Ilustração de Vítor Higgs |
https://www.dn.pt/cultura/prova-de-vida-1---eladio-climaco-16661157.html
A coleção Pela Sua Saúde – Ciência Alimentar,
recentemente criada ou constituída pela Fundação Francisco Manuel dos Santos,
não se destina, em rigor, a um público não iniciado, será seguramente muito
útil como ferramenta de estudo para quem se prepara para ser profissional de
saúde, a linguagem usada por estes autores só é simples para estes iniciados.
Atenda-se ao que o autor deste livro intitulado Obesidade: Uma Questão de
Peso?, por José Camolas, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023,
enuncia como objeto do seu trabalho:
“Tratando-se de uma doença metabólica crónica,
a obesidade é também fator de risco para outras patologias, tais como:
diabetes, doença cardiovascular, doenças respiratórias, alguns tipos de cancro
e depressão, entre outras. A obesidade afeta negativamente a qualidade de vida
e está fortemente associada á redução do número de anos vividos com saúde e ao
aumento da mortalidade evitável.” O reconhecimento da obesidade como doença é
bastante recente. Como também observa o autor, foi apenas no início deste
século que a OMS propôs a sua caracterização como doença crónica,
reconhecimento que ainda não é consensual. É estimável que a prevalência da
obesidade mereça a caracterização de altamente preocupante. “Em Portugal, mais
de metade da população adulta e um terço das crianças apresentará peso em
excesso”, tenho sérias dificuldades em aceitar estes números, ando nas ruas e
não vejo tal flagelo. O autor recorda que os mecanismos envolvidos pelo
agravamentos e consequências da obesidade são múltiplos e complexos, tal como
adianta que os fatores que favorecem o ganho de peso variam individualmente.
Prevenir e tratar a obesidade abarca diferentes níveis de atuação, desde uma
cultura adequada a uma alimentação saudável passando pelas respostas clínicas
ajustadas. Um desafio da maior amplitude, como ele adianta: “A luta contra a
obesidade incorpora, em pleno, o desafio de integrar a saúde em todas as
políticas. Assim, além das medidas de âmbito da saúde, ao nível da prevenção e
da agilização do acesso ao tratamento adequado, são indispensáveis ações no
âmbito da regulamentação, da tributação dos alimentos prejudiciais à saúde, do
apoio social e da facilitação do acesso à alimentação adequada.
Entrando propriamente no ensaio, dá-nos o peso
dos números para dizer, que tudo conjugado, estamos a falar de uma epidemia e
questiona o que é que é determinante na obesidade, e logo nos dá uma
dilucidação: “Obesidade e excesso de peso não são sinónimos, pelo que a
variável peso, considerada isoladamente, é um indicador impreciso dos impactos
negativos da doença. O peso ideal é um conceito relativamente desatualizado, o
sucesso no tratamento da obesidade também não se deverá restringir à
monitorização da perda de peso. A definição de obesidade proposta pela OMS está
centrada na massa gorda corporal e, mais concretamente, na sua proporção e no
seu potencial impacto negativo na saúde.” E faz-se uma abordagem do que é o
índice de massa corporal e a sua relação às comorbilidades da obesidade, para
concluir que o que pesa na obesidade não é o mesmo que pesa na balança. O que
pesa na obesidade é a disfunção do tecido adiposo, o respetivo impacto nos
outros tecidos do organismo e os seus reflexos na saúde e na qualidade de vidas
das pessoas com obesidade.
E a narrativa toma o pulso ao fator da
genética, também para concluir que a obesidade poderá constituir a expressão de
um desajuste entre o genoma humano e o ambiente. E toma em consideração o peso
da fome e da vontade de comer, como o peso do ambiente, daqui chega ao peso da
força e da vontade para nos dizer que “parece aceitável a premissa de que a
maioria dos seres humanos, por força do seu património genético, estará mais
predisposta para ganhar do que para perder peso. As mudanças contextuais,
particularmente as observadas nas últimas décadas, parecem mais promotoras de
consumos alimentares desadequados e de hábitos sedentários facilitadoras de
comportamentos promotores e protetores da saúde”, e daí chegar-se a outra
conclusão: “O sucesso na prevenção e no tratamento da obesidade requer
efetivamente força (para implementar ações modeladores do acesso e da oferta” e
vontade (de promover escolhas alimentares adequadas). Tanto uma como a outra
são determinantes para a criação de ambientes resilientes que promovam e
suportem hábitos adequados.”
Tem agora a palavra o peso da nutrição. Passa
em revista indicadores relacionados com o bem-estar e a saúde psicológica, a
natureza das intervenções nutricionais, com destaque para as abordagens
nutricionais de obesidade, que são elencadas, havendo razões para muita
prudência, como ele adverte, falando de uma situação: “Os jejuns intermitentes
têm ganho algum protagonismo, pelo que se justificam algumas considerações.
Primeira, para assinalar que a investigação disponível indica que os resultados
obtidos com esta abordagem, no contexto da obesidade, não são superiores aos
obtidos com outros tipos de dietas restritivas. Segunda, para dar nota de que
existem vários protocolos de jejum intermitente. No nosso país, o mais habitual
será a opção pela pausa alimentar, que determina um período de jejum (12-18
horas) e um intervalo restrito para a ingestão de alimentos (6-12 horas). A
este respeito, justifica-se assinalar que a opção de estender o jejum para a
manhã, quebrando a pausa para o almoço, parece ser uma opção menos favorável,
em termos metabólicos, do que iniciar esse jejum à tarde e terminá-lo com o
pequeno-almoço.”
O autor refere também as estratégias
nutricionais, mas releva a importância de que a intervenção em obesidade não
deverá focar-se especificamente na perda de peso, mas sim na otimização geral
da saúde do indivíduo, e culmina assim o seu trabalho:
“A intervenção nutricional surge na primeira
linha e é a única abordagem que será transversal a todas as situações de
excesso de peso – por exemplo, a cirurgia bariátrica não é adequada a todos os
níveis de obesidade e os fármacos têm indicações e contraindicações
específicas. Neste sentido, os nutricionistas têm a responsabilidade de
proporcionar uma abordagem que permita à pessoa que vive com obesidade
sentir-se compreendida, sendo parte ativa no seu plano de tratamento,
contribuindo para a construção de expetativas apropriadas e para a valorização
adequada das mudanças e resultados que têm mais peso na sua saúde.”
Este ensaio que é do maior interesse para todos os estudantes do ensino universitário na área da saúde.
Mário Beja Santos
O
Museu Nacional de Arte Antiga organizou conjuntamente com a Diocese de
Barcelona, uma notável exposição intitulada Barcelona Gótica. Obras do Museu
Diocesano e da Catedral de Barcelona.
É
composta por pintura essencialmente sobre madeira e aborda em especial a
relação de Portugal com a Catalunha em especial a partir do casamento do Rei D.
Dinis com a Rainha Santa Isabel.
Entre
as notáveis peças exibidas avulta um tríptico da descida da Cruz da autoria de
Bernat Martorell (1400-1452) que pertenceu à Colecção do poeta Guerra
Junqueiro.
Trata-se de um tríptico destinado ao uso pessoal. Como já aqui referi, estes trípticos eram frequentemente deslocados, acompanhando os seus proprietários nas suas viagens. Daí a lógica da presença de São Cristóvão no conjunto de Santos representados.
Santa Madalena, Santa Catarina e Santo Antão acompanham o nosso Santo.
Fotografias
de 15 de Julho de 2023
José
Liberato
O cão que faz ão ão / É bom amigo como os que são / É bom amigo, bom
companheiro / Que o diga o seu dono, assim damos a palavra a
Manuel Alegre
A literatura começou com os poemas homéricos e há um momento de rara
beleza naquele tropel de crueldades da guerra de Troia e das vicissitudes a que
foi sujeito Ulisses que é o seu regresso a Ítaca e o encontro com o seu cão,
seguramente muito velhinho, que o reconhece e morre. Algo de profundamente
tocante terá de haver num livro que fez 20 anos e conheceu 30 edições, em que o
protagonista é um cão investido de várias funções, morto mas jamais
desaparecido, recordado com uma simplicidade de escrita, toda ela depurada, a
elegia de um animal que entrou lá em casa e ancorou na família, daí o feliz
achado de Clara Rocha no prefácio de culminar as suas observações invocando um
poema de Manuel Alegre em que o cão é o reflexo ou a imagem onde os membros do
clã se reveem, é a linhagem da presença-ausência, de quem não é servil, e
postula a irreverência, a par da incomensurável fidelidade.
Sou do tempo em que sabíamos de cor o poema de Afonso Lopes Vieira
cujas linhas iniciais usurpei para este sincero paraninfo para a edição
especial de 20 anos, aos belos desenhos de Bárbara Assis Pacheco e à luminosidade
com que Clara Rocha prefacia a obra. Quando pela primeira li este Cão Como
Nós, recordei um serão caseiro, a minha mãe a ler os Bichos, de
Miguel Torga, à minha avó enferma, esta insistia sempre em duas histórias,
vá-se lá saber porquê: Nero, o cão, e Madalena, a mulher que vai parir nas
fragas. Ora este cão de nome Kurika era um irreverente para o dono, finório e
com ademanes de fidalguia, o luto do dono, inevitavelmente emerge dos seus
dotes poéticos, o cão é sonhado, imaginado o seu reaparecimento, imagina-se que
raspa as portas, quer entrar em casa, o dono grita-lhe “fica!” e tira-se uma
conclusão:
“E ele ficava mesmo, nem que tivesse que o empurrar para baixo até ele
se deitar, sempre contrafeito, olhando-me de esguelha, jamais convencido de que
entre humanos e cães há uma diferença e que essa diferença é favorável aos
primeiros. Era um cão rebelde, teimoso, de certo modo subversivo. Às vezes
insuportável.
- Como nós – diriam depois os meus filhos.”
Cão vigilante, companheiro dos filhos, já se viu que arisco ao dono, a
desafiá-lo, manda a verdade que se diga que não era expedito nem esforçado na
caça, isto é, caçava de modo independente, o dono afaga-o em memória quando ele
aparecia com um coelho ou uma perdiz na boca:
“- Cão bonito – dizia-lhe eu, fazendo-lhe festas ou apertando-lhe o
nariz para ele largar a presa. Nessas alturas ele portava-se como um cão
propriamente dito, dava corridas e pulos de contentamento. O que me fez chegar
à conclusão de que tudo seria diferente se ele tivesse podido ser, como era por
certo a sua vocação, um cão de caça.”
E o autor acaba por nos contar um pormenor íntimo, embevece-se e deixa
o leitor embevecido: “Queria sempre estar connosco a sós. Ladrava ao carteiro,
ao eletricista, a quem quer que não fosse da casa. Cão exclusivista. Mas também
ator. Quando havia visitar mudava de tática. Com total perversidade, ele, que
nunca prestava vassalagem a ninguém, escolhia uma vítima, aproximava-se devagar
e encostava a cabeça a pedir-lhe festas, expressão de mágoa e súplica, como
quem diz: Já que eles mas não fazem, faça-mas você. Teatro, puro teatro. Mas
havia quem se deixasse levar. Uma amiga da casa chegou a dizer: “O cão anda
triste, deve estar cheiro de carências. E ele enroscado na sala, a olhar de
soslaio para nós, com ar de gozo.”
Aqui e acolá pintalga-se uma atmosférica poética, já no prefácio Clara
Rocha recorda os traços autobiográficos na obra de Manuel Alegre e, portanto,
faz todo o sentido esta confidência que parece uma página de diário: “Há
momentos em que parto para não sei onde. Navegação espiritual. Ou dispersão na
terra abstrata, a única que se vê quando não se vê. São as grandes caçadas
dentro de mim mesmo, a busca da magia perdida, uma palavra cintilante, uma
perdiz imaginária, um sopro, um ritmo, uma espécie de bafo. Como o teu. Às
vezes sinto-o, outras não. Mas sei que estás aí, algures, enroscado na minha
própria solidão.
Estamos agora quando me ocorre uma analogia com Platero e Eu, de
Juan Ramón Jiménez, o animal envelhece, o dono adoça as expressões exultantes,
parece ter carga premonitória, dá pelas ausências. Tinha paixões, houve
discussões em meio familiar, o dono rotulou-o de tarado sexual, a filha
corrigiu: “Está apaixonado.” Paixão ou cio, a coisa medrava, apareciam novos
cães, as parecenças não mereciam discussão. Uma vez desapareceu, quem o
desencantou foi até à GNR, enquanto a família soprava de pânico, voltou e
parecia amuado. Os comportamentos do Kurika levantavam comentários familiares e
analogias com os humanos. O poeta teve um problema de coração e ficou a crença
que o cão começou a olhá-lo de outro modo, o poeta gostava e até alguém se
atreveu lá em casa a dizer que o cão resmungava como o dono, a verdade é que a
coisa mudou: “Dei por mim a conversar com o cão, sempre que estávamos sós. Digo
bem: conversar. Se ele nunca chegava, como pretendia, à enunciação, não tenho
dúvida que compreendia a humana fala.” Chegou a hora do sofrimento, o primeiro
ataque, alguém de novo se atreveu a fazer comparações com o poeta, uma força da
natureza, um verdadeiro resistente.
Aquele veio de vida cede, o cão está desorientado, é levado para a
clínica, é a despedida, é tornado emocionante: “A minha mulher chorava e eu até
um beijo dei ao cão. Respirava cada vez com maior dificuldade. Mas de certo
modo estava em paz. Já não resistia. Estava a entregar-se. Eu acho que a nós,
mais do que à morte.”
O cão rebelde, caprichoso, desobediente, o tal cão da família onde o
poema de Manuel Alegre Cão Como Nós tateia uma linhagem comum, partiu.
Inevitavelmente, um halo poético evola-se, incandescente:
“Eu gostava que o espírito dele permanecesse aqui connosco. Foi talvez
por isso que escrevi este livro. Hoje sei algumas das coisas que ele sabia.
Assim como depois do meu pai morrer o cão continuava a deitar-se aos pés dele,
tenho a certeza de que estou a escrever com ele deitado ao meu lado esquerdo,
como sempre fazia quando eu me sentava no escritório. Estou a escrever o livro
e quase sinto a respiração dele. Agora que acabei, posso fazer-lhe uma festa e
dizer-lhe:
- Cão bonito.”
30 edições só é possível neste país quando a palavra viva serve para
iluminar o amor que podemos dedicar a um animal. E voltando a uma subtileza de
Clara Rocha e a sua chamada de atenção para o título da obra tão sugestivo, o
tal espírito de linhagem e aliança, modelado num retrato de família, “escrito
ao rés do vivido e com grau mínimo de ocultação ficcional.”
Mais 30 edições nos próximos 20 anos, são os meus votos, meu caro
Manuel Alegre.
Mário Beja Santos
A
outra cidade portuguesa ainda não tratada nestas crónicas é Braga.
A
igreja de São João da Ponte, é o centro das festividades da cidade por ocasião
do dia de São João:
No
altar-mor, uma imagem de São Cristóvão certamente em homenagem aos peregrinos
que acorrem ao local:
A
igreja situa-se na margem do Rio Este.
No leito do rio, em plena representação da sua iconografia, encontra-se para as Festas de São João uma imagem do Santo:
Mais
inesperado é encontrar uma imagem de São Cristóvão no exterior de uma loja do chinês.
Evidentemente
que há uma explicação.
Este
edifício data do início da massificação do automóvel em Braga nos anos de 50 do
Século XX.
Foi
construído de raiz como garagem da FORD. Era simultaneamente bomba de gasolina,
oficina e stand de venda de automóveis.
Agradeço à Arquitecta Fátima Pereira a ajuda na cidade de Braga para a elaboração deste texto.
Fotografias
de 19 de Junho de 2023
José
Liberato