segunda-feira, 29 de abril de 2024

Eu canto as armas e os trabalhos pelo meu país de abril.

 

 



 

Andei de terra em terra/por esse mundo que de certo modo descobri./E fui soldado contra a minha própria guerra/eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui. São versos de um livro mítico intitulado Praça da Canção, que circulava em ciclostilo e chegávamos a trautear nos nossos grupos de adolescentes maduros e ainda hoje me pergunto como pude declamar naquelas reuniões da Juventude Universitária Católica Nambuangongo, Meu Amor, o mais belo poema de toda a literatura da guerra colonial e ver gente profundamente comovida, e nenhum de nós pensava como o vate anunciava o país de abril. São coisas que aconteceram há 60 anos, denúncias e premonições, e o seu autor, Manuel Alegre, faz agora a contabilidade do que lhe foi dado viver em Memórias Minhas, ele chama-se Manuel Alegre, Publicações Dom Quixote, uma incomparável lírica e prosa em peregrinação de lembranças onde cabe o meio familiar, o 1º ensino escolar, a viagem de Águeda para Lisboa, depois o Porto, o seu deslumbramento em Coimbra, com fados e guitarradas, teatro e poesia e a inevitável intervenção política, lavram-se os nomes influentes e determinantes, Paulo Quintela, e também os acontecimentos determinantes, as eleições presidenciais de 1958, segue-se a vida militar, de Mafra para os Arrifes (Ponta Delgada), de avião para Angola, de Luanda para Quipedro, assim chegamos a Nambuangongo, onde o poeta olhou a morte e ficou nu, aquela Nambuangongo universal que qualquer antigo combatente guardou na consciência, pois naquela guerra o tempo cabia num minuto e doía fundo toda aquela negridão da morte. E a guerra continua, há lembranças de Sanza Pombo e Quicua. A contestação pagava-se caro, segue-se a prisão de São Paulo, os interrogatórios da PIDE, alguém ali ao pé vai tomando nota, chama-se Luandino Vieira, e depois despachado para Lisboa, regresso a Coimbra, a intervenção política é um processo irreversível, impõe-se partir para o exílio.

O leitor está sufocado pela tensão daquela viagem a caminho do exílio, há um espaço luminoso, a Casa do Vilar, como o autor observa: “Acabo de entrar numa casa de onde nunca mais sairei.” Nesta altura, o poeta vai pondo ordem nos poemas que andavam dispersos, vão começar dez anos de exílio, ganham corpo as suas intervenções na rádio, as emissões da Voz da Liberdade. Num daqueles ápices malabares que a escrita inflamada permite, incendeia-se a lembrança do regresso a Águeda, a 10 de maio de 1964, já houve um processo político, uma rotura com crenças e convicções, o poeta entrou noutro trilho de intervenções, se houve desilusões já são uma nota do passado, ficou, como ele escreve a “nostalgia da epopeia”, dirá abertamente: “Porque não é fácil regressar. Nem de um exílio, nem de um império.” As recordações intercalam-se, o poeta já não está em Argel, chegou a Lisboa, irá aderir ao Partido Socialista, a viagem muda de rumo, passa-se a ritmo trepidante os acontecimentos entre 1974 e 1976. É, por decisão, um interventor político, mas não abdicou de ser poeta, gozar a plenitude da escrita, vai fazendo a relação e os porquês das obras que vão surgindo, aqui e acolá vai pintalgando episódios humorísticos como uma reunião entre Mário Soares e Álvaro Pinhal que nunca mais acabava. “Tinha passado há muito a hora do jantar. Decidi avançar. Abri a porta e deparei com os dois sentados em frente à televisão. Estavam a ver, regalados, Gabriela, Cravo e Canela. Àquela hora, parava tudo. Inclusive Soares e Pinhal. E eu também, porque puxei de uma cadeira e sentei-me ao lado deles.” Sente-se a mágoa na escrita quando fala da rutura entre Soares e Zenha, e as inevitáveis consequências. A vida de deputado também não lhe escapa, tal como a evolução na liderança do Partido Socialista. Tinham-se mudado os tempos, dirá mesmo que já não havia a dimensão heroica da resistência, nem o entusiasmo e as ilusões líricas da revolução de Abril, ia ganhando força o modelo neoliberal, Manuel Alegre olha de viés os novos rumos a que levava a tirania do mercado, as suas posições face às sucessivas revisões constitucionais, enfatiza em permanência que era deputado por Coimbra e como terçou armas contra a coincineração de resíduos industriais perigosos em Souselas. E escreve entusiasmadamente: “Nunca escrevi e publiquei tanto como nesses anos de luta e múltiplas intervenções políticas. E quem é que deu por isso? Quem reparou que, estivesse onde estivesse, eu estava a escrever, sobretudo quando parecia distraído? À noite sentava-me a olhar para dentro? Estava a compor. Como contar essa toada que vem de repente, essa palavra, aparentemente absurda, que abre as vias subterrâneas do poema? Nesse sentido, os poetas não têm biografia, a não ser o próprio poema ou o texto em que se transmudam. Aos olhos dos outros e do público, eu era o político. O poeta escrevia secretamente, por vezes quase clandestinamente.” Falando adiante dos prémios que recebeu, estabelece uma distinção, sente-se que a sua opinião é irrefragável: “Praça da Canção e O Canto e as Armas não foram apenas dois livros emblemáticos e populares. Foram livros cujos poemas tiveram consequências concretas no país e contribuíram, à sua maneira, para derrubar a ditadura. Esse foi o maior de todos os prémios.”

Há mais pessoa do que o político e o poeta, já falara da caça nos tempos de juventude, agora fala do tiro e fundamentalmente da pesca, escolheu um paraíso, a Foz do Arelho e a Lagoa de Óbidos. Retomando o discurso da intervenção política vão seguir-se trocas de opiniões muito tensas entre ele e Mário Soares, contendas de eleições presidenciais, e depois ajeita a sua mágoa, como um queixume, em julho de 2004 morreu um outro astro-rei da poesia, Sophia de Mello Breyner, não esqueceu uma viagem em que a poetisa estava a escrever Navegações. “Acompanhei o nascimento de quase todos os poemas deste livro. Recordo uma tarde, em sua casa, em que ela só disse um verso, um verso formidável: ‘Navegavam sem o mapa que faziam.’”

Chegou o momento de dizer adeus à Assembleia da República, onde permaneceu 34 anos. Visitou Nambuangongo em 2010, informa o leitor que escrita para ele sempre foi um labor solitário, quase uma clandestinidade, faz uma nova ronda pelos amigos e temos uma nova pitada de humor quase se refere a José Carlos de Vasconcelos. “Aturamo-nos e amparamo-nos há quase sessenta anos. Viajámos juntos, durante um mês, pelos Estados Unidos, de costa a costa. Ele come muito devagar, eu como muito depressa. Nunca nos zangámos uma única vez. É a prova mais dura a que pode ser submetida uma amizade. Sobretudo porque nessa altura eu fumava e tinha de esperar meia hora ou mais que o Zé Carlos acabasse a refeição. Presta uma última homenagem a Mário Soares e de novo ergue o seu estandarte a favor da convergência das esquerdas, deu um empurrão para que gerigonça se pusesse à estrada. Mas a vida partidária deixou de o interessar, anotará, com um ressaibo de amargura: “Tudo passa, tudo esquece. Pior que o tempo só o telemóvel das pessoas que falam a olhar para o ecrã, já não sabem ouvir sem a chegada de um SMS, não leem, não vão ao cinema, não ouvem música, não sabem poesia. Sobretudo os políticos. Outro mundo, outra linguagem. Não vale a pena fazer prognósticos quanto ao legado que ficará para o futuro, e despede-se de nós com uma incontida esperança: “Eu espero que um dia alguém tropece num verso meu, ou prosa, ou uma qualquer palavra, nem sequer escrita, que tenha ficado aí pelo ar e ninguém saiba ao certo de onde veio.”

São memórias dele, são igualmente cativas das várias gerações que teimam identificar-se com a multiplicidade dos seus sonhos, goste ele ou não, personifica a épica do vigor camoniano onde não faltam as trombetas do futuro.

 

                                                            Mário Beja Santos

 


Sem comentários:

Enviar um comentário