Andreia
Barbosa está de parabéns com este seu tão bem elaborado e pertinente ensaio
intitulado O Lixo em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos,
2023.
É
uma visão do lixo em caleidoscópio, e onde não se esquece o passado, como
tratávamos o lixo e havia sinergias entre a vida doméstica, a agricultura e
criação animal, a dispersão habitacional e a simplicidade dos materiais em
circulação. Tudo mudou e o lixo tornou-se uma questão coletiva premente. A
autora lembra-nos o tipo de soluções do passado e como se caminhou para uma
sociedade de consumo onde a resposta a estes volumes colossais de lixo fazem
também parte da questão ambiental, ela lembra os nossos resíduos incinerados,
aterrados e continuam connosco – sob a forma de gases de efeito de estufa e poluição
atmosférica, aquática e terrestre, em depósitos subterrâneos e a céu aberto, em
amontoados flutuantes e submersos. Por aqui passa o desafio: “Portugal tenta
agora restabelecer as ligações que se romperam no metabolismo social,
reconciliar resíduos e economia, pôr a matéria no lugar.”
Em
narrativa aliciante, fala-nos dos resíduos urbanos, nos não-urbanos (os
resíduos da produção), não esquece a agricultura, a atividade mineira, os
resíduos de construção e demolição, como são escondidos. E há os resíduos do
consumo (cerca de 40% do nosso lixo urbano é orgânico), não esquecer os
têxteis, o mobiliário e os equipamentos elétricos e eletrónicos. E vale a pena
também clarificar aonde e quanto são os nossos resíduos urbanos.
E
desvia-se o nosso olhar para os negócios do lixo, que tem como ator principal o
Grupo Mota-Engil, como se organizam os sistemas de gestão de resíduos urbanos e
quais as empresas mais proeminentes envolvidas. E há a legislação, a
Diretiva-Quadro de Resíduos, são referidos os princípios da hierarquia dos
resíduos, do planeamento, da autossuficiência e proximidade e o princípio do
poluidor-pagador. Registados os movimentos transfronteiriços de resíduos, a
autora dá conta dos instrumentos económicos para domar o lixo e recorda que nós
todos somos agentes económicos cujo comportamento em matéria de lixo é
determinante.
E
também fica esclarecido como é que nos anos 1980, em que Portugal era um país
de lixeiras tudo veio a mudar, o país foi dotado de um Plano Estratégico Para
os Resíduos Urbanos, como passámos a tratar as lixeiras e os aterros
sanitários. Põe-se em equação o que queimar ou não queimar, no fundo que papel
deverá ter a incineração, onde devem ser os locais onde colocamos o que deixou
de ter interesse para nós, o que rejeitamos, como o cidadão é o primeiro gestor
no sistema de gestão de resíduos, o seu papel na recolha seletiva, decorrem as
experiências, chegou agora um novo elemento de interferência, o digital que
terá um papel positivo em pôr o lixo como matéria-prima.
Fala-se
igualmente do lixo orgânico, da reciclagem do vidro, dos papéis, das embalagens
mais complexas, dos têxteis, e entra-se num novo capítulo que se presta a uma
leitura absorvente, os que vivem do lixo, a autora vai buscar um exemplo que
forçosamente nos põe a pensar:
“No
universo da catação, o caso dos zabaline (coletores do lixo) do Cairo não tem
paralelo. Num bairro da periferia da capital egípcia foram-se concentrando, ao
longo do tempo, uma série de atividades de recolha e reciclagem de resíduos que
hoje absorvem, com grande eficiência material, os desperdícios urbanos. A
comunidade de zabaline tem origem na migração de cristãos coptas do campo para
a cidade. Discriminada pela maioria muçulmana, a comunidade foi encontrando
sustento na criação de porcos que alimentava com restos de comida recuperados
no centro. Dos resíduos orgânicos para o aproveitamos dos outros materiais
contidos nos caixotes do lixo urbanos foi um passo, e hoje cerca de 30 mil
pessoas ganham assim a vida neste bairro. Os zabaline desenvolveram oficinas de
reciclagem de pequena escala, triturando e granulando sacos de plástico para
fazerem tubagens, derretendo plástico de velhas televisões para moldar cabides,
separando manualmente o plástico do metal nas latas de aerossóis para
viabilizar a sua fundição, produzindo lingotes de alumínio reciclado para
exportar. É evidente o refinamento que o trabalho manual introduz no processo
de triagem; e é evidente que só num contexto de profunda desigualdade e
marginalização é possível a sua existência em tal escala.” E a autora aproveita
a circunstância para referir a ligação entre a recuperação de desperdícios e
remediação das margens da sociedade, o que a leva a dizer que em Portugal as
organizações de economia social e solidária têm pouca expressão no universo da
reutilização e reciclagem, comparativamente à Europa, e não nos devemos
abstrair de que este trabalho com lixo é penoso, estigmatizado e mal pago; quem
anda nos camiões à noite só fica enquanto não encontra nada de melhor.
O
“lixo zero” é uma utopia, o lixo está connosco para ficar, resta agora a
ousadia do aproveitar até ao limite, de o integrar na economia circular,
começam a aparecer respostas, é o caso das necessidades materiais de construção
e renovação que podem ser em parte supridas com materiais e componentes usadas,
o que só é possível se dispusermos de lugares intermédios que permitam
armazenar e dar acesso a materiais entre o momento da sua desconstrução e o
momento da sua nova aplicação. Os exemplos proliferam. E a autora deixa-nos uma
mensagem de esperança:
“Conviver
com o lixo é: explorar formas de ‘fazer mundo’ com o lixo, mesmo sabendo que
elas só podem absorver uma ínfima quantidade de material que desqualificamos. É
também apreciar os benefícios da reciclagem, e promovê-la, sem lhe chamar
‘solução’. É deixar de fechar os olhos aos processos de gestão de resíduos que
deslocam – para a atmosfera, para as periferias pobres, para o futuro – vastas
quantidades de materiais, com consequências nefastas, e tentar corrigir essas
injustiças. Esquecer a salvação – do planeta ou nossa e cuidar dos nossos
monstros.”
É
um belíssimo ensaio para circular pelas escolas, para contar a história do lixo
como problema coletivo de origem urbana, para sensibilizar para a economia do
lixo e como este é parte integrante da questão ambiental. E como diz a autora,
“Para que nos apropriemos do nosso lixo, em vez de simplesmente o deitarmos
fora tentando não pensar no seu destino”.
Mário Beja Santos
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