez de onze), forte e robusto, extrovertido, jovial e sereno".

 

João Pedro George (pp. 38-39): "Em Janeiro de 1894, duas ou três semanas depois de Jorge ter sido transportado para o cemitério dentro do seu minúsculo caixão, a mãe de Pessoa conheceu um capitão da Marinha de Guerra, de nome completo João Miguel dos Santos Rosa. Nascido em Lisboa em 1857, João Miguel Rosa estava na Marinha Portuguesa desde os 14 anos e já viajara por todo mundo, em comissões de serviço que o tinham levado a Macau, Angola, Guiné-Bissau, América do Sul, etc. As fotografias do futuro padrasto de Pessoa dão a entender que seria um homem imponente e entroncado, com um rosto quadrado, onde sobressaía o bigode de pontas eriçadas, como o de Guilherme II (o último imperador alemão e Rei da Prússia, que começara o seu reinado no ano em que nasceu Fernando Pessoa, em 1888, e teria de abdicar no final da I Grande Guerra, em 1918), e mãos grandes, de dedos compridos e grossos, que inspiravam confiança.

Maria Madalena conheceu este cavalheiro distinto numa viagem de carro americano (ou apenas americano), o nome com que em Lisboa, na segunda metade do século XIX, era conhecido o meio de transporte colectivo, movido por tracção animal sobre carris, que levava os passageiros de um ponto da cidade a outro (o americano seria substituído, no século XX, pelo eléctrico).

Começou por reparar no cavalheiro que, sentado mesmo em frente, olhava para ela, viu que os olhos dele a seguiam e se mantinham, por vezes, fixos nela. Durante alguns minutos, estabeleceu-se a dialéctica entre o homem que espia e a mulher que exibe. Provavelmente, João Rosa queria que aquela mulher bonita e elegante como uma escultura de Rodin percebesse que estava a ser observada. 'Quantos dias da minha vida daria para possuir aquela mulher', seria talvez uma das suas fantasiosas elaborações.

A escassos centímetros da sua perplexidade, Maria Madalena mudava de posição na cadeira (sinal de que não pôde evitar certa perturbação em face daquele olhar masculino), tentando dar a impressão de ser uma mulher orgulhosa, completamente auto-suficiente no seu mundo interior – o chapéu que levava na cabeça abrigava toda a mágoa de uma alma já muito experimentada pelo sofrimento –, e terá intuído aquilo em que ele estava a pensar, inferindo o seu estado de ânimo e intenções. De repente, sentiu-se de novo a ganhar vida e importância, sentiu-se uma mulher apetecida, desejada pelo desejo de outro, o que lhe terá causado uma satisfação evidente.

Gozador dos efeitos que as palavras gentis (e os seus olhos azuis) produziam nas mulheres que queria conquistar, João Rosa entabulou conversa com Maria Madalena, a qual sentiu, de imediato, o rubor subindo-lhe pelas maçãs do rosto.

Ele disse-lhe que era capitão de um navio — o Liberal, assim se chamava a embarcação onde trabalhava, pertencente à frota portuguesa da África Oriental — que atracara em Lisboa em 24 de Dezembro de 1893, vindo de Moçambique, para os tripulantes gozarem um ano de férias na metrópole. Ela, deixando-se cativar, explicou-lhe vagarosamente que era viúva e estava de luto, por isso trajava de negro. No final, combinaram que voltariam a encontrar-se.

Ao contrário do intelectual Joaquim Seabra Pessoa, seu falecido marido, João Rosa era forte, extrovertido e jovial, um macho possante e robusto, com aquelas cores de romã que são sinal de saúde."

 

NOTA: A informação de que Maria Madalena, mãe de Fernando Pessoa, terá conhecido João Miguel Rosa, o futuro padrasto do poeta e futuro cônsul em Durban, num "americano", foi posta a circular por Eduardo Freitas da Costa em Fernando Pessoa. Notas a uma biografia romanceada, Guimarães, 1951.

 

2.

 

Richard Zenith (p. 378): "Pessoa não era pedante, como alguns dos frequentadores habituais de cafés que denegria nos seus textos, mas era pedagógico, como os projectos de revistas de 1911 demonstram. Queria ensinar aos políticos como se deviam comportar, aos intelectuais o que pensar e aos portugueses em geral por que razão era importante ser patriota. E enquanto jovem também aspirou a ser um moralista sexual – por razões que levantam suspeitas. Por um lado, Jean Seul teria demasiado comprazimento na narração das práticas sexuais bizarras que as suas sátiras condenam ostensivamente. Por outro, a castidade atormentada de personagens como Marcos Alves e o Duque de Parma, para os quais o simples pensamento de uma vagina causa pânico, leva a que nos questionemos sobre se Pessoa estava a usar a sua campanha moral para evitar enfrentar, na sua própria vida, o sexo e a sexualidade. No entanto, praticamente todas as empresas intelectuais de Pessoa, incluindo as actividades pedagógicas, eram parcialmente empreendidas pelo seu valor de entretenimento".

 

João Pedro George (pp. 209-210): "Marcos Alves, por sua vez, descreve os sentimentos e opiniões de uma pobre alma possuída pela 'agoniada tristeza de não ter feito nada´. Romance 'sobre o que sentiria o Marcos Alves' (como revelou Pessoa num dos seus textos), é um 'cavaqueador brilhante', 'triunfador das atenções', com 'reputação de blagueur, de artista', além de virgem e de sentir um medo patológico de mulheres, entrando em pânico só de imaginar uma vagina à sua frente.

Numa das chamadas Cartas de Marcos Alves, é o próprio quem nos diz que '(...) Levei a vida toda a sentir-me inadaptado mesmo às suas coisas mais altas e [a] adaptar-me a todas, mesmo, às mais reles. (...)'

Mas os dois grandes projectos da empresa Íbis talvez fossem os dois seguintes jornais antimonárquicos e anticlericais, com periodicidade quinzenal: O Iconoclasta e O Fósforo. A intenção destas duas publicações militantes era informar e esclarecer os militantes republicanos, contribuindo, ao mesmo tempo, para "provocar uma revolução aqui" (para Pessoa, toda a ordem estabelecida é incapaz de perdurar se algo ou alguém, paradoxalmente, a não vem perturbar)."

 

3.

 

Richard Zenith (p. 381): "Por outro lado, o dinheiro ganho em Inglaterra poderia ajudar a pagar algumas dívidas e fugir talvez não fosse má ideia. Em Novembro de 1911, depois de elaborar uma lista actualizada de dívidas antigas e novas despesas num caderno, rabiscou em grandes letras, em inglês: 'Cortar e fugir para clarificar a vida intelectual! Dezembro para reconstruir a vida'.

Que melhor lugar para fugir poderia haver do que Londres? Teria sido a realização de um sonho maravilhoso, que Pessoa continuaria acalentar durante pelo menos mais vinte anos, mas o pensamento de ir realmente para um lugar novo e encontrar pessoas novas perturbava-o".

 

João Pedro George (p. 264): "Embora respeitante a um período de apenas seis meses de trabalho, a oferta era aliciante por vários motivos. Incluía pagamento da viagem e das despesas em Inglaterra, mas, sobretudo, era a oportunidade, tantas vezes sonhada, de concretizar o seu projecto de, no futuro, ir viver para Inglaterra e transformar-se, quiçá, num poeta inglês. Pessoa conhecia os nomes dos editores, críticos e escritores britânicos que o poderiam ajudar a reconstruir a sua vida literária no país de Shakespeare, e a referência de Warren Kellogg e da Biblioteca, podiam ajudá-lo a abrir essas portas.

Note-se que, num bloco-notas de Novembro de 1911, depois de fazer uma lista com as dívidas ainda por saldar (que incluíam empréstimos de dinheiro pedidos a amigos e conhecidos), Pessoa apontou em maiúsculas e em inglês: 'Cortar e correr para a vida intelectual clara! Dezembro para reconstruir a vida'.

Mas, contra todas as expectativas, e apesar de sentir-se por vezes prostrado por causa das dívidas e de ter pensado, inclusivamente, em largar tudo, vivendo outras aventuras, morando noutras casas, tendo outras profissões, Pessoa recusaria a proposta do editor".

 

NOTA: A citação de Pessoa - "Cortar e correr para a vida intelectual clara! Dezembro para reconstruir a vida'. - está em "Os Objectos de Fernando Pessoa", de Jerónimo Pizarro, António Cardiello e Patricio Ferrari, Publicações Dom Quixote, p. 122.

 

4.

 

Richard Zenith (p. 369): "Numa das cartas semanais para Durban, enviada em Maio de 1911, Pessoa espicaçou a curiosidade da mãe quando lhe disse que precisava de escrever uma longa carta para explicar algumas coisas. Aquilo que precisava de explicar, é claro, era que tinha dissipado a herança e estava atolado em dívidas, mas haveria de protelar essa confissão por mais um ano e meio. No interim, foi enganando os credores com promessas vãs. Continuou a fazer traduções para a Biblioteca Internacional e Obras Célebres, recebendo os maiores louvores do coordenador do projecto multilingue, Warren Kellogg, e tentou – ou pensou tentar – arranjar mais trabalhos com base nas suas competências linguísticas".

 

João Pedro George (pp. 262-263): "O dinheiro obtido com estas e outras traduções serviu para amortizar as dívidas contraídas pela falência da Íbis. Mesmo depois da venda da tipografia, Pessoa continuava cheio de complicações e dificuldades de dinheiro, tinha de fazer pagamentos mensais ao banco pelo empréstimo que pedira depois da extinção da Íbis.

Em Maio de 1911, numa das cartas que escrevia semanalmente à mãe, dava a entender que estava com problemas, que algumas coisas negativas se tinham passado na sua vida, sem nunca revelar exactamente o quê (só um ano e meio depois é que confessaria à mãe que gastara a totalidade da herança da avó Dionísia e que estava crivado de dívidas).

Nesse Verão, deixou o quarto no Largo do Carmo e foi viver com a tia materna Anica (Ana Luísa Nogueira) e com os primos Mário em Maria, em Arroios, na Rua Passos Manuel, no 3.º andar do n.º 24 (ficando os seus livros no escritório do Largo do Carmo, que o primo continuava a alugar). Pouco depois, em 21 de Setembro de 1911, morreria nessa casa, onde também vivia, a tia-avó Maria.

Talvez porque ficara sem a responsabilidade de pagar uma renda — a tia nunca lhe pediu para pagar pelo quarto onde se instalou —, Pessoa foi adiando a necessidade de encontrar outro tipo de trabalho, que lhe permitisse respirar melhor no meio de tantas dívidas".

 

5.

 

Richard Zenith (p. 100): "O navio passou outros promontórios rochosos antes de chegar ao Cabo das Agulhas, lugar mais a sul do continente, onde oficialmente o Atlântico termina e o Índico começa".

 

João Pedro George (p. 53): "Continuando para sul, rodearam o Cabo da Boa Esperança, assim baptizado por Bartolomeu Dias, o primeiro a conseguir contornar (1488) sem incorrer num dos habituais naufrágios, que vitimaram centenas ou mesmo milhares de marinheiros. Mais tarde, em homenagem a este navegador português, Pessoa escreveria na Mensagem (...). Seguiu-se o Cabo Agulhas, onde o Atlântico acaba e o Índico começa, com as suas praias de areia fina, depois Porto Elizabeth e East London".

 

 

João Pedro George

 


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