100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 4 - SIDNEY BECHET
Fotografia de Corbis Naylor
Dos
apóstolos que disseminaram o jazz para além dos arrabaldes de Nova Orleães
Sidney Bechet foi o que mais depressa se distinguiu e o primeiro que mais longe
chegou.
Louis
Armstrong só em 1922 reservaria assento no comboio para Chicago, viagem que
representou a entrada bíblica do jazz na Terra Prometida. King Oliver, que fora
quem lhe enviara a carta de chamada, residia na cidade ventosa desde 1918. Kid
Ory, em 1919, dava à Costa do Pacífico na embrionária Los Angeles, onde se deve
ter cruzado com esse autêntico maltês que era Jelly Roll Morton, desde 1904 a
vagabundear por todos os estaminés de má nota do Sul. Em comparação, Sidney
Bechet desembarca na Europa no precoce ano de 1919 – Paris, Berlim, Londres, um
chique… – em digressão com a Southern Syncopated Orchestra de Will Marion
Cook.
Na
sua estadia em Londres mal sabia Bechet que seria como a borboleta do aforismo:
com três batimentos de asa desencadeou, bem mais tarde, um ciclone. O primeiro
foi ter deparado com um saxofone soprano, pelo qual se entusiasmou e
definitivamente trocou o clarinete. O terceiro, melhor fora que não tivesse
sucedido: condenado por tentativa de violação em 1922, depois de um mês de
encarceramento, foi deportado para os Estados Unidos, onde arribou sem fama nem
proveito.
Mas
o segundo efeito de borboleta é que foi verdadeiramente extraordinário. Entre
os espectadores das récitas de Sidney Bechet sentava-se com frequência
Ernst-Alexander Ansermet. O ex-professor universitário de matemática comutara
os algoritmos pela música e em 1919 louvava-se como director musical dos
Balletts Russes de Diaghilev; precisamente aquele que perpetrara “A Sagração da
Primavera” de Igor Stravinsky, levado à cena em 1913 e encarecido pelo
memorável tumulto de ovações, urros e tabefes na plateia.
O
enlevo de Ansermet com o que escutara encorajou-o a escrever “Sur une orchestre
négre”, uma apologia musicológica e analítica detalhada das “canções e danças
americanas às quais se aplica o epíteto de ragtime.” Realce é dado à presença
de “um extraordinário virtuoso do clarinete”, cujo desempenho evocava-lhe o
Concerto nº2 de Brandeburgo de Bach: “quero deixar escrito o nome deste artista
de génio, que, da minha parte, nunca esquecerei – é Sidney Bechet.”
A
relevância de tais observações supera o valor histórico de consistirem
provavelmente, no primeiro ensaio sobre jazz, estimando-o com propriedade
intelectual e comprometendo-o como expressão artística. Mais do que isto,
posicionam o jazz como um dos catalizadores da controvérsia que, por esta
altura, começava a cindir as altas esferas da música erudita contemporânea. O
jazz contagiou inequivocamente Debussy e Ravel além de Stravinsky, o compositor
que por ele mais se encantou. Mas no polo oposto, o vestalino e frígido Adorno,
cujas opiniões dobravam, com teutónica obediência, a cerviz do modernismo
alemão, abominou o jazz num primeiro escrito de 1936, reiterado por mais seis
até 1962. Sobre ele o também marxista Hobsbawm não mandou dizer por ninguém que
“escreveu as páginas mais estúpidas de sempre sobre jazz.”
Young Sidney Bechet 1923-1925
1998
Timeless
Records – CBC 1-028
Sidney
Bechet (saxofone soprano); Calrence Williams (piano); Louis Armstrong (trompete);
Thomas Morris (trompete); Buddy Christian (banjo); Sara Martin (voz); etc…
De
regresso a penates aos EUA, como se viu, Sidney Bechet gravou um bom punhado de
composições, contando nalgumas delas com a participação de um jovem e voraz
Louis Armstrong. Recentemente recuperados e reeditados, nestes trabalhos
palpita a energia, ao mesmo tempo fauve,
de quem assim foi ouvido no Velho Continente, e sofisticada, tal como era
sentida entre os seus pares de Chicago, de um músico que cruzava o zénite.
Pormenor nada despiciendo: jamais se ouvirá Louis Armstrong a ser ripostado de
maneira tão perturbadora, à beira do KO técnico – aprendeu bem a lição.
Depois
disto a estrela de Sidney Bechet esbateu-se porque declinou a popularidade do
modelo de jazz ao qual se manteve fiel. No final da década de 30, julgando-se
extinto como um fóssil, trocou o saxofone soprano pela fita métrica de alfaiate
– a sério!
Está
por saber se Alfred Lyons teve alguma segunda intenção ao lançar “The fabulous
Sidney Bechet” em 1953, no ápice da grande investida modernista pontificada
pela sua Blue Note. A etiqueta afirmava-se como o porta-aviões do jazz
consequente à revolução do bebop, donde levantavam voo os músicos que marcaram
a década de 50 e seguintes. Ora Bechet, afiliado na Blue Note desde 1939, mas
com esporádica actividade, embora merecedor do respeito devido a um ancião,
representava uma espécie de paleo-jazz, antecedente do swing, relíquia de
museu. “The fabulous Sidney Bechet” banzou os contemporâneos por estar isento
de um grama que fosse de revivalismo. Bechet não repete liturgicamente as
fórmulas do ragtime, antes demonstra um desenvolvimento orgânico, provando que
o género estava preterido mas não ultrapassado, à semelhança da fauna de uma
ilha perdida, que tivesse evolucionado à sua maneira. Um fenómeno que só pode
ser ouvido como paradoxal por quem não assimilou ou renegou as apreciações de
Wynton Marsalis, emitidas nos anos 80 e vulgarizadas como pós-modernas. Já
neste século foram dadas à estampa gravações de Bechet para a Blue Note, no CD
“Complete Blue Note 1939-1951 Master Takes”, e, 50 anos depois, persiste o
sabor fresco da sua música.
Mais
uma vez, da música de Sidney Bechet se podem retirar ilações muito filosóficas:
nem tudo se perde, nem tudo se transforma, ao contrário do que postulou
Lavoisier.
O doutor Francisco Louçã pôs-se a malhar no
deputado Duarte Marques e eu acho que está mal. Estou à vontade para dizê-lo porque já uma
vez brinquei aqui, sem maldade, com uma crónica do deputado Duarte Marques um
pouco carregadita de vírgulas. O facto
de o deputado Duarte Marques ter citado uma frase do professor Cosme Vieira não
faz dele responsável por tudo o que este académico tem dito no seu blogue, intitulado Económico-Financeiro, nomeadamente em
matéria de «pretalhada» (sic). O parlamentar laranja não disse nada sobre «pretalhada» e o doutor Louçã sabe-o bem, mas embrulha e manipula, chegando ao ponto de chamar ao professor Cosme «amigo» do deputado Marques.
Depois, o Professor Louçã desatou a
malhar no Professor Cosme Vieira, da Faculdade de Economia do Porto, o que
também acho que está mal. Até hoje, ninguém sabia quem era o engenheiro de
minas Pedro Cosme Vieira, agora transformado em celebridade nacional. Nascido
no Bairro da Sé, no ano de 1965, o Pedro Cosme é um iconoclasta, um subversivo,
e pessoas como o doutor Louçã deviam mesmo era gostar dele e da sua atitude sous les pavés la plage. Por
exemplo, Pedro transgride as regras bolorentas da Academia e faz publicar,
na página oficial da Faculdade de Economia da Universidade do Porto,
as fotografias mais marcantes da sua trajectória biográfica. Três bonitas imagens da
comunhão solene, no Verão Quente (Agosto de 1975), e outra, a cores, tirada dois anos
depois, naquele Agosto de 1977:
A comunhão do Cosme
Com um companheiro de luta, na rodagem de Aniki-Bóbó
Cosme, de cofres cheios, reparte o Bolo Orçamental
Na
Academia, e como acontece a todos os que ousam ir contra o sistema e as regras
instituídas, o Professor Cosme é um incompreendido, uma vítima quer da biopolítica (Foucault) quer dos mecanismos de produção da distinction (Bourdieu).
Há uns tempos, sempre nadando em contracorrente, candidatou-se ao cargo de director da sua Faculdade, tendo inclusivamente
criado um blogue de campanha (Cosme gerou outros
blogues; o melhor de todos chama-se Eurating.The European Rating Agency e foi criado em Julho de 2011, dele só constando o
«Editorial», com os dizeres camarários: «To be build»).
O Programa Eleitoral Cósmico (em 124 slides de medidas concretas)
No seu programa eleitoral, o Candidato Cosme propunha-se «descongelar as
carreiras» e «expandir as instalações» da Faculdade de Economia da Universidade
do Porto, 6000 metros para nascente («metade para salas, metade para gabinetes»).
Na contagem dos votos, os funcionários da FEP pronunciaram-se assim: 28 foram para o
Varejão, 11 para a Ana Paula e 0 para o Pedro Cosme. Seguindo-se o Conselho de
Representantes, a votação resultou em 8 votos no Varejão e 7 na Ana Paula. O nosso
Cosme bisou a votação a zero. Humilhado, cabisbaixo? Nada disso: «tive uma grande vitória pois expus as ideias que já me atormentavam há 20 anos (a das instalações) e as pessoas ouviram-nas com atenção. No final ainda disseram que as achavam interessantes.» E tanto assim
era que, nas projecções que fez, algumas com «informação bayseiana», Cosme
esperava ter 4% dos votos, contra 20% da Ana Paula Africano e uns esmagadores
76% para o Zé Varejão. No final, ganhou o Varejão, e o Cosme arrecadou, contas
feitas, 0% dos sufrágios bayesianos.
Como
sucede amiúde aos escritores malditos, Cosme publicou um livro «directo» e «corajoso» que,
vá-se lá saber porquê, «ninguém quis prefaciar». Saiu com a chancela da editora Vogais
e chama-se Acabou-se a Festa.
Subtítulo: Soluções Ousadas para Reerguer
Portugal. Entre elas, a saída de Portugal do euro e o regresso ao escudo. Cosme é cómico, mas não é o único.
A opus Cosme, único livro editado em Portugal no séc. XXI sem prefácio abrilhantador e sem o layout messiânico capas-com-carinhas
Poderia dizer-se que o Cosme é uma
fraude pegada e até fazer escândalo por o Jornal
de Notícias (aqui) ou o Dinheiro Vivo o terem entrevistado (aqui).
Se se tratava de um louco, de um furioso racista, agora quem apanha nas orelhas é o parlamentar Marques? E, já agora, depois de Nicolau Santos ter
levado o saudoso Artur Baptista da Silva ao seu programa da SIC-Notícias, ter
escrito no Expresso «Ouçam este
homem», lá diz a Bíblia: quem
não tiver pecado que atire a primeira pedra. Aliás, melhor do que a
fraude-Baptista (o que, convenhamos, é difícil), só a reacção de Boaventura Sousa Santos
quando o escândalo-Baptista rebentou. Disse Boaventura que o facto de as pessoas cidadãs se
terem deixado enganar pelo falso funcionário ONU era plenamente
justificável devido «à polarização muito grande do debate entre os que apoiam as políticas do Governo e os que as contestam e consideram que elas estão a resultar na destruição do Estado social».
Nicolau Santos mostrou-se mais conciso: «fui mesmo embarretado».
Baptista, o Grande Artista: como este, já não se fabrica
É claro que este professor Cosme diz mais, muito mais, da
Faculdade de Economia do Porto (e da universidade portuguesa em geral) do que dele próprio. O que
escreve no seu blogue, sobre a «pretalhada» e outros mimos, só é prova de
irreverência e mal-estar civilizacional. Cosme é um inconformista, rebelde indignado, explorando as franjas, ludibriando a margem. Existe também nos seus escritos um belíssimo momento
freudiano/Bates Motel, já notado pelo doutor Louçã. A dada altura, Cosme diz,
qual matricida impiedoso, na linha do letal Palito: «a minha mãe, totalmente caquética da cabeça»... As barbaridades
que nos deixa sobre a SIDA ou a matança da «pretalhada» só a ele dizem
respeito. Insiste-se: não é intelectualmente honesto o doutor Louçã vir associar o deputado Marques ao professor Cosme só porque aquele citou uma frase do docente da Invicta que nada tinha a ver com
as alarvidades que este regularmente expele. Em abono da verdade, diga-se que, à conta
dessas alarvidades, que publica no seu blogue misturadas com fotos de gajas boas,
Cosme já teve três «processos de averiguação» na Faculdade. Alega,
em sua débil defesa, «o Louçã é um esquerdista e os esquerdistas estão em grande maioria nas universidades». Os esquerdistas, talvez; o bom senso é que não: Pedro Cosme da Costa Vieira é professor auxiliar com agregação da Faculdade de
Economia da Universidade do Porto, doutorado em 2001, agregado em 2007. E, para
quem quiser apoiar a infância desvalida, Cosme até indica o seu NIF, que é o: 501 413 197.
Contudo, Cosme é importante. A sua relevância,
no plano cosmológico mas também antropológico, e até filosófico, desvenda-se num
livro de Giorgio Agamben recentemente traduzido entre nós, O Aberto. O Homem e o Animal. O ponto a reter para a compreensão cósmica prende-se com a
leitura de Hegel feita por Kojève, em divergência com Georges Bataille. Neste
debate, o Professor Cosme desempenha um papel essencial, ainda que involuntário, na demonstração inequívoca da tese
de Kojève sobre a transição para um mundo pós-histórico em que «o Homem
continua vivo como animal que se encontra de
acordo com a Natureza e com o Ser dado. O que desaparece é o Homem
propriamente dito, ou seja, a Acção que nega o dado e o Erro ou, em geral, o
Sujeito oposto ao objecto». Quando
estaciona o seu automóvel frente ao nº 80 da Rua Dr. Roberto Frias, indo
perpetrar mais uma aulita na Faculdade de Economia da capital do trabalho, o Professor Cosme Vieira manifesta-se como encarnação
ambulante do aniquilamento do Homem propriamente dito, sendo um sintoma, em carne e osso, do
desvanecimento contemporâneo da oposição entre Sujeito e Objecto. Neste
«epílogo» dos tempos, Cosme exprime a «negatividade humana», ou seja, o momento em que os homens voltam
a ser animais. O docente portuense devolve-nos à animalidade grotesca, primordial. E a Faculdade de Economia do Porto, por sua vez, é o espaço em que
se desenrola este fim hegeliano da História, razão pela qual bem merece ser ampliada em 6000 metros quadrados a nascente (na modalidade olímpica «metade para salas,
metade para gabinetes»). Em O Aberto,
Agamben refere-se também à distinção, introduzida por Bichat, entre a «vida
animal» e a «vida orgânica». Cosme Vieira é um exemplo doutorado e agregado da hegemonia da vida orgânica. Ainda que escreva palavras (e com erros ortográficos), não produz argumentos, apenas segrega excreções. Apesar de habitar num andar mobilado na cidade do Porto, a sua vivência
resume-se à de l’animal existant
au-dedans, para usar os termos de Bichat. Mais do que um académico e
professor de meninos, Pedro Cosme Vieira limita a sua existência à «repetição
de uma série de funções, por assim dizer, cegas e desprovidas de consciência»,
como observa Agamben. O sangue circula nas veias, o oxigénio atravessa as
narinas, assimila alimentos pela boca e, após a absorção da carga nutritiva, alivia os resíduos. Para além desses movimentos, nada existe, nada há. Mesmo que, sob a capa
de um simulacro braudillardiano, Cosme Vieira se comporte razoavelmente em sociedade e até consiga interagir com os
outros, aparentando ser um Homo sapiens
nascido em 1965. Pedro Cosme, l’animal existant au-dedans. Em vez de lhe mover um processo disciplinar, a Universidade do
Porto deveria preservá-lo para sempre. Conserve-se o Cosme. Agora, que foi descoberto e logo esmagado, como uma barata fétida, a sua massa inerte merece repouso. Em formol.
Depois
dos dois volumes de Salazar Vai ao Cinema (com
recensão aqui), vieram mais dois volumes, em coordenação partilhada com Jorge
António e um subtítulo bem ao jeito griffithiano – Angola.
O Nascimento de Uma Nação. A propósito desse projecto, entrevistámos a Carmo aqui no Malomil.
Agora,
a sua dissertação de doutoramento, Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo. Já
dera um blogue, depois uma tese, e agora um livro. Chegou-me hoje às mãos, ainda
é cedo para falar. Mas, antes que seja tarde para esta memória se perder,
parabéns à Maria do Carmo Piçarra, que a guardou para nós.
Fez
há pouco 40 anos. A 24 de Janeiro de 1975, Keith Jarrett tocou na Ópera de
Colónia, e em público. Segundo dizem, a gravação desse concerto, com o selo da
então recém-criada ECM Records, é o álbum de jazz a solo mais vendido de todos
os tempos. E, já agora, o disco de piano a solo mais vendido de todos os
tempos, em todos os géneros musicais.
Vendeu qualquer coisa como 3,5 milhões de cópias.
Mais espantoso do que os milhões de vendas
é o facto desse momento mágico ter sequer acontecido. Tudo sucedeu por um triz
feliz, um acaso do destino. O concerto de Colónia foi organizado por uma
rapariga quase adolescente, Vera Brandes, que na altura contava apenas 19 anos e
era a mais jovem promotora de espectáculos da Alemanha. O músico chegou cansado
a Colónia no próprio dia do concerto, já tarde, após uma viagem extenuante de
carro. Vinha de longe, da suíça Zurique. Não dormia bem há vários dias, sofria
de dores lancinantes nas costas, tão lancinantes que chegou à Alemanha de braço
ao peito, o que não é propriamente a melhor forma de um pianista se apresentar
a conserto. Por uma malvada conjunção astral, nos bastidores tudo correra mal.
Enganaram-se no piano, colocando em palco o instrumento que estava preparado
para os ensaios, um modelo bastante diferente – e muito pior – do que aquele
que Keith Jarrett solicitara. Nem sequer os pedais funcionavam bem, obrigando o
músico a ultrapassar a falha através do seu dotes geniais de improvisação.
Segundo disse mais tarde o produtor da ECM Records, «provavelmente, ele tocou assim
porque não tinha um bom piano. Não conseguiu apaixonar-se pelo som do
instrumento e, por isso, teve de arranjar outra forma de tirar o melhor que
podia daquele piano». Ao início, Jarrett recusou tocar no piano roufenho que o
aguardava em palco, mas Vera Brandes convenceu-o: na sala esgotada, 1.400
pessoas aguardavam, impacientes. O concerto fora marcado para uma hora
esdrúxula, onze e meia da noite. Era a única hora que os responsáveis pela
Ópera de Colónia tinham concedido a Vera Brandes para se realizar um
espectáculo de jazz naquele recinto distinto. Quando tudo apontava para um
desastre, aconteceu um milagre. Ainda hoje, quando ouvimos o Köln Concert, ficamos boquiabertos ao
saber que aquilo poderia nem sequer ter
acontecido. Se o concerto fosse realizado no dia seguinte, com o piano adequado,
afinadinho, tudo seria diferente, não seria aquele, não seria aquilo, como o demonstra o facto de,
muitos anos depois, Jarrett o ter repetido no Carnegie Hall. Concerto de Jarrett no
Carnegie Hall: alguém notou, alguém morou? Não; o que fica e ficará é o
Concerto de Colónia. Um improviso a solo num piano de reserva.
Let us not wallow in the valley of despair.
Anos
antes, em 1963, outro feliz acaso do destino, mais um triunfo do improviso
sobre as forças do mal iminente e prenunciado. Na véspera da Marcha sobre
Washington, Martin Luther King Jr. reuniu-se com os seus companheiros de luta,
um grupo que sofrera na carne, com prisões e humilhações várias, o combate
heróico contra os preconceitos fundados na cor da pele. Nesse combate, Luther
King era o cavaleiro que trespassava o dragão do ódio, como no quadro de Ucello
na National Gallery.
Paolo Ucello, São Jorge e o Dragão, c. 1470
National Gallery, Londres
Os
colaboradores de King aconselharam-no a não usar o refrão I have a dream. Martin já o utilizara diversas vezes, era um cliché, uma fórmula batida e repisada,
sem qualquer novidade ou carga apelativa. Discutiram o texto horas a fio. Pelas
4 da madrugada, cansado e gasto, King subiu ao seu quarto, dizendo aos companheiros
que ia rezar para que Deus lhe dissesse que palavras deveria usar na manhã
seguinte. A Marcha sobre Washington, por causa de mil e uma peripécias, esteve
quase para não se realizar. Muitos tentaram boicotá-la. Ao longo dessa manhã de
28 de Agosto de 1963 milhares de pessoas, vindas de toda a América,
aglomeraram-se junto ao Monumento a Lincoln. Muitos oradores falaram antes de
Martin Luther King Jr. Quando chegou a vez deste, o último a discursar, Martin
começou a desfiar o que trazia escrito. A sua voz tonitruante ia percorrendo as
linhas escritas no papel. Mas, de súbito, King largou os papéis, começou a
improvisar: «So even though we face the difficulties of today and tomorrow, I
still have a dream.»
Wyatt
Tee Walker, um dos seus conselheiros, aquele que mais inflamadamente estivera
contra o uso do refrão do sonho, olhou para o chão do Mall; desalentado, disse
para si, entre dentes: «Aw shit. He’s using the dream». Martin Luther King já falara
do seu sonho diversas vezes, inclusive na semana anterior, num discurso em
Chicago; e poucos meses antes, num comício gigantesco em Detroit. Se tivesse
seguido os avisados conselhos dos seus companheiros, plenos de sensatez e tino,
Luther King não teria dito as palavras I
have a dream – e tudo o mais que improvisou depois, sem papel escrito, arredando
as folhas do discurso que trazia consigo. Mas, muito provavelmente, se não
tivesse falado do seu sonho hoje não saberíamos sequer que Martin Luther King Jr.
fizera um discurso em Washington. Ignoraríamos até, muito provavelmente, que em
1963 houve uma Marcha sobre Washington contra a segregação racial. Pelo sonho é
que foi. E pensarmos que James Earl Ray, o assassino de Luther King, na sua fuga
à polícia passou por Lisboa, hospedando-se numa pensão do Cais do Sodré, contratando os
serviços de uma prostituta… Chamava-se simplesmente Maria, deixou-se
fotografar, o seu rosto correu mundo.
Maria
O quarto em que pernoitou o foragido James Earl Ray
A
história do estribilho I have a dream
é mais ou menos como a do piano da Ópera de Colónia: se Keith Jarrett não
tivesse que tocar num piano roufenho talvez não improvisasse daquela maneira
única, de um lirismo transcendente. Num e noutro caso, o acaso feliz produziu
uma mudança histórica. A partir da Marcha sobre Washington, nada seria igual na
luta contra a segregação dos negros. O Concerto de Colónia, por sua vez,
assinala uma viragem na história do jazz, que à época se encontrava bloqueado pelo
tédio da fusão jazz-rock (antes que os especialistas me apedrejem e lapidem,
leiam isto e já agora isto).
Um
dia, há um par de meses, numa das nossas conversas, a Mena Mónica usou a palavra
serendipity. Sim, sei que a expressão
tem um significado preciso e bem definido, e que se não confunde com sorte ou
azar, destino ou acaso. Mas isto é só um blogue, não façam caso. A serendipidade
não aconteceu apenas em Colónia, quando um piano de terceira categoria, tocado
pelo génio humano, produziu uma sonoridade única, irrepetível.
A
serendipidade, o acaso feliz, aconteceu noutros lugares da Alemanha, e há muitos anos atrás.
Dentro de dias, a 30 de Abril, assinala-se o 70º aniversário do suicídio de
Hitler no bunker de Berlim. Em 8 de
Maio de 1945, a população de Demmin, uma pequena cidade do nordeste da
Alemanha, decidiu suicidar-se em massa ante as notícias da morte do Führer e da chegada iminente dos russos.
O maior suicídio colectivo da história da Alemanha, um país que, ao longo da
história, já se suicidou várias vezes. Dos 15.000 habitantes de Demmin, entre
700 e 1.000 pessoas optaram pela morte voluntária. Levaram meses e meses a
resgatar os cadáveres na correnteza do rio Penne. Diversas mães atiraram os
filhos ao rio antes de se lançarem elas próprias nas águas vorazes. A mãe de
Bärbel Schreiner, então uma menina de seis anos, preparava-se para o salto
derradeiro. O irmão de Bärbel interrompeu-a, com a inocente pergunta: «Mãe, nós
não, pois não?» «Ainda me lembro da água avermelhada pelo sangue», diz Bärbel
Schreiner, hoje uma senhora de 76 anos, que acrescenta: «sem aquela pergunta, estou
convencida de que a minha mãe nos teria afogado aos dois.»
Bärbel Schreiner em criança, com a mãe e o irmão mais velho
Demmin, 1944
Falando
de efemérides e da Alemanha, e dos grandes momentos da História do Ocidente,
convém recordar outra data fundamental da nossa civilização. A partir de raízes
judaico-cristãs milenares, o Ocidente, que muitos asseveram estar em putrefacção
e declínio, produziu coisas tão grandiosas como as cantatas de Bach, as
catedrais ogivais e as ogivas atómicas, o papel higiénico e Manuel Luís Goucha.
No cúmulo das maravilhas, uma instalação escultórica concebida em Horizontina,
sul do Brasil, há precisamente 34 anos. No passado dia 15 de Abril, a modelo
Gisele Caroline Bündchen, fruto natural da frondosa miscigenação
germânico-tropical, abandonou as passerelles.
Fê-lo no preciso lugar onde, vinte anos antes, desfilara pela primeira vez, a
Semana da Moda de São Paulo. No ano 2000, já estrela bioagradável,
apareceu num anúncio da Victoria’s Secret ostentando aos peitos um soutien avaliado em 15 milhões de
dólares. Que no mundo existia um soutien
de 15 milhões de dólares, enquanto só neste ano já morreram 1.600 seres humanos
a tentar atravessar o Mediterrâneo, é algo que nos deixa confusos. Mas só se
admira quem quer. Por nós, já aqui o temos dito, vezes sem conta: o mundo é um lugar estranho. Num
instante, num segundo, a vida muda, e o mundo é capaz de reunir em si o melhor e
o pior. Na semana passada, uma jovem migrante, Wegasi Neblat, foi salva de um
naufrágio por um sargento do exército grego, Antonis Deligorgis. Tudo aconteceu
por acaso, o puro acaso: o militar estava com a mulher, Theodora, e decidiram
beber um café junto ao mar, numa praia da ilha de Rodes. Ao ver o naufrágio, o
sargento Antonis fez-se ao mar traiçoeiro. Feriu-se a valer, com golpes fundos
nas mãos e nos pés, mas salvou da morte 20 dos 93 migrantes que seguiam no
navio destroçado. Três dias depois, Wegasi Neblat deu à luz a criança que
trazia no ventre. Pôs-lhe o nome do seu salvador, Antonis, que de Rodes foi
colosso.
Antonis Deligorgis salvando Wegasi Neblat
Rodes, Abril de 2015
Além
de uma fortuna avaliada para cima de 400 milhões de euros, Gisele Bündchen é a
serendipidade em forma de gente. A par de Elle McPherson, o que a torna diferente dos outros modelos não é ser mais bela ou mais elegante; é ser uma
celebração festiva à vida, uma conjunção radiosa e felicíssima de células e tecidos: 53
quilogramas de alcatra humana, estendida ao comprido por 1,80m de altura.
O
cancro é a serendipidade às avessas, uma conjunção celular negativa. Gisele
Bündchen é o oposto disso, o anti-cancer.
Não interessam nada as fotografias de agora, fabricadas e artificiais. O
erotismo é tanto, e tão fogoso, que atordoa a nossa racionalidade e obscurece o ponto que em Gisele mais importa, a vitalidade
primordial. Esta encontra-se muito mais nas imagens de infância. Já lá estava,
intacto e puro, o dom originário, a perfeita e saudável harmonia mitocondrial.
Gisele Bündchen, a própria, em criança
A Mena não acredita muito nestes acasos. Há
dias, falando os dois de acasos e destinos, respondeu-me à grande, com uma citação
caríssima. William Shakespeare, e o Acto I de Júlio César:
Men at some time are masters of their fates;
The fault, dear Brutus, is not in our stars,
But in ourselves, that we are underlings.
Admito, o destino é nosso, não está nas
estrelas. Keith Jarrett, Luther King e a mãe de Bärbel Schreiner agiram, cada
um a seu modo, seguindo a lei terrena do livre-arbítrio. Daí tivemos, por esta
ordem, um concerto em Colónia, um discurso em Washington e duas crianças resgatadas
à morte por afogamento na vila-suicida de Demmin. O sargento grego, é certo,
poderia não se ter lançado às águas para salvar os seus semelhantes. Logo ele,
cidadão de um país à deriva, que desesperadamente tenta salvar-se
do naufrágio. Em todo o caso, Antonis agiu; e agiu de uma forma tão impulsiva e
imprevista como Keith Jarrett improvisou em Colónia ou Martin Luther King falou em
Washington. O facto de ele e a mulher estarem ali, a metros da catástrofe, na
praia de Rodes, não tem outra explicação que não esta: serendipidade.
Em 1937, o professor Johanes Theinert e
a sua mulher Hildegard, casados de fresco, começaram a escrever um diário. A
última entrada tem data de 9 de Maio de 1945. «A guerra acabou. As armas
calaram-se». Nesse mesmo dia, o professor Theinert deu um tiro na mulher e
depois virou a arma contra si próprio, e disparou. Perante um gesto destes, outro trecho do diário
do casal, escrito no dia fatal:
Quem
se lembrará de nós?
Quem saberá como
acabámos?
Terão estas linhas
algum sentido?
O
diário seria encontrado. No meio de tanta devastação, só um acaso permitiu descobrir
o caderno íntimo. Por causa disso, hoje sabemos como acabaram as vidas de
Johanes e Hildegard Theinert. E, respondendo à outra pergunta que então fizeram,
lembramo-nos deles hoje, 70 anos depois, pelo feliz destino que levou à
descoberta do seu diário. Há nele uma derradeira interrogação, a mais difícil
de todas: «terão estas linhas algum sentido?».
Não sei. Esta é uma pergunta que tanto
se pode aplicar ao diário dos Theinert como às linhas que acabei de escrever. Farão
sentido? Não sei.
De certeza certa, só sei uma coisa: no mundo, Mena, neste lugar estranho e desconcertado,
no mundo de soutiens de 15 milhões de
dólares, não há maior serendipidade do que a amizade. À nossa.
Para Maria Filomena
Mónica.
António Araújo
post-it
– já agora, e sem ofensa, dedico também este texto ao casal octogenário amoroso que anteontem
vi no IKEA de Alfragide à volta de um prato de degustação de bolachas de
gengibre. Cada um deles alambazou, no mínimo, umas sete ou oito bolachas (de
gengibre). Depois foram para casa, todos contentes.