quarta-feira, 28 de junho de 2023

Ex-comandante Marat, do exército secreto de Putin, o Grupo Wagner.

 




 

Puro acaso do destino, a publicação em Portugal das memórias do ex-comandante Marat ganhou notoriedade com os recentes acontecimentos da rebelião de um chefe de grupo que pareceu que iria avançar sobre Moscovo, os acontecimentos ainda estão muito confusos mas o ex-comandante Marat, bravo combatente de um exército privado ao serviço da lógica política e económica de Putin e dos seus oligarcas, desvenda um segredo bem escondido dessa força mercenária de elite que finalmente Putin confirma a existência, o Grupo Wagner é pago a peso de ouro tanto por Moscovo como pelos ditadores que interessa a Putin apoiar.

          Eu, Marat, Ex-comandante do Grupo Wagner, prefácio de José Milhazes, Casa das Letras, 2023, traz revelações sensacionais, conta as manipulações e agitação perpetrada em território ucraniano, descreve as lutas do Grupo Wagner em território sírio, acima de tudo.

José Milhazes recorda que se trata da primeira obra escrita por um mercenário russo, combatente de uma empresa militar privada que até à recente declaração pública de Putin não existia oficialmente. A Wagner tem sido utilizada em manobras muito sujas, onde os russos não querem mostrar onde metem as mãos, para implementar a sua política externa expansionista servem-se dos mercenários: no Leste da Ucrânia, na Síria, Líbia, Sudão, República Centro-Africana, Mali e Moçambique. Marat Gabidullin não edulcora o seu currículo: prestou serviço militar nas tropas paraquedistas, enredou-se com gente mafiosa, este preso por assassinato, viveu a praga do alcoolismo; sem emprego, aceitou fazer parte de um grupo armado, foi combater para a Síria, no comando já estava Evgueni Prigojin, a figura de quem se fala nos média e redes sociais de todo o mundo, político com cadastro criminoso longo, também com uma pesada pena de prisão, multimilionário, já confessou ter contribuído para intoxicar a campanha presidencial norte-americana de 2016 (ele detém uma rede de empresas no campo da comunicação social); envolveu-se com os seus mercenários nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, desde 2017 tem a cabeça a prémio nos EUA.

          Também o editor francês dá as suas explicações para esta importante publicação: “O que ele oferece é um relato único e extremamente atual das forças militares do seu país. As ações dos Wagner foram sempre ao serviço exclusivo do Kremlin, quer no Donbass, na Crimeia, na República Centro-Africana, no Mali e na Síria. Ele não tem palavras suficientemente duras para descrever a indignidade do comportamento das tropas russas e dos Falcões do Deserto às ordens de Bashar al-Assad, denunciando-lhes a corrupção, a busca perpétua por honras, o desejo constante de se pouparem ao trabalho sujo. Ele revela um sentimento perante a total falta de consideração por parte das autoridades russas no tocante a estes mercenários.”

          À cabeça do Grupo Wagner encontram-se dois homens, o fundador, Dimitri Outkine (Wagner), antigo membro do serviço militar russo de informações, criou um grupo de intervenção rápida para levar a cabo operações precisas na região separatista de Donbass, em guerra com as autoridades pró-europeias de Kiev. Este grupo de mercenários assumiu para si o nome do seu líder, Wagner, uma homenagem ao compositor alemão (Dimitri Outkine é um grande admirador do III Reich e Adolf Hitler). Se se pode falar de ideário do grupo, a matriz é o nacionalismo, são antissemitas e xenófobos, defendem a pureza étnica e a segregação racial, grande parte destes elementos têm visões de extrema-direita. A outra figura chave é Evgueni Prigojin, já se disse que ele tirou partido do caos pós-soviético, é um dos homens mais poderosos da Rússia, comprovadamente envolveu-se em operações de destabilização tanto no ciberespaço como no Médio Oriente e África.

O Grupo Wagner é um meio para que Putin e os oligarcas ganhem dinheiro e estendam tentáculos imperiais. Na Síria, onde Marat lutou, a missão era reconquistar o controlo dos campos de petróleo e gás que haviam caído nas mãos de exército sírio livre ou do Estado Islâmico; em troca, a Wagner recebia uma comissão de 25% sobre as receitas do ouro negro ou do gás, tudo ao abrigo de um acordo assinado em finais de 2016 em Moscovo; a República Centro-Africana, é o setor mineiro (ouro e diamantes) que cai sobre o seu controlo, a Wagner tem mão de ferro sobre as autoridades aduaneiras, e também no Mali a Wagner é paga através das receitas do setor mineiro. Até aos recentes acontecimentos de rebelião de Evgueni Prigojin era difícil imaginar o Kremlin e o Ministério da Defesa assumirem a existência do Grupo Wagner, tal aconteceu e não vale a pena estar a fazer profecias sobre o futuro do Grupo Wagner.

Marat descreve o seu alistamento, fala das verbas recebidas, descreve a missão em 2015 a Luhansk e não teve ilusões de que a Rússia se estava a intrometer na vida de um país estrangeiro: “A República Popular de Luhansk era uma pequena sociedade de pessoas tomadas como reféns por um bando de bárbaros analfabetos, a quem fora dado acesso a armas.” Sentiu-se tomado por problemas de consciência, felizmente para ele foi transferido para Moscovo, doravante todo o seu relator é sobre a luta sem quartel na Síria, apercebe-se do cinismo das diplomacias, caso da Turquia, que estava determinada a tirar partido da guerra na Síria, fornecia armas e munições, conselheiros militares profissionais aos insurgentes do Exército Sírio Livre, estamos a falar da mesma Turquia que agora aparece como mediadora entre a Rússia e a Ucrânia. Cedo Marat se apercebeu que os sírios não apreciavam dar o corpo ao manifesto, quem ia à frente era gente do Grupo Wagner, são descrições avassaladoras onde não falta o horror e a crueldade, os tais Falcões revelaram-se ineptos e cobardes, Marat di-lo abertamente.

É um detalhado reportório de derrotas e vitórias, muitos camaradas mortos e feridos, Palmyra foi conquistada, perdida e reconquistada, Marat é muçulmano, e o valor religioso tocou-lhe muito, dirige-se para uma mesquita depois dos combates e tece o seguinte comentário: “O interior estava devastado: uma espessa camada de gesso mesclada com fragmentos de pedra e pedaços de vidro cobriam o chão, as paredes haviam sido desfiguradas pelos estilhaços e as janelas, pretas da fuligem, estavam abertas como as feridas. Porém, toda aquela destruição não afetou a majestosa beleza do edifício religioso. Uma vez lá dentro, a angústia apoderou-se de mim. Sim, apesar de tudo, sentia-me muçulmano. A guerra mutilou aquela mesquita e isso deixou-me doente. De repente, naquele lugar sagrado, percebi claramente, de forma inesperada e pungente, toda a miséria e vulgaridade do que acontecia na Síria, onde as partes em confronto lutavam selvaticamente umas contra as outras para obterem uma fatia de bolo.”

Este relato é uma gesta sobre a força de combate que Marat era comandante. Recebeu a Ordem da Coragem, dada em segredo, o povo russo não podia saber da existência do Grupo Wagner, a descrição que ele faz sobre a reconquista de Palmyra é admirável, mais uma vez refere que aquele exército sírio não tinha vontade de lutar, era liderado por diletantes altivos e gananciosos, quem teve que dar o corpo ao manifesto foi a Wagner.

Ao despedir-se não esconde o seu ressentimento como a Rússia utiliza os mercenários. “Dizem-nos que os soldados da fortuna são um fenómeno ocidental, e que o mercenarismo é um produto da hidra capitalista. Os nossos políticos mantêm um silencia envergonhado sobre a existência de empresas militares privadas. Os propagandistas estão a doutrina intensivamente os russos com a ideia de uma política externa exclusiva à Rússia, e evitando qualquer resposta direta sobre o uso de mercenários.”

De leitura obrigatória para quem procure entender o que se passa na Ucrânia e a política expansionista russa.


                                                                                 Mário Beja Santos 


 


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