42.
Entre
Outubro de 2006 e Janeiro de 2007 esteve patente ao público, na Fundação
Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a exposição «Mundos de Sonho. Gravuras japonesas
da colecção de Robert O. Muller», com curadoria de James T. Ulak.
Robert Otto Muller (1911-2003) foi um importante coleccionador de gravuras japonesas,
sobretudo do período Meiji, ou seja, de uma fase posterior àquela em que se
notabilizaram Katsushika Hokusai ou Utagawa Hiroshige. O seu acervo, composto
por mais de 4.000 gravuras e outros documentos, integra actualmente a Robert O.
Muller Collection da Arthur M. Sackler Gallery do Smithsonian, em Washington,
fruto da doação feita ainda em vida do coleccionador.
Robert e Inge Muller no Imperial Hotel em Tóquio, 1940
|
Muller
comprou a sua primeira gravura japonesa em 1931 (uma paisagem de Kawase Hasui,
adquirida em Nova Iorque), quando tinha apenas 20 anos e estudava em Harvard.
Nascido em Pelham, Nova Iorque, em 5 de Outubro de 1911, Robert nasceu num
ambiente privilegiado, sendo bisneto do fundador da farmacêutica Pfizer. De ascendência
germânica, aprendeu alemão e, ao longo da vida, sempre se manteve interessado
na cultura alemã, especialmente a ópera. Após formar-se em Harvard, em 1934,
trabalhou episodicamente na Lufthansa e graças aos contactos aí feitos pôde
viajar até Frankfurt no famoso Hindenburg, viagem pela qual pagou a astronómica
quantia de 400 dólares, só ida. No regresso aos Estados Unidos, visitou Thomas
Bates Blow (1854-1941), um proeminente botânico e coleccionador de gravuras
japonesas que o familiarizou com as estampas do período Meiji e, em particular,
com as da autoria de Kobayashi Kiyochika (1847-1915).
Robert
Muller iniciou então a sua vasta colecção, beneficiando do facto de as gravuras
do período que lhe interessavam não serem na época muito disputadas por um
público que privilegiava as estampas dos séculos XVII a XIX, considerados a
«idade de ouro» das xilogravuras nipónicas. O interesse pelas gravuras do
período Meiji foi em larga medida promovido por Watanabe Shōzaburō (1885-1962),
um empresário e editor que se apercebeu do potencial artístico mas sobretudo
comercial dos trabalhos dessa época, mais acessíveis ao grande público e
igualmente evocativos do «exotismo» nipónico. Em 1940, em viagem de lua-de-mel
com a sua mulher Ingeborg Lee (1918-2004), Robert Muller visitou o Japão pela
primeira vez, tendo aí permanecido cerca de três meses, com viagens de curta duração
à Coreia e à China.
No
regresso aos Estados Unidos, Muller abriu em Nova Iorque uma galeria dedicada a
gravuras japonesas, mas o ataque a Pearl Harbor em Dezembro de 1941 e o início
da guerra com o Japão impediram o desenvolvimento deste negócio: no dia do
ataque a Pearl Harbor, Muller teve de se precipitar para a galeria, retirando
da montra as gravuras japonesas em exposição; por outro lado, com a guerra
fechavam-se os canais de fornecimento de gravuras que, com grande tenacidade
negocial, Robert O. Muller estabelecera no Japão. Tendo decidido sair de Nova
Iorque, Muller fixa-se no campo, no Connecticut, em 1946, sendo aí que reuniu a
sua colecção de gravuras japonesas, que, como «gift to the nation» legou em vida à Sackler Gallery, como informam
Joan B. Mirvbiss e James T. Ulak no texto introdutório ao catálogo da exposição
patente na Fundação Calouste Gulbenkian.
Tusji Kakō, Destruição de Dois Navios de Guerra Russos, 1904
Arthur M. Sackler Gallery, Washington; Robert O. Muller Collection, S2003.8.2787a-c
|
Não
tendo exemplares da obra de Hokusai, a mostra patente em Lisboa exibiu, ainda
assim, uma xilogravura de Tusji Kakō (1870-1931) onde é possível entrever a
influência do mestre e, em especial de A
Grande Onda (atente-se na onda junto ao convés do navio em primeiro plano, muito semelhante àquela que, na obra de Hokusai, mimetiza o Monte Fuji). Na verdade, o modo de figuração das ondas na gravura Destruição de Dois Navios de Guerra Russos,
datada de 1904, tem afinidades notórias com A
Grande Onda, sendo extremamente improvável que Kakō desconhecesse a opus magnum de Katsushika Hokusai. O mesmo também sucede, e de forma ainda mais patente, numa obra de Watanabe Nobukazu do mesmo ano (e não integrada na colecção de Robert Muller): Ataque Nocturno a Port Arthur.
Watanabe Nobukazu, Ataque Nocturno a Port Arthur, 1904
|
É
inquestionavelmente interessante o facto desta similitude com A Grande Onda surgir numa gravura de
propaganda de guerra, feita nos alvores do conflito russo-japonês de 1904-05.
Não era, aliás, a primeira vez (nem a última) que, segundo parece, o célebre desenho
de Hokusai inspirou obras de cariz propagandístico. Na verdade, algumas
representações de batalhas navais da guerra sino-japonesa de 1894-1895 têm, ou
aparentam ter, claras afinidades visuais com A Grande Onda.
Sem comentários:
Enviar um comentário