Há
contracapas de livros que prendem imediatamente a atenção do leitor pela sua
capacidade de incisão e pelo acicate para a leitura. É o caso daquela que
acompanha Mapa Cor de Sangue, as lutas, as revoltas e as tragédias em
Portugal do tempo das Invasões Francesas, por Rui Cardoso, Oficina do Livro,
2024:
“Portugal,
1808. Uma revolução social que acompanha os levantamentos patrióticos. O povo
insurge-se contra a velha ordem de fidalgos e eclesiásticos e, ao mesmo tempo,
contra o jogo do invasor francês.
Em
Melgaço e Beja, populares lincham os magistrados, em Foz Côa, casas de famílias
abastadas são saqueadas. Por outro lado, quem ousa rebelar-se contra os
franceses é punido. Os habitantes de Vila Viçosa, Rio Maior, Alpedrinha e Régua
são brutalmente castigados pelos soldados de Napoleão, mas nada se compara aos
massacres em Leiria e Beja.
Os
ingleses desembarcam e os franceses negoceiam a saída. Mas regressam menos de
um ano depois. A guerrilha é espontânea, heroica e impiedosa. O general
Bernardim Freire de Andrade é linchado pelo povo. E a entrada das tropas
napoleónicas no Porto fica marcada pelas lutas casa a casa e pelo desastre da
Ponte das Barcas, no qual milhares de pessoas perdem a vida. Fuzila-se e
incendeia-se como método de contrainsurreição. Em São João da Madeira, a
retaliação pela morte de um oficial francês leva à execução de 1 em cada 5
homens e rapazes da Arrifana. A resistência em Amarante exaspera franceses, que
incendeiam a cidade.
Em
agosto de 1810, o rio Côa tinge-se de sangue do prelúdio do cerco de Almeida,
onde morrem meio milhar de defensores. Serão depois as vertentes do Buçaco a
fincar juncadas de corpos dos combatentes.
Portugal
entra no século XIX de forma violenta e traumática. Às invasões seguir-se-á a
luta entre liberais e absolutistas, e mesmo depois da vitória dos primeiros
haverá quase vinte anos de instabilidade, golpes militares e revoluções…”
É
uma obra divulgativa de alto nível, faz-nos compreender como todo este período
das invasões napoleónicas é o precedente sangrento do primeiro meio século do
século XIX habitado pela violência político-social, as sublevações populares,
as pilhagens à solta, toda esta turbulência só se acalmará com a Regeneração.
Portugal irá sendo arrastado para o conflito que estalou entre a França e a
Grã-Bretanha. A Corte partirá para o Brasil, fazendo-se acompanhar da
Biblioteca Real da Ajuda, que não mais regressou. Os invasores saquearam e
destruíram, a Bíblia dos Jerónimos será levada para França, tal com as coleções
do Museu de História Natural de Lisboa; num ato de puro vandalismo, o famoso
cadeiral que Olivier de Gand construiu no Capítulo da Igreja do Convento de
Cristo será reduzido a lenha. O regente e futuro rei D. João VI viverá em
permanente dilema, tentando negociar com ambas as partes; a Espanha, glutona,
tenta juntar-se a Napoleão e ficar com uma parte de Portugal. Rui Cardoso dá
conta dos efetivos portugueses, manifestamente impreparados, mas onde não
faltaram comandantes com visão de futuro. A Grã-Bretanha domina os mares, a
França possui um domínio terrestre. Para os britânicos, o teatro de operações
ideal é Portugal. “O lado britânico vai praticar em Portugal (e acessoriamente
em Espanha) um equivalente terrestre da guerra naval de corso. Ou seja, nunca
procurará defender território fixo (exceção feita ao polígono Lisboa-Julião da
Barra considerado vital para a retirada britânica em caso de malogro total),
procedendo quase como uma força de guerrilha moderna (…) Já a doutrina
napoleónica privilegiava a rapidez de movimentos, deslocando-se o exército com
pouca bagagem e dispensando os lentos e vulneráveis comboios de abastecimento.”
Por outras palavras, ambos os contendores esperam apossar-se dos recursos
portugueses.
De
forma expedita, o autor vai elencando os
acontecimentos avassaladores desde a Guerra das Laranjas (1801), em que
Portugal estava teoricamente obrigado a fechar os portos aos britânicos, é um
jogo dúplice até 1807, Junot atravessa o território português até Lisboa em
condições penosas, vê de uma colina de Lisboa a partida da família real sob
custódia da armada britânica; o jugo francês impõe-se, não faltará repressão,
Napoleão impõe o pagamento de contribuição de guerra a Portugal, e no fim do
ano Beresford ocupa a ilha da Madeira. Começa a resistência popular, não
faltarão levantamentos, o execrado general Loison, conhecido por o Maneta,
reprime com crueldade, será o caso de Évora, entre fuzilamentos e sacres há
pelo menos 1500 mortos. E chegam os ingleses, o primeiro choque acontecerá a 17
de agosto de 1808, na Roliça, no Bombarral, segue-se o Vimeiro, Junot pede para
negociar, sairá do país, de armas e bagagens e saque.
Meses
depois, dá-se a segunda invasão, no entretanto espalha-se os ideais liberais um
pouco por todo o país. É nesta invasão que se dá o desastre da Ponte das
Barcas, o general Soult cedo se apercebe que não tem espaço de manobra nem
meios suficientes, anda pelo norte do país à deriva, entra a ferro e fogo no
Porto. O general Wellesley, que ainda não é duque de Wellington, vem-lhe no
encalço, abandona Portugal pela Galiza, Soult, o duque da Dalmácia, abandona
Portugal pela Galiza, um dos heróis de Austerlitz foge do país às arrecuas. A
terceira e última invasão ocorrerá no verão de 1810. “A política de terra
queimada decretada pelo general Wellesley, agora duque de Wellington, e
aplicada quando o seu exército retirar para as Linhas de Torres Vedras, não se
limitará a dificultar o avanço das tropas francesas – significará a miséria, a
fome, e a devastação dos campos nas Beiras, no Ribatejo e no Oeste.”
Quem
comanda a nova invasão é André Masséna, um veterano, tem palmarés, veio
vitorioso da batalha de Essling e de Wagram, é valoroso, de uma bravura
incontestável. A sua operação baseava-se na entrada em Portugal pela raia do
Côa, seguida de um avanço sobre Lisboa utilizando os vales do Mondego e do
Tejo. O invasor desconhecia totalmente as Linhas de Torres. Masséna perde tempo
a cercar o resistente espanhol, cerca Almeida, segue para Pinhel, trava-se uma
batalha sangrenta com o exército anglo-luso, inconclusiva. Por puro acidente,
Almeida irá totalmente pelos ares, devido à explosão do arsenal, tenta acelerar
a marcha ao longo do Mondego. O confronto decisivo irá ter lugar no Buçaco, os
dois exércitos perseguem-se na direção de Lisboa, Masséna não sabe que o
esperam as Linhas de Torres Vedras, não chega a haver nenhum ataque em forma às
Linhas, Masséna vê-se obrigado a retirar em novembro. “As Linhas de Torres
Vedras e a política de terra queimada tinham vencido os melhores soldados da
época, mas à custa de um país devastado e dezenas de milhares de pessoas mortas
de fome e de doença.” Napoleão perde condições para voltar a invadir Portugal,
em 1812, o seu Grande Exército irá perder-se nas estepes geladas da Rússia, é o
princípio do fim.
Rui
Cardoso esboça um retrato sangrento das invasões napoleónicas, e deixa bem
claro que isso dos brandos costumes é uma quase balela e que foram aqueles
tempos que ajudaram a foguear os ideais liberais que se começarão a impor a
partir de 1820. Excelente divulgação, não hesito em recomendar a sua leitura.
Mário Beja Santos