O cão que faz ão ão / É bom amigo como os que são / É bom amigo, bom
companheiro / Que o diga o seu dono, assim damos a palavra a
Manuel Alegre
A literatura começou com os poemas homéricos e há um momento de rara
beleza naquele tropel de crueldades da guerra de Troia e das vicissitudes a que
foi sujeito Ulisses que é o seu regresso a Ítaca e o encontro com o seu cão,
seguramente muito velhinho, que o reconhece e morre. Algo de profundamente
tocante terá de haver num livro que fez 20 anos e conheceu 30 edições, em que o
protagonista é um cão investido de várias funções, morto mas jamais
desaparecido, recordado com uma simplicidade de escrita, toda ela depurada, a
elegia de um animal que entrou lá em casa e ancorou na família, daí o feliz
achado de Clara Rocha no prefácio de culminar as suas observações invocando um
poema de Manuel Alegre em que o cão é o reflexo ou a imagem onde os membros do
clã se reveem, é a linhagem da presença-ausência, de quem não é servil, e
postula a irreverência, a par da incomensurável fidelidade.
Sou do tempo em que sabíamos de cor o poema de Afonso Lopes Vieira
cujas linhas iniciais usurpei para este sincero paraninfo para a edição
especial de 20 anos, aos belos desenhos de Bárbara Assis Pacheco e à luminosidade
com que Clara Rocha prefacia a obra. Quando pela primeira li este Cão Como
Nós, recordei um serão caseiro, a minha mãe a ler os Bichos, de
Miguel Torga, à minha avó enferma, esta insistia sempre em duas histórias,
vá-se lá saber porquê: Nero, o cão, e Madalena, a mulher que vai parir nas
fragas. Ora este cão de nome Kurika era um irreverente para o dono, finório e
com ademanes de fidalguia, o luto do dono, inevitavelmente emerge dos seus
dotes poéticos, o cão é sonhado, imaginado o seu reaparecimento, imagina-se que
raspa as portas, quer entrar em casa, o dono grita-lhe “fica!” e tira-se uma
conclusão:
“E ele ficava mesmo, nem que tivesse que o empurrar para baixo até ele
se deitar, sempre contrafeito, olhando-me de esguelha, jamais convencido de que
entre humanos e cães há uma diferença e que essa diferença é favorável aos
primeiros. Era um cão rebelde, teimoso, de certo modo subversivo. Às vezes
insuportável.
- Como nós – diriam depois os meus filhos.”
Cão vigilante, companheiro dos filhos, já se viu que arisco ao dono, a
desafiá-lo, manda a verdade que se diga que não era expedito nem esforçado na
caça, isto é, caçava de modo independente, o dono afaga-o em memória quando ele
aparecia com um coelho ou uma perdiz na boca:
“- Cão bonito – dizia-lhe eu, fazendo-lhe festas ou apertando-lhe o
nariz para ele largar a presa. Nessas alturas ele portava-se como um cão
propriamente dito, dava corridas e pulos de contentamento. O que me fez chegar
à conclusão de que tudo seria diferente se ele tivesse podido ser, como era por
certo a sua vocação, um cão de caça.”
E o autor acaba por nos contar um pormenor íntimo, embevece-se e deixa
o leitor embevecido: “Queria sempre estar connosco a sós. Ladrava ao carteiro,
ao eletricista, a quem quer que não fosse da casa. Cão exclusivista. Mas também
ator. Quando havia visitar mudava de tática. Com total perversidade, ele, que
nunca prestava vassalagem a ninguém, escolhia uma vítima, aproximava-se devagar
e encostava a cabeça a pedir-lhe festas, expressão de mágoa e súplica, como
quem diz: Já que eles mas não fazem, faça-mas você. Teatro, puro teatro. Mas
havia quem se deixasse levar. Uma amiga da casa chegou a dizer: “O cão anda
triste, deve estar cheiro de carências. E ele enroscado na sala, a olhar de
soslaio para nós, com ar de gozo.”
Aqui e acolá pintalga-se uma atmosférica poética, já no prefácio Clara
Rocha recorda os traços autobiográficos na obra de Manuel Alegre e, portanto,
faz todo o sentido esta confidência que parece uma página de diário: “Há
momentos em que parto para não sei onde. Navegação espiritual. Ou dispersão na
terra abstrata, a única que se vê quando não se vê. São as grandes caçadas
dentro de mim mesmo, a busca da magia perdida, uma palavra cintilante, uma
perdiz imaginária, um sopro, um ritmo, uma espécie de bafo. Como o teu. Às
vezes sinto-o, outras não. Mas sei que estás aí, algures, enroscado na minha
própria solidão.
Estamos agora quando me ocorre uma analogia com Platero e Eu, de
Juan Ramón Jiménez, o animal envelhece, o dono adoça as expressões exultantes,
parece ter carga premonitória, dá pelas ausências. Tinha paixões, houve
discussões em meio familiar, o dono rotulou-o de tarado sexual, a filha
corrigiu: “Está apaixonado.” Paixão ou cio, a coisa medrava, apareciam novos
cães, as parecenças não mereciam discussão. Uma vez desapareceu, quem o
desencantou foi até à GNR, enquanto a família soprava de pânico, voltou e
parecia amuado. Os comportamentos do Kurika levantavam comentários familiares e
analogias com os humanos. O poeta teve um problema de coração e ficou a crença
que o cão começou a olhá-lo de outro modo, o poeta gostava e até alguém se
atreveu lá em casa a dizer que o cão resmungava como o dono, a verdade é que a
coisa mudou: “Dei por mim a conversar com o cão, sempre que estávamos sós. Digo
bem: conversar. Se ele nunca chegava, como pretendia, à enunciação, não tenho
dúvida que compreendia a humana fala.” Chegou a hora do sofrimento, o primeiro
ataque, alguém de novo se atreveu a fazer comparações com o poeta, uma força da
natureza, um verdadeiro resistente.
Aquele veio de vida cede, o cão está desorientado, é levado para a
clínica, é a despedida, é tornado emocionante: “A minha mulher chorava e eu até
um beijo dei ao cão. Respirava cada vez com maior dificuldade. Mas de certo
modo estava em paz. Já não resistia. Estava a entregar-se. Eu acho que a nós,
mais do que à morte.”
O cão rebelde, caprichoso, desobediente, o tal cão da família onde o
poema de Manuel Alegre Cão Como Nós tateia uma linhagem comum, partiu.
Inevitavelmente, um halo poético evola-se, incandescente:
“Eu gostava que o espírito dele permanecesse aqui connosco. Foi talvez
por isso que escrevi este livro. Hoje sei algumas das coisas que ele sabia.
Assim como depois do meu pai morrer o cão continuava a deitar-se aos pés dele,
tenho a certeza de que estou a escrever com ele deitado ao meu lado esquerdo,
como sempre fazia quando eu me sentava no escritório. Estou a escrever o livro
e quase sinto a respiração dele. Agora que acabei, posso fazer-lhe uma festa e
dizer-lhe:
- Cão bonito.”
30 edições só é possível neste país quando a palavra viva serve para
iluminar o amor que podemos dedicar a um animal. E voltando a uma subtileza de
Clara Rocha e a sua chamada de atenção para o título da obra tão sugestivo, o
tal espírito de linhagem e aliança, modelado num retrato de família, “escrito
ao rés do vivido e com grau mínimo de ocultação ficcional.”
Mais 30 edições nos próximos 20 anos, são os meus votos, meu caro
Manuel Alegre.
Mário Beja Santos
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