Concertadamente, e
com uma estranha sintonização, um conjunto de reputados especialistas em
economia e gestão em saúde, nos últimos anos, vêm recordar a degradação do SNS,
apelando à urgência da sua restruturação, de um modo geral faz-se o
levantamento, mas, por pudor ideológico, não se diz exatamente o que é urgente
restruturar e a que presumível preço. O autor do ensaio Saúde e Hospitais
Privados em Portugal, Miguel Gouveia, conceituado universitário e
investigador, alerta-nos para as dificuldades presentes do SNS e põe em
destaque o setor privado na saúde, matéria fulcral do seu trabalho. Para captar
a atenção do leitor, diz mesmo na contracapa: “Sabia que, em Portugal, o setor
público paga dois terços da despesa em saúde, mas o setor privado é o prestador
de mais de metade dos cuidados? Sabia que Portugal foi o segundo país da União
Europeia com a maior taxa de necessidades de saúde não satisfeitas acumuladas
durante a covid-19? E que a tendência de longo prazo aponta para a redução do
peso do Estado como financiador e como prestador de cuidados de saúde?”
Aliciantes interrogações, e cuidamos ir encontrar resposta ou sugestões
concretas do autor.
Interrogo-me se este
ensaio cabe no espírito desta coleção, está completamente polvilhado de
números, gráficos, figuras, etc., é claramente uma obra destinada a um outro
tipo de público, não a meros leigos ou curiosos. Isto sem o mínimo prejuízo de
considerar que é um ensaio de leitura obrigatória para quem o pode entender na
plenitude. Sem dúvida que qualquer explicação sobre o sistema de saúde
português carece de números, mas não nos termos avassaladores como aqui
aparecem. O SNS está confrontado por quadros ideológicos claramente demarcados,
fala-se por alto em empreender reformas estruturais, o que acontece é que
tirando um ou outro especialista nesta área, por exemplo António Correia de
Campos ou Constantino Sakellarides, não vejo ninguém a pôr as mãos na massa e
propor o rumo de tais reformas, é a tal asserção ideológica que os autores não
querem mostrar.
Miguel Gouveia
apresenta acertadamente o sistema de saúde: sistema misto, com os setores
público e não-público, chama a atenção para os subsistemas do setor público e a
diversificação do setor não público. Expõe as duas dimensões económicas
fundamentais no sistema de saúde, e aqui começa a tempestade dos números. Aqui
e acolá reconheço a exigência de os elencar: “A partir dos dados relativos a
2019, o último ano ‘normal’, podemos constatar que as despesas em hospitais,
públicos e privados, constituíram 41,9% das despesas correntes em saúde, sendo
que, destas, 72,7% ocorreram em hospitais públicos, e os restantes 27,3% em
hospitais privados.” E depois é um tropel de números e percentagens, concluindo
que o financiamento da saúde em Portugal é maioritariamente público, com
tendência a decrescer; ficamos igualmente a saber que há mais de 28 mil
empresas do setor privado que empregam cerca de 125 mil pessoas, quase tanto
como o SNS, alertando o autor para a necessidade de se obter estatísticas
precisas, sobretudo quando se fala da economia social.
O autor procura
encontrar explicações para a volumosa procura de cuidados fora do SNS, releva
as listas de espera e a sua grande dimensão, os encerramentos das urgências. E
depois faz comentários às coberturas existentes para além do SNS, inventaria os
diferentes subsistemas, cujo número parece ter vindo a diminuir, mas onde o
número de pessoas com seguros de saúde tem vindo a aumentar. E deteta atropelos
à informação que é devida a um qualquer consumidor de cuidados de saúde,
distinguindo seguros de planos de saúde, aqui com uma clareza meridiana: “Um
plano de saúde não é um seguro; ele oferece aos seus subscritores o acesso a
uma rede de prestadores de cuidados de saúde a preços tabelados, que resultam
de uma negociação entre cada plano e os prestadores de cuidados de saúde
abrangidos pela rede desse instrumento.” Dá-nos igualmente conta de quem está
coberto por seguros e subsistemas e à guisa de conclusão observa que a fração
do financiamento da prestação privada dos seguros tem vindo a crescer, prevendo
que este crescimento irá continuar nos próximos anos, mas não deixando de
anotar que eles são relativamente secundários no financiamento dos hospitais
privados.
Já estamos na área de
eleição do ensaio: capacidade e atividade dos hospitais privados (o leitor que
se prepare para um vendaval de figuras, numa completa desarmonia com o espírito
desta coleção. Temos depois a análise dos prestadores privados e o seu
relacionamento com o SNS, aqui é inevitável uma palavra sobre as parcerias
público-privadas e o autor tece os seus juízos de valor: “O fim de três das
quatro PPP (Braga, Vila Franca de Xira e Loures) implica uma redução da
qualidade dos cuidados prestados e um acréscimo dos custos a suportar pelo SNS,
ou seja, pelos contribuintes. Este desfecho só se consegue compreender por
motivações intensamente ideológicas. O Estado nunca promoveu estudos sobre as
consequências do fim da gestão privada do Hospital Amadora-Sintra, e reincidiu
não promovendo estudos sobre a cessação da PPP de Braga e das restantes.
Esperemos que essa gritante omissão seja corrigida em breve e que se proceda a
uma avaliação cuidadosa das vantagens e desvantagens do fim destas parcerias.”
Caminhando para o
termo do ensaio, Miguel Gouveia analisa questões sobre o desempenho do setor
privado na saúde, pondo ênfase na chamada desnatação, isto é, a acusação
habitual de que o setor privado trata doentes com problemas de baixa gravidade
ou que necessitam de tratamentos que exijam baixa complexidade tecnológica, deixando
os casos que implicam grandes custos e complexidade para o setor público. Para
Miguel Gouveia é uma acusação superficial, elenca as suas razões e por fim
dá-nos o quadro dos recursos humanos nos setores público e privado. À falta de
propostas dá-nos cenários para o futuro, destacando as tendências que se prende
com o envelhecimento da população, a evolução científica e tecnológica e
problemas globais como potenciais novas pandemias. Considera pouco provável
haver um aumento das despesas públicas num sistema de saúde cada vez mais
estetizado; há um outro cenário em que os governos irão empurrar os grupos
populacionais com algum poder de compra para o setor privado, para assim se
poupar na despesa pública, o perigo, alerta-nos é virmos a ter um SNS para os
pobres. “Nessa altura estarão criadas as condições para um autêntico
terramoto.” E há o cenário caracterizadamente reformista, implica, diz o autor
que os governos despendam mais recursos com o SNS, requer-se capacidade do
Estado para saber usar as estratégias de contratualização com o setor privado,
e o moral da história, se este cenário vingar, e se acaso o Estado se tornar um
contratador eficaz, ir-se-ão expandir as parcerias público-privadas e os
cuidados hospitalares e as poupanças e ganhos de qualidade que lhe estão
associados. Para bom entendedor…
Obra de incontestável
interesse, mas insista-se divorciada do espírito desta coleção.
Mário Beja Santos
O SNS é gerido maioritariamente por gestores com o cartão do PS. O resultado está à vista. O SNS caminha a passos largos para imitar o SNS venezuelano. Mas infelizmente a percepção geral é que temos o melhor SNS do mundo, tal a propaganda a que durante anos fomos expostos.
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