Dentro do contexto do meu encontro no Palácio
Foz com o Secretário dos Serviços de Informação, Pedro Feytor Pinto, algumas
semanas após o 25 de Abril, não posso deixar de referir um episódio grotesco,
ocorrido nessa tarde no belíssimo átrio do dito Palácio, episódio de que, por
mero e feliz acaso, fui testemunha ocular e auricular, enquanto aguardava o
momento do encontro.
Sob
as lentes sôfregas e atentas das câmaras de um canal francês de televisão,
reuniram-se nessa tarde de primavera festiva umas duas ou três dúzias de
pseudoartistas - pintores, escultores e outros espécimes das artes plásticas –,
enquanto os autênticos artistas portugueses, alguns ex-exilados como eles,
estavam nos seus ateliers a fazer obra honrada, honesta, patriótica e relevante
para o novo Portugal.
Depois
de uma prolongada e acesa discussão, à guisa de planeamento e de ensaio geral,
e depois de um longo e meditabundo intervalo, os pseudoartistas, abusiva e
vaidosamente autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes
plásticas portuguesas, acercaram-se da estátua de Salazar, togado, erguida no
meio do átrio, formaram um círculo, e, movendo-se lentamente, um pouco
curvados, em torno da estátua, em ritmo de cortejo fúnebre e em forma de
bailado de bruxas goyescas, começaram a representar uma espécie de coro falado,
de que recordo perfeitamente o estribilho, ou, melhor dito, a antífona, por ter
sido repetido ad nauseam, em modo de
salmodia, sem a ressonância etérea e mística, claro está, que a verdadeira
salmodia, entoada em música gregoriana ou canto-chão, imprime na alma dos
cantores e dos ouvintes e os faz levitar: “a arte fascista / faz mal à vista”;
“a arte fascista / faz mal à vista”; “a arte fascista / faz mal à vista.”
Depois
dessa representação lúgubre e funérea, que se prolongou por cerca de uma hora,
sob os comentários picarescos e sarcásticos de um número razoável de
funcionários públicos que trabalhavam no Palácio Foz e que, sorrateiramente,
espreitavam da varanda e das janelas, comentários, repito, em que sobressaíam,
sussurradas sotto voce, por medo de represálias, frases como estas: - “ide
trabalhar, seus mandriões; ide ganhar o pão, seus parasitas; ide cortar essas
melenas e rapar essas barbaças; ide tomar banho e lavar essas fuças; deixai a
estátua em paz, que não vos fez mal nenhum”.
Claro
que estes dichotes eram proferidos de maneira a que os pseudoartistas e “os autoproclamados
representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas” os não
ouvissem. Ninguém queria ser apodado de fascista e de salazarista nem arriscar-se
à perda do emprego, por meio de um saneamento sumário, como estava de moda no
Portugal pós-abrilista. Mas desnecessário é dizer que nos rostos daqueles
honestos e modestos funcionários públicos, desde os contínuos às senhoras da
limpeza, se lia o desejo de levantar bem alto a voz do bom senso para fazer
saber àquela cambada de energúmenos, encapuçados à maneira dos irmãos das
confrarias que participam nas procissões do Senhor dos Passos ou nas procissões
da Semana Santa de Sevilha, que se ocupasse em actividades mais construtivas e
mais consentâneas com os nobres objectivos proclamados e habilidosamente
propagandeados nos múltiplos manifestos programáticos da Revolução dos Cravos.
Como
ia dizendo, depois de uma longa lengalenga soturna e macabra, repetida mil
vezes, ad nauseam, para benefício da
televisão francesa, os pseudoartistas, “autoproclamados representantes do
egrégio grémio das artes plásticas portuguesas”, guedelhudos e barbudos,
desdobram cerimoniosamente um enorme pano roxo e cobrem com ele a estátua togada
de Salazar, fazendo com ela o que se costuma fazer com os crucifixos e com as
estátuas dos santos das igrejas católicas, entre a quinta semana da Quaresma e
o Sábado de Aleluia.
Terminada
essa cerimónia grotesca e fúnebre, os pseudoartistas plásticos do novo Portugal
abandonaram o átrio do Palácio Foz, no meio de gargalhadas de mau gosto, com o
coração contente e a consciência tranquila por, segundo eles, novos
inquisidores e iconoclastas, haverem praticado um acto altamente meritório e
patriótico. Tinham profanado e dessacralizado a pacífica estátua de um homem
morto; eram heróis revolucionários; felicitavam-se uns aos outros por haverem
tido a coragem de praticar um portentoso feito de dimensões épicas – como diria
um dos exorcistas, guedelhudo, barbudo e de dentes nicotinados, em mau Francês,
à Mário Soares, para francês ver ... e ouvir, pois, volto a frisar, a lúgubre
cerimónia, de cariz iconoclástico e exorcista, foi profissionalmente filmada
por uma equipa de televisão francesa.
Manchester,
CT
22 de
Abril de 2024
António Cirurgião
Quando e onde é que foi transmitida a filmagem da televisão francesa?
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