quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O desafio é de todos nós: dar mais vida ao lixo.


 



 

Andreia Barbosa está de parabéns com este seu tão bem elaborado e pertinente ensaio intitulado O Lixo em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023.

É uma visão do lixo em caleidoscópio, e onde não se esquece o passado, como tratávamos o lixo e havia sinergias entre a vida doméstica, a agricultura e criação animal, a dispersão habitacional e a simplicidade dos materiais em circulação. Tudo mudou e o lixo tornou-se uma questão coletiva premente. A autora lembra-nos o tipo de soluções do passado e como se caminhou para uma sociedade de consumo onde a resposta a estes volumes colossais de lixo fazem também parte da questão ambiental, ela lembra os nossos resíduos incinerados, aterrados e continuam connosco – sob a forma de gases de efeito de estufa e poluição atmosférica, aquática e terrestre, em depósitos subterrâneos e a céu aberto, em amontoados flutuantes e submersos. Por aqui passa o desafio: “Portugal tenta agora restabelecer as ligações que se romperam no metabolismo social, reconciliar resíduos e economia, pôr a matéria no lugar.”

Em narrativa aliciante, fala-nos dos resíduos urbanos, nos não-urbanos (os resíduos da produção), não esquece a agricultura, a atividade mineira, os resíduos de construção e demolição, como são escondidos. E há os resíduos do consumo (cerca de 40% do nosso lixo urbano é orgânico), não esquecer os têxteis, o mobiliário e os equipamentos elétricos e eletrónicos. E vale a pena também clarificar aonde e quanto são os nossos resíduos urbanos.

E desvia-se o nosso olhar para os negócios do lixo, que tem como ator principal o Grupo Mota-Engil, como se organizam os sistemas de gestão de resíduos urbanos e quais as empresas mais proeminentes envolvidas. E há a legislação, a Diretiva-Quadro de Resíduos, são referidos os princípios da hierarquia dos resíduos, do planeamento, da autossuficiência e proximidade e o princípio do poluidor-pagador. Registados os movimentos transfronteiriços de resíduos, a autora dá conta dos instrumentos económicos para domar o lixo e recorda que nós todos somos agentes económicos cujo comportamento em matéria de lixo é determinante.

E também fica esclarecido como é que nos anos 1980, em que Portugal era um país de lixeiras tudo veio a mudar, o país foi dotado de um Plano Estratégico Para os Resíduos Urbanos, como passámos a tratar as lixeiras e os aterros sanitários. Põe-se em equação o que queimar ou não queimar, no fundo que papel deverá ter a incineração, onde devem ser os locais onde colocamos o que deixou de ter interesse para nós, o que rejeitamos, como o cidadão é o primeiro gestor no sistema de gestão de resíduos, o seu papel na recolha seletiva, decorrem as experiências, chegou agora um novo elemento de interferência, o digital que terá um papel positivo em pôr o lixo como matéria-prima.

Fala-se igualmente do lixo orgânico, da reciclagem do vidro, dos papéis, das embalagens mais complexas, dos têxteis, e entra-se num novo capítulo que se presta a uma leitura absorvente, os que vivem do lixo, a autora vai buscar um exemplo que forçosamente nos põe a pensar:

“No universo da catação, o caso dos zabaline (coletores do lixo) do Cairo não tem paralelo. Num bairro da periferia da capital egípcia foram-se concentrando, ao longo do tempo, uma série de atividades de recolha e reciclagem de resíduos que hoje absorvem, com grande eficiência material, os desperdícios urbanos. A comunidade de zabaline tem origem na migração de cristãos coptas do campo para a cidade. Discriminada pela maioria muçulmana, a comunidade foi encontrando sustento na criação de porcos que alimentava com restos de comida recuperados no centro. Dos resíduos orgânicos para o aproveitamos dos outros materiais contidos nos caixotes do lixo urbanos foi um passo, e hoje cerca de 30 mil pessoas ganham assim a vida neste bairro. Os zabaline desenvolveram oficinas de reciclagem de pequena escala, triturando e granulando sacos de plástico para fazerem tubagens, derretendo plástico de velhas televisões para moldar cabides, separando manualmente o plástico do metal nas latas de aerossóis para viabilizar a sua fundição, produzindo lingotes de alumínio reciclado para exportar. É evidente o refinamento que o trabalho manual introduz no processo de triagem; e é evidente que só num contexto de profunda desigualdade e marginalização é possível a sua existência em tal escala.” E a autora aproveita a circunstância para referir a ligação entre a recuperação de desperdícios e remediação das margens da sociedade, o que a leva a dizer que em Portugal as organizações de economia social e solidária têm pouca expressão no universo da reutilização e reciclagem, comparativamente à Europa, e não nos devemos abstrair de que este trabalho com lixo é penoso, estigmatizado e mal pago; quem anda nos camiões à noite só fica enquanto não encontra nada de melhor.

O “lixo zero” é uma utopia, o lixo está connosco para ficar, resta agora a ousadia do aproveitar até ao limite, de o integrar na economia circular, começam a aparecer respostas, é o caso das necessidades materiais de construção e renovação que podem ser em parte supridas com materiais e componentes usadas, o que só é possível se dispusermos de lugares intermédios que permitam armazenar e dar acesso a materiais entre o momento da sua desconstrução e o momento da sua nova aplicação. Os exemplos proliferam. E a autora deixa-nos uma mensagem de esperança:

“Conviver com o lixo é: explorar formas de ‘fazer mundo’ com o lixo, mesmo sabendo que elas só podem absorver uma ínfima quantidade de material que desqualificamos. É também apreciar os benefícios da reciclagem, e promovê-la, sem lhe chamar ‘solução’. É deixar de fechar os olhos aos processos de gestão de resíduos que deslocam – para a atmosfera, para as periferias pobres, para o futuro – vastas quantidades de materiais, com consequências nefastas, e tentar corrigir essas injustiças. Esquecer a salvação – do planeta ou nossa e cuidar dos nossos monstros.”

É um belíssimo ensaio para circular pelas escolas, para contar a história do lixo como problema coletivo de origem urbana, para sensibilizar para a economia do lixo e como este é parte integrante da questão ambiental. E como diz a autora, “Para que nos apropriemos do nosso lixo, em vez de simplesmente o deitarmos fora tentando não pensar no seu destino”.


                                                                            Mário Beja Santos




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