domingo, 24 de novembro de 2013

Reflexões a propósito de um livro - 1

 
 
 
 
 
 
 
O colonialismo nunca existiu!: tese que defendo. A questão é que para convencer o leitor, pelo menos para semear dúvidas no seu espírito, é necessário expor um longo conjunto de argumentos. O inicial serve para considerar que as conjunturas de crise podem propiciar momentos de catarse identitária dos povos, função também desempenhada pelas bem mais dramáticas guerras. Contudo, as catarses não acontecem por si mesmas. Dependem do modo como o contexto de crise afeta o sentido existencial dos povos e, não menos, do modo como a racionalização da crise entra no pensamento e discursos de senso comum por via das interações quotidianas.
Nos dias que correm deparamo-nos com um primeiro obstáculo. Recorrendo a expressões do sociólogo Pierre Bourdieu, os olhares do senso comum douto e, por contágio, do senso comum vulgar tendem a circunscrever cada vez mais as evidências das crises às dimensões financeira e económica, o lado manifesto (P. Bourdieu 1994 [1989], O poder simbólico, Lisboa, Difel, p.48). O seu radical empolamento nos espaços públicos e publicados tem promovido a ocultação de outras dimensões latentes tão ou mais significativas. Quer dizer que as dificuldades financeiras e económicas não teriam tão forte impacto nas dignidades individuais e nas dignidades coletivas se não estivessem subjacentes fragilidades estruturais de certas identidades (a portuguesa, como outras, constitui um exemplo), processos invariavelmente associados, na contemporaneidade, à indisfarçável crise das ciências sociais e humanidades e ramos afins (história, sociologia, psicologia social, direito, antropologia, economia, literaturas, entre outras). Para compreender com maior eficácia os significados sociais e políticos dos momentos que as sociedades atravessam, incluindo as que escapam aos constrangimentos financeiros, importa, por isso, considerar a pluralidade das dimensões referidas.
Não é por mero acaso que começo por destacar as universidades e demais instituições do ensino superior. É porque nelas instalou-se o âmago do que de bom e de mau afeta a vida quotidiana, dado que condicionam crescentemente o funcionamento dos sistemas tutelares através dos quais os estados regulam as sociedades, em geral a partir de modelos exportados/importados de uns espaços para outros. Não está apenas em causa a gestão dos diferentes níveis de ensino, mas também da saúde, segurança social, justiça, legislação, defesa, segurança, impostos, ambiente, demografia, entre outros. Significa que nas sociedades ditas do conhecimento as crises são e serão, em grande parte e cada vez mais, crises de conhecimento cujo âmago reside nas instituições nas quais se delega a legitimidade da sua gestão.
          Serge Moscovici, psicólogo social, explicou que nas sociedades contemporâneas o senso comum não resulta apenas de tradições populares depois absorvidas e popularizadas pelas elites, isto é, o senso comum não é mais gerado apenas de baixo para cima, mas também e cada vez mais de cima para baixo. Teorias, ideias, teses, conceitos, pensamentos académicos, científicos ou intelectuais tornaram-se fontes geradoras de senso comum. Não significa que os hábitos quotidianos da rua reproduzam as lógicas referidas nos seus traços complexos ou sofisticados, antes quer dizer que o senso comum seleciona, simplifica, reelabora, produz caricaturas a partir das origens referidas. Destas resultam representações sociais com base nas quais os indivíduos conferem sentido ao mundo que os rodeia. Os exemplos provêm da psicanálise, psicologia, medicina, economia, direito, filosofia, física, literatura, história, sociologia, entre outras. Portanto, são cada vez menores as descontinuidades entre os universos de pensamento de matriz popular e os universos de pensamento de matriz intelectual/académica. Acrescento que vivemos em sociedades nas quais a escolarização não só se massificou como a permanência dos indivíduos nos diversos níveis dos sistemas de ensino tende a estender-se por mais anos (cf. S. Moscovici 2000 [1984] «The phenomenon of social representations» in: Social representations. Explorations in social psychology, Cambridge, Polity, pp.18-77; Idem 2000 [1994] «The concept of themata», ibidem, pp.156-183).
Em suma, ensino, comunicação social, cinema, música, entre outros – qualquer deles modela cada vez mais as sociedades de alguma forma de cima para baixo. Porém, académicos e leigos dão mostras não estarem atentos a esta característica dos tempos que correm, bem como tem sido saliente a tentação para se confundir o momento que atravessam as ciências sociais e humanidades com a falta ou redução de financiamentos ao ensino superior por parte dos estados. Tais predisposições têm funcionado como álibis que desviam a atenção do essencial: a crise da natureza e significados dos saberes produzidos pelas universidades tendo em conta os seus crescentes, inevitáveis e decisivos impactos. Quanto mais significativas tendem a ser as disfunções na origem, nas academias, maior a ampliação do que é disfuncional no ponto de chegada, no senso comum. Ou o inverso. Não prestar atenção a esta dimensão significa marginalizar núcleos decisivos que favorecem ou bloqueiam as transformações sociais que se ambicionam. As crises de hoje, na substância, traduzem a relevância sedimentada ao longo do tempo da última tendência. Por isso tornam-se extraordinariamente difíceis de reverter, o preço da crescente centralidade e da fina sensibilidade do conhecimento nas sociedades contemporâneas. Tema dos próximos textos.
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 

9 comentários:

  1. Elemento básico, uma definição: "Colonialismo"
    «1. prática, processo histórico de estabelecimento de colónias (...) 2. época colonial (...) 3. interesse ou paixão pelas colónias ou especialização em colónias e/ou colonos (...) 4. ECON POL orientação política ou sistema ideológico de que uma nação lança mão para manter sob o seu domínio, total ou parcial, os destinos de uma outra, procurando submetê-la nos sectores económico, político e cultural (...) 5. p.met. ECON POL inferioridade ou sujeição (de uma comunidade, território, país ou nação dominada por outra, ger. mais desenvolvida) (...)»
    In Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2003)

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  2. "COLONIALISMO"
    «Doutrina que preconiza o domínio económico e político de uma metrópole sobre territórios que mantém, na sua dependência, como fontes de riqueza. (...)»
    In Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo, 2001

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  3. Prezado Leitor/a
    Agradeço as definições que disponibiliza, mas é exatamente o tipo de saber institucionalizado que cita que pode e deve ser repensado, por muito que tenha valor. Importa não menos valorizar a crítica e a capacidade de inovação, contando que sejam sustentadas. Suponho ser essa atitude que define a eterna procura do conhecimento. Espero, por isso, que continuemos a debater. Esta é uma iniciativa para troca aberta de argumentos com os leitores do Malomil sobre os caminhos do conhecimento. A ideia é a de no fim resultar um ensaio. Tentarei responder sempre aos comentários, claro que na medida das minhas possibilidades e disponibilidade, contando também com a atitude construtiva dos intervenientes. Se no final desta série de textos o/a prezado/a Leitor/a (como outros) ficar como no início, mesmo que continue a discordar do conteúdo das teses apresentadas, o propósito desta iniciativa, ao menos em parte, sairá frustrado. Ela procura evitar «chover no molhado».
    Com os melhores cumprimentos,
    Gabriel Mithá Ribeiro

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  4. Mas, se as citações anteriormente apresentadas tivessem sido somente para suscitar uma base para argumentação, visto que o(s) autore(s) não apresentaram ideias em sua defesa?
    Não poderão as definições que anteriormente foram evocadas servir de mote para um debate construtivo? Porque não?
    O saber institucionalizado pode e deve ser sujeito a análise crítica. Mas, é necessário que tenha êxito. E quem é que define esse êxito?
    Por outro lado, igualmente a própria crítica ao saber institucionalizado pode ser ela mesma alvo da crítica, visando-se em quaisquer casos "solidez" científica. Não é a "ciência" um esforço honesto para inquirir e pesquisar sobre a natureza das coisas? Sim, o progresso faz-se com debate, com novas visões, com ideias que depõem outras anteriores tidas como correctas, com correcções aos erros e num contexto de liberdade!
    Podemos fazer teses sobre tudo, podemos buscar fundamentação teórica e até apoio em diversos autores, o qual pode ser contextualizado, mas pode ser retirado do contexto para suportar aquilo que queremos fazer passar.
    Nada vingará cientificamente somente à custa da vontade, seja para perpetuar ideias caducas e simplesmente instaladas nas mentes, seja para pretender trazer à força conhecimentos novos. E, os conhecimentos não são válidos pelo simples facto de serem "novos", ou de serem rotualdos como tal. A palavra "novo" assume historicamente controvérsias e até perigos vários.
    Devem existir em qualquer caso bases de discussão fundadas em princípios, não em pré-noções políticas, ideológicas, doutrinárias, preconceitos, convicções de natureza apaixonada ou pessoal ou toldadas pela pressão das circunstâncias de cada momento ou pela busca desesperada de um posicionamento.
    Assim, talvez possamos colocar as coisas de forma muito "básica" de modo a facilitar comentários claros para todos, por parte dos intervenientes e do autor. Consequentemente, sem induzirmos antecipadamente ideias do "mal" e do "bem", é necessário focar alguns pontos potencialmente interessantes, entre muitos:
    1. A negação do colonialismo coloca a questão ao nível de discussão das palavras, da semântica utilizada, da referenciação conceptual e não ao nível das práticas concretas?
    2. Se não houve colonialismo, se não há colonialismo, então teremos de utilizar outras designações alternativas mas igualmente válidas para as formas de exploração, de subjugação, e de usurpação de umas nações sobre as outras?
    3. Negamos os processos históricos coloniais? Negamos claramente os impérios surgidos ao longo da história?
    4. Poderemos colocar de parte a fundamental discussão relativa à natureza do próprio Homem, moralmente corrupto, sedendo por domínio, por poder, sendo porventura em dados momentos moderado por regras, pela sociedade? E não é a essência de barbárie individual que sob certa forma e com mecanismos de propaganda (frequentemente falsa) se transporta para a sociedade justificando e gerando o saque, o roubo, a destruição, o genocídio?
    5. A negação do colonialismo envolve a negação de orientações ou de sistemas historicamente coloniais, organizados a vários níveis?
    6. A negação do colonialismo nega a existência de doutrinas mais ou menos explícitas em defesa do mesmo, criando formas organizadas para o tentarem perpetuar?
    7. A simples ideia de que um dado sistema colonial governativo foi menos opressor, foi menos agressivo, foi menos lesivo das condições de vida materiais do povo, do que outro - mesmo quando gerido pelo próprio povo e não por uma potência colonial - poderá vingar como argumento a favor da não existência do colonialismo?
    Peço desculpa por tantas questões, todavia, talvez seja interessante começar pela base...
    M.D.

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    1. Caro M.D. (10:47)
      Para além do que refere sobre a inovação como condição de transformação do saber, de facto ela não vale (nem pode valer) por si. Importa também ter em conta a fundamentação empírica dessa inovação quando está em causa o conhecimento das sociedades. Um dos problemas com que nos confrontamos é o do dito saber sistémico, isto é, o saber em que conceitos ou teorias se explicam a elas mesmas. O que proponho é a sistemática associação entre essa dimensão (sem teoria o conhecimento não se sustenta) e o contacto sistemático com as realidades empíricas. É o saber empírico (e não a mera empiria) que espoleta sustentáveis formas de renovação, de reinvenção contínua do saber. Claro que haverá mais para dizer (da sua e da minha parte), mas por agora parece-me o essencial. Quanto ao importante conjunto de questões que coloca em torno da ideia/conceito/fenómeno social e histórico do «colonialismo» a matéria é demasiado sensível e, por isso mesmo, irá sendo abordada progressivamente nos próximos textos e não posso avançar «de cabeça». Mas garanto que não deixarei os leitores com ideias vagas quanto à minha tese - «o colonialismo nunca existiu!» -, independentemente dos acordos ou desacordos que suscitar. Explicar-me-ei com clareza. Mas, insisto, importa contextualizar o assunto pela sua sensibilidade. Até porque é de extrema relevância que este debate envolva genuinamente e sem preconceitos africanos e brasileiros, entre outros, além de portugueses. Da minha parte, o que proponho agora ou no passado (e espero que no futuro) jamais pretende colocar em causa a dignidade de pessoas e povos por razões históricas, existenciais ou quaisquer outras. Apenas tento trazer à «a luz do dia» aqueles que me parecem ser os bloqueios identitários com que um vasto conjunto de comunidades se confronta, quer ao nível da relação de cada comunidade com ela mesma, quer a sua relação com as outras, hoje dispersas pelos continentes. (Re)Abrir esse caminho é por de mais importante para todos nós. Perceberá, portanto, em textos seguinte o que associo ao «colonialismo». Irei, claro, aguardando as suas reações.
      Obrigado e até lá,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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  5. Que grande confusão que vai na cabeça do autor desta "posta"! Faz afirmações grandiloquentes e depois nem é capaz de explicar os seus argumentos no primeiro e segundo parágrafos!? Pelo contrário, perde-se em argumentos laterais que demonstram apenas a sua leitura política e a sua necessidade em elidir uma tradição intelectual de esquerda e uma tradição intelectual crítica. De Colonialismo não se discute nada, nem se propõem linguagens ou conceitos alternativos. Que perda de tempo...

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    1. Caro Anónimo (12:03)
      A propósito da «grandiloquência» faço votos para que distinga os títulos dos conteúdos e também que não coloque a «carroça à frente dos bois», como se diz. Se considerar que foi perda de tempo, estamos conversados. Todavia, se preserva espírito de debate de ideias, o que não duvido pela correção formal da sua intervenção (como sabe, muitas vezes é impossível debater por causa das «grosserias» que nos fazem desperdiçar este importante instrumento de construção de ideias em simultâneo em diferentes espaços do mundo), suponho que concorda que o conhecimento exige de nós uma constante abertura para a inovação. Eu opto por um caminho e precisamente por discordarmos dele é que opiniões como a sua fazem falta. Sobre «elidir uma tradição intelectual de esquerda» insisto para que leia os primeiros textos. Quem supõe que o predomínio da esquerda (ou o contrário), na construção do conhecimento, resolve-se ponderando com a tendência ideológica oposta seguramente não irá longe. Enquanto não suplantarmos esse tipo de carga dificilmente conseguiremos grande coisa. É por isso que o caminho é exigente e não tenho resposta para isso. Apenas sei que é importante procurá-la. Por outro lado, de «colonialismo» irei sem dúvida discutir muito (o conceito, a violência, o estado, as interpretações por analogia, etc.), mas antes é relevante enquadrar o que penso. Por isso compreendo e aceito a sua critica ao primeiro parágrafo porque falta o «resto do filme». Talvez culpa minha. Admito. Quanto ao segundo parágrafo, aí estamos em desacordo. Ele é claro, tem citada a bibliografia para quem queira complementar e, como compreende, não se pode produzir grandes tratados em formato de blogue. Sinto-me obrigado apenas a fazer o possível e acredito que também seja o seu caso.
      Abraço,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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  6. Na sequência do anterior comentário, parece-me que a questão pode estar no texto escolhido.
    Apesar do autor saber certamente o que pretendia, a linguagem utilizada na selecção que utilizou pecará perante a análise externa por ser algo árida, com aspectos que surgem aos olhos das pessoas como genéricos, como difíceis de assimilar e (aparentemente) sem ligação muito directa ao tema de capa do livro.
    Podemos sempre complexificar, intelectualizar e repousar sobre mil referências bibliográficas (reais), porém, julgo que se poderiam esperar informações um pouco mais directas sobre a tese efectivamente defendida.
    O que interessa em primeiro lugar é a compreensão. Depois é que vem a crítica! Qualquer analista tem de compreender bem o assunto tratado, mesmo discordando, seja qual for o respectivo posicionamento e até orientação política. Independentemente da discussão sobre os respectivos resultados, Marx, por exemplo, estudou minuciosamente os autores que criticou.
    Portanto... o que dizer então?
    M.D.

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    1. Caro M.D.
      ...o que dizer então?... Que avancemos com o debate em parte como Marx, estudando minuciosamente os autores que criticamos, em parte olhando bem mais para a realidade empírica que nos rodeia, a do século XXI, substantivamente diferente da do século de Marx.
      Abraço,
      Gabriel Mithá Ribeiro

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