Há exactamente 18 anos, num dia 22 de
Fevereiro, morria Gisberta Salce Júnior no Porto. Causa da morte: afogamento.
Causa da causa: sete dias (sete!) a levar pancada de um grupo de 14 rapazes
adolescentes, que a deixaram inconsciente e, temendo tê-la matado, resolveram
atirá-la para um poço.
Causa da causa da causa: transfobia.
Causas da causa da causa da causa: invisibilidade social das pessoas
transgénero e hostilidade generalizada para com elas, bem como o facto de que
os 14 adolescentes, nascidos em contextos de violência e negligência, estavam
entregues a uma instituição de acolhimento cuja ideia de integração social
consistia em ensinar um ofício e o temor a Deus, bem como em, aos
fins-de-semana, deixar jovens com tal passado à sua sorte, livres para cirandar
e asneirar pela cidade. O local onde encontraram e mataram Gisberta ficava a 40
minutos a pé da instituição que os (des)acolhia.
Gisberta nasceu no Brasil e emigrou
aos 18 anos, fugida de uma vaga de assassinatos transfóbicos. Viveu no Porto os
últimos 20 dos seus 46 anos de vida. Nos últimos 10, com SIDA. Fez de Marilyn
Monroe em espectáculos transformistas na noite portuense, prostituiu-se para
ganhar a vida. Foi sem-abrigo nos seus últimos anos. Esse foi o estado em que 3
dos 14 adolescentes a encontraram e, apiedando-se dela inicialmente, lhe deram
de comer, conversaram com ela, voltaram várias vezes. Até que falaram dela aos
outros 11 e tudo descambou.
O horror da morte de Gisberta levou
Pedro Abrunhosa e Maria Bethânia a cantá-la, originou peças de teatro e uma
curta-metragem premiada (em breve, também o fabuloso livro de Afonso Reis
Cabral sobre o tema será vertido em filme). Os crimes transfóbicos passaram a
ter penas pesadas, nasceram o Centro Gis e a Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto
para dar apoio e visibilidade às pessoas transgénero.
Outra prova de que Gisberta não
morreu em muitos corações é que em breve haverá uma Rua Gisberta Salce
Júnior no Porto. Ficará entre a Rua e a Travessa das Eirinhas, na freguesia
do Bonfim. A poucos minutos de onde Gisberta teve casa e dois cães, e a ainda
menos minutos de onde foi sem-abrigo e perdeu a vida de modo horrível.
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