7.
A
longa viagem a África (1945)
No
início de Janeiro de 1945, Marcelo Caetano informou Salazar que considerava
necessária uma ida a África, embora esta só devesse ser anunciada quando
oportuno[1]. Além
de pretender contactar com o pessoal de Administração Pública e com as
populações, impunha-se – perante o final da guerra europeia e o previsível
termo das hostilidades no Pacífico – proceder a um «balanço imediato da
situação em África para se poderem tomar as medidas imperiosamente exigidas a
curto prazo e preparar as previsíveis a médio e longo prazo»[2]. Em
17 de Março, confirmou que partiria de barco cerca de 25 de Maio, «a fim de
inaugurar o porto de Luanda»; quanto à notícia pública desta viagem proporcionou
imediatas «impressões de satisfação», embora a complicação nas «coisas do
Extremo Oriente» pudessem impedir o seu afastamento de Lisboa, o que ficava dependente
do «conselho» de Salazar; e, além dos preparativos indispensáveis, julgava «também
útil a comunicação ao Conselho de Ministros, onde gostaria de fazer uma
exposição sobre a situação actual das nossas colónias»[3].
Em 18 de Abril, Salazar notava que as diligências que o Primeiro- Ministro sul-africano,
Marechal Smuts, andava a fazer eram mais um motivo (a ser «maduramente
considerado») para a preparação da viagem de Marcelo Caetano em próximo
Conselho de Ministros[4]. A
viagem a África começou a ser tratada reunião de 1 de Maio e em 17 de Maio decidiu-se
sobre a substituição interina pelo Ministro da Marinha[5].
De seguida, Salazar e Marcelo acertaram os termos da ida ao Congo Belga[6].
Finalmente,
no Conselho de Ministros de 4 de Junho de 1945, após uma exposição do
Presidente do Conselho sobre política interna e externa, Marcelo Caetano fez a
sua exposição sobre a «próxima viagem às colónias e principais problemas de
política colonial e externa com ela relacionados», destacando especialmente,
quanto a S. Tomé, «o eterno problema da mão-de-obra», quanto a Angola, a
instabilidade económica e as tendências separatistas das populações brancas e,
quanto a Moçambique, a desnacionalização da juventude e a atracção sul-africana[7].
A
«transcendental viagem»[8] iria
durar quase seis meses (incluindo um mês de navegação) e, segundo Vasco Pulido
Valente, transformou Marcelo Caetano de «imperialista
teórico» num africanista, «ainda por cima num africanista sentimental»[9]. A
visita, definida como de inspecção e planeamento, obedeceu a uma programação múltipla:
inaugurações e comemorações, contacto com as realidades e as populações locais,
estudo e resolução de problemas, projecção das reformas que o Ministério
encetara, afirmação da presença, interesse e atenção portuguesas, apreciação da
nova conjuntura internacional e africana após o fim da Segunda Guerra na Europa
e no Pacífico. Foi-lhe dada grande projecção em todo o Império, decorrendo com
elevada solenidade e ditirâmbica cobertura jornalística (incluindo os jornais
sul-africanos)[10].
Na apreciação destacada de O Mundo
Português, revista de propaganda colonial a cargo da Agência Geral das
Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional, os contactos que Marcelo
Caetano estabeleceria com as autoridades da União Sul-Africana e do Congo Belga
seriam «preciosos» para «o fortalecimento da ‘política de boa vizinhança’ na
África, que é tão necessária como aquela que existe na Europa, dentro do
espírito da política atlântica»[11].
Além
da esposa de Marcelo Caetano, compunham a equipa oficial o chefe de gabinete,
dois secretários, dois Inspectores Superiores (dirigentes do Fomento Colonial e
do recém-criado Gabinete de Urbanização Colonial) e dois arquitectos adjuntos. Embarcaram
a 9 de Junho e, após passagem pelo Funchal, o paquete “Mouzinho” da Companhia
Colonial de Navegação entrou no porto de S. Tomé em 25 de Junho; a delegação
visitou a cidade e a ilha, sempre acompanhada pelo Governador Carlos Gorgulho;
à noite, prosseguiu com destino a Luanda.
Na
primeira estadia em Angola, de 29 de Junho a 20 de Julho, Marcelo Caetano
presidiu à inauguração do novo porto de Luanda – uma das principais finalidades
da deslocação –, fez e recebeu várias visitas, deslocou-se ao interior, foi a
Vila Salazar e a Malange e percorreu demoradamente o Dundo, onde apreciou as
explorações da Companhia de Diamantes de Angola. Regressou a Luanda em 15 de
Julho.
A
21 de Julho seguiu de avião com destino a Lourenço Marques, pernoitando em
Lusaca, como hóspede do Governador da Rodésia do Norte. A estadia em Moçambique
prolongou-se por mês e meio, de 22 de Julho a 7 de Setembro. Começou com as
especiais comemorações do cinquentenário do caminho-de-ferro Lourenço
Marques-Pretória, para as quais fora especialmente convidado o Marechal Smuts,
cujos desígnios imperialistas, e em especial os apetites sobre o território
moçambicano manifestados na época da Primeira Guerra Mundial, tinham entretanto
“acalmado”. Em retribuição, Marcelo Caetano deslocou-se a Pretória, Joanesburgo
e às minas do Rand, aproveitando a
oportunidade para «conversas íntimas e francas» sobre a ONU, sobre as
consequências pós-guerra da vitória da democracia e em particular sobre as
novas políticas francesa e britânica[12]. Regressou
em 29 de Julho, para percorrer o território moçambicano. Em 3 de Agosto, na
Beira, recebeu a visita do Chefe do Governo da Rodésia, acompanhado pelo
Ministro do Comércio; em 29 de Agosto, em Lourenço Marques, recebeu a visita do
Governador-Geral de Madagáscar. Como a ida do Ministro a Timor (para acompanhar
a sua libertação da ocupação japonesa) foi suspensa, Marcelo Caetano, depois de
concluir a visita ao norte de Moçambique, regressou, por via aérea, a Luanda.
A
segunda (e principal) estadia em Angola prolongou-se de 13 de Setembro a 28 de
Outubro. Visitou Vila Lusa, Silva Porto, Nova Lisboa, Moçâmedes e Benguela. Em
Luanda, para além de receber o Governador-Geral da África Equatorial Francesa
vindo expressamente de Brazzaville, soube que a Assembleia Nacional aprovara a
revisão constitucional, incluindo a do Acto Colonial – «esta sob proposta que [ele] deixara pronta e
apreciada em Conselho de Ministros, antes de partir para África»[13] –
e teve notícia da dissolução da Assembleia Nacional, em 6 de Outubro, e
convocação de eleições antecipadas para 18 de Novembro. Aberta a campanha
eleitoral, Marcelo Caetano constatou a grande «inquietação» que lavrava no meio
político angolano, pois «os elementos que se consideravam em oposição ao
governo de Lisboa imediatamente entraram em actividade»[14].
Tendo conseguido que lhe fosse entregue a escolha dos candidatos da União
Nacional, impôs a inclusão da candidatura (independente) de Henrique Galvão, o
qual, na sua qualidade de Inspector Superior da Administração Colonial, também
o tinha acompanhado em algumas fases da visita, quer em Angola quer em
Moçambique[15].
Passou
ainda por Cabinda e, em 14 de Novembro, chegou ao cais da estação marítima de
Alcântara – onde foi acolhido solene e calorosamente. Durante a sua estadia em
Angola e Moçambique, tinha proferido, mediante prévia autorização genérica do
Conselho de Ministro, variadas providências legislativas e executivas
(portarias e despachos, objecto de publicação em Volume próprio)[16]. Visavam
sobretudo o combate à discriminação racial e ao trabalho forçado, mas, como
conclui Valentim Alexandre, «as concessões políticas foram mínimas, não indo
além de um ligeiro abrandamento do regime fortemente centralista então em vigor»[17].
Em
1 de Dezembro, o jornal A Voz
publicou a propósito uma extensa entrevista em que Marcelo Caetano se pronunciava
sobre vários temas: o papel das missões católicas e da colonização, o problema
mineiro, a agricultura colonial, o desenvolvimento industrial, o sistema
financeiro colonial, a instrução das crianças brancas, as chamadas “licenças
graciosas”, a educação dos indígenas, concluindo com um resumo das suas
impressões e sentimentos[18].
Em 8 de Dezembro coube ao jornal O Século
publicar uma outra entrevista, esta centrada no “Ressurgimento de Timor”[19].
Em
Abril de 1946, a Seara Nova, então de
publicação semanal, iniciou a publicação de uma série de artigos, dedicados à
apreciação crítica da afirmação de Marcelo Caetano (apenas identificado como
«um ilustre colonialista»), proferida durante uma comunicação radiofónica
abordando a educação dos indígenas e dirigida «à colónia [branca] de
Moçambique» em Setembro de 1945, segundo a qual «os problemas do continente
africano têm de ser considerado na relatividade das circunstâncias de toda a
África sub-tropical»[20].
O articulista entendia que esta definição, dada a sua ambiguidade, não conduzia
a um raciocínio prático, sendo de lamentar que não fossem apresentadas
«fórmulas concretas para a solução de tais problemas»[21].
No decurso da publicação dos artigos, Marcelo Caetano, por via de “carta ao director”,
veio defender que toda a sua “comunicação” em causa demonstrava «a falsidade
das intenções e expressões» que lhe eram atribuídas[22]. Num
último comentário, um mês depois (mas datado de Abril de 1946, o que significa
que o texto original foi dividido em sete analíticos e não foi publicada
qualquer réplica a Marcelo Caetano), João Fernandes concluía que o melhoramento
das populações indígenas impunha a correcção de erros e procedimentos, a
reeducação dos elementos da administração portuguesa em moldes inteiramente
novos, a limitação e controlo da actividade dos brancos em relação ao trato dos
indígenas, o pagamento equitativo de salários e a protecção mediante mais ampla
assistência. Ou seja, «Em resumo: precisamos de formar uma consciência colonial
que honre a missão histórica» e era evidente que aqueles problemas não poderiam
«ser resolvidos sem uma profunda transformação da vida africana; e é com obras
que isso poderá ter lugar»[23].
Não
obstante estas intervenções públicas, em Portugal o assunto colonial continuou
a ser «um não assunto, exorcismado por não referência, tirando […] os casos
satisfatórios de Timor e Macau – e até que o da Índia surgisse, em Junho, com a
declaração de Gandhi, incitando os goeses contra o Governo português, depois
apaziguada»[24].
8.
O
“Memorandum” sobre a África Austral, de 1946
No
regresso, Marcelo Caetano elaborou um “Memorandum” sobre as Relações das colónias de Angola e Moçambique
com territórios estrangeiros vizinhos, com caráter confidencial e uma
tiragem restrita, destinado exclusivamente a políticos e funcionários
portugueses ligados aos assuntos versados. É um texto de difícil acesso[25].
Como se diz na prévia “Advertência”, não se tratava apenas de descrever os
problemas de vizinhança referentes aos «territórios estrangeiros em relação aos
quais houve ocasião durante a viagem de examinar e discutir tais problemas»; pretendia-se
também «apurar as constantes da política seguida nessas relações e contribuir
para definir as directrizes futuras».
O
Memorandum, datado de Maio de 1946, é
muito extenso, dividindo-se em dois capítulos, e contém quatro anexos.
O
capítulo I, dedicado às “Relações das colónias de Angola e de Moçambique com a
União da África do Sul”, aborda 19 temas, destacando-se: posição politica da
União Sul-Africana, relações de Portugal com a União, utilização do porto e do
caminho-de-ferro de Lourenço Marques, evolução das várias convenções celebradas
até ao Acordo de 1934 – a partir do qual passaram «a decorrer normalmente» –,
emigração para o Rand e questão das
águas do Cunene[26].
O
capítulo II, dedicado ao estudo das “Relações das colónias de Angola e de
Moçambique com os vizinhos territórios britânicos”, além de breves notas
históricas, aprofunda os regimes da construção, concessão, resgate e
nacionalização do porto e dos caminhos-de-ferro da Beira[27].
Embora
não formuladas como tal pelo “Memorandum” podem enumerar-se as seguintes
conclusões:
1)- não existia «um perigo imperialista
imediato no Sul da África, mas seria uma imprudência negar-lhe existência
potencial»[28];
2)- a história das relações entre
Portugal e o Transvaal (ou a União) com respeito a Lourenço Marques abrangia
três períodos: (i)- de 1875 até ao termo da guerra dos boers (1901); (ii)- de 1901 a 1928; (iii)- de 1928 em diante[29];
3)- a emigração dos indígenas para o Rand estava «longe de ter uma fácil solução», sendo
indicadas cinco «medidas necessárias»[30];
4)- os principais problemas com os
territórios britânicos confinantes com Angola e Moçambique eram três: i)-
caminhos-de-ferro e porto da Beira; ii)- fronteiras com as Rodésias e a
Niassalândia e emigração clandestina de indígenas; iii)- ligação da Rodésia do
Norte com o porto do Lobito[31].
Segundo o próprio Marcelo Caetano este
relatório – resultado do que escutara e tratara nos encontros com os dirigentes
dos territórios estrangeiros vizinhos e abordando problemas da maior
importância que não se encontravam devidamente instruídos e esclarecidos nos
arquivos do Ministério – serviu para orientar as negociações sobre os assuntos
versados e «continuou a ser útil aos que me sucederam»[32].
No entanto a sua amplitude, sobretudo quanto à política internacional, ficou prejudicada
por não se terem realizado a visita oficial ao Congo Belga nem as previstas
conversações com o Ministro das Colónias belga[33].
Mas ainda mais por não desenvolver as questões geo-estratégicas tratadas nas
conversações com o Marechal Smuts – que, noutra fonte, Marcelo Caetano resume
com tendo privilegiado o caso de Timor e as garantias de que a África do Sul
não tinha ambições territoriais, pretendia prosseguir uma política de boa
vizinhança, defendia o desenvolvimento e o povoamento branco de Moçambique, e
que, no final, Smuts revelara o seu cepticismo quanto à Organização das Nações
Unidas e ao futuro da Europa e do Mundo, prevendo que uma próxima grande crise
voltaria a desencadear-se nos Estados Unidos[34].
António Duarte Silva
[8] Carta de López
Rodó, de 21/11/1945, apud Paulo Miguel Henriques, Cartas entre Marcello Caetano e Laureano López Rodó, Lisboa,
Aletheia Editores, 2014, p. 64. López Rodó então assistente universitário,
futuro catedrático e ministro de Franco, tornara-se amigo “de casa” de Marcelo
Caetano aquando da nomeação como Ministro das Colónias – cfr. Marcello Caetano,
Minhas Memórias…, cit. pp. 176/177.
[10] O relato da
viagem foi objecto de dois números exclusivos do Boletim Geral das Colónias, n.º 247, Janeiro de 1946, e n.º 248,
Fevereiro de 1946. Ver também Marcelo Caetano, Alguns Discursos e Relatórios. Viagem Ministerial a África em 1945,
Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, e Minhas
Memórias…, cit., pp. 203 e segs. O Arquivo
Marcello Caetano contém 240 documentos sobre esta “Viagem Ministerial a
África”.
[11] Citado por
Pedro Miguel Sousa, O Colonialismo de
Salazar, Via Occidentalis Editora, 2008, p. 143.
[16] Cfr. Providências legislativas tomadas pelo
Ministro das Colónias em Angola e Moçambique em 1945, Lisboa, Agência Geral
das Colónias, 1945.
[17] Valentim
Alexandre, “ O império colonial no século XX”, in Velho Brasil, Novas Áfricas – Portugal e o Império (1808-1975),
Porto, Edições Afrontamento, 2000, p. 194.
[20] Mais
rigorosamente a afirmação destacada de Marcelo Caetano (usada por este como
«banalíssima verdade» e por ele usada para minimizar qualquer comparação entre
a situação local e a da União da África do Sul) foi a seguinte: «os problemas
de Moçambique são em grande parte os problemas do continente africano e têm de
ser considerados na relatividade das circunstâncias de toda a África
inter-tropical» – cfr. Boletim Geral das
Colónias, n.º 247, Janeiro de 1946, p. 40
[21] João Fernandes,
“Problemas Coloniais””, in Seara Nova,
n.º 975, 20 de Abril de 1946, pp. 254/255. Segundo José-Augusto França, O «Ano XX» - Lisboa, 1946. Estudo de Factos
Socioculturais, cit., p. 114, trata-se de um «pseudónimo ironicamente
queirosiano». João Fernandes era um colaborador regular da Seara Nova, assinando variadas “Notas da vida africana”.
[22] Marcelo
Caetano, “Problemas Coloniais”, in Seara
Nova, n.º 985, 29 de Junho de 1946, pp. 139/140.
[25] Marcelo
Caetano, Relações das colónias de Angola
e Moçambique com territórios estrangeiros vizinhos: Memorandum, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1946. Não existe na Biblioteca Nacional nem acessível no Arquivo Marcello Caetano. O exemplar
consultado encontra-se na Biblioteca Universitária João Paulo II (Universidade
Católica).
[33] Carta de
Marcelo Caetano a Salazar, de 31 de Maio de 1945, apud José Freire Antunes, op. cit., p. 162
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