50.
Trinta e seis vezes e mais outras cem
o pintor escreveu essa montanha,
devotado, sem êxito, à façanha
(trinta e seis vezes e mais outras cem)
de entender o vulcão que ele trazia,
feliz, mesmerizado, no seu peito,
mas a montanha de perfil perfeito
não lhe quis revelar sua magia:
doando-se do ar de cada dia,
mil vezes, cada noite cintilante
abandonando, como sem valia;
cada imagem imersa num instante,
em cada forma a forma transformada,
indiferente, distante, modesta —,
sabendo, como uma visão, do nada,
acontecer atrás de cada fresta.
Sechsunddreißig Mal und hundert Mal
hat der Maler jenen Berg
geschrieben,
weggerissen, wieder hingetrieben
(sechsunddreißig Mal und
hundert Mal)
zu dem unbegreiflichen Vulkane,
selig, voll Versuchung,
ohne Rat, −
während der mit Umriss
Angetane
seiner Herrlichkeit nicht
Einhalt tat:
tausendmal aus allen Tagen tauchend,
Nächte ohne gleichen von
sich ab
fallen lassend, alle wie zu knapp;
jedes Bild im Augenblick verbrauchend,
von Gestalt gesteigert zu Gestalt,
teilnahmslos und weit und
ohne Meinung −,
um auf einmal wissend, wie
Erscheinung,
sich zu heben hinter jedem
Spalt.
O
poema «A Montanha» (Der Berg), de
Rainer (nascido René) Maria Rilke (1875-1926), aqui transcrito a partir da tradução
brasileira de Augusto de Campos (Coisas e
Anjos de Rilke, São Paulo, Perspectiva, 2013, pp. 296-297), constitui a expressão
lírica mais importante da obra de Katsushika Hokusai e, segundo se diz, da
xilogravura A Grande Onda (cf., por
exemplo, a página na Internet da National Gallery of Victoria, de Melbourne,
aqui).
Trinta e seis vezes e mais outras cem / o pintor
escreveu essa montanha (Sechsunddreißig Mal und hundert Mal / hat der Maler jenen Berg geschrieben) é uma clara alusão a Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji e à
série subsequente, Cem Vistas do Monte Fuji, sendo a montanha,
obviamente, o Monte Fuji e o pintor, como também é óbvio, Katsushika Hokusai (cf.,
por exemplo, Judith Ryan, Rilke, Modernism and Poetic Tradition,
Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 127).
Rilke escreveu Der Berg em Paris, estando o poema datado de Julho de 1906 (sem
indicação de dia) a 31 de Julho de 1907 e sendo publicado no segundo volume dos
Novos Poemas (Neue Gedichte II), de 1908.
Não
datava daí o seu interesse pelas artes visuais nem a sua apurada sensibilidade
estética, características que o levam a destacar-se até de outros escritores de
língua alemã do seu tempo – como Hugo von Hofmannsthal, Hermann Bahr, Eduard
von Keyserling ou Rudolf Borchardt – que, emulando uma tradição há muito
enraizada em França, mesclavam a escrita literária ou ficcional com ensaios
eruditos e refinados sobre o mundo das artes, como sublinha Helen Bridge, que
acrescenta: «Rilke foi mais longe do que qualquer outro escritor alemão ao usar
ideias extraídas das artes visuais e plásticas na construção da sua poesia»
(cf. Helen Bridge, «Rilke and the visual arts», in Karen Leeder e Robert Vilain
(eds.), The Cambridge Companion to Rilke,
Cambridge, Cambridge University Press, 2010, p. 145; entre nós, Maria Elsa
Marques da Paixão Pina, A influência das
artes plásticas na obra de Rainer Maria Rilke, dissertação de licenciatura
em Filologia Germânica, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
policop., Lisboa, 1958).
Será
precisamente nos Neue Gedichte, de
1907 e de 1908, onde se insere Der Berg,
que o influxo das artes visuais é mais notório, ainda que Rilke estivesse
familiarizado com esse universo desde muito cedo, quando, algo a contragosto,
estudou história da arte em Praga, Munique e Berlim e se interessou de forma
entusiástica pelos movimentos artísticos que então se desenvolviam na Alemanha.
Rilke escreverá diversos artigos de crítica artística em publicações como Ver Sacrum e Wiener Rundschau, em que demonstra estar a par das concepções da
Jugendstil e dos neo-impressionistas franceses, sendo um visitante habitual de
exposições, museus e galerias de arte
e um atento leitor da obra mais marcante da época, a História da Pintura (Geschichte
der Malerei¸ em cinco volumes, 1899-1900), do influente crítico e
historiador Richard Muther (1860-1909).
Richard Muther (1860-1909)
|
Recorde-se, por outro lado, que é na companhia de um pintor e seu amigo, Emil Orlik, que irá estudar para Munique em 1896. É em Munique que conhece Lou Andreas-Salomé (Louise von Salomé, 1861-1937), que o exorta a estudar o Renascimento e a arte russa e com quem viaja até Florença e à Toscânia em 1898, aí escrevendo Diário Florentino (Florenzer Tagebuch), a ela dedicado e publicado muito depois da morte de ambos, em 1942. Em Florença, Rilke encontra casualmente o pintor Heinrich Vogeler, que o convida a visitar Worpswede, experiência que se virá a revelar muito importante na sua trajectória intelectual mas também pessoal.
Em
1899, conhece em Viena Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmanstahl e realiza a
primeira das suas duas viagens à Rússia, com Lou Andrés-Salomé e o seu marido,
onde contacta Leonid Pasternak e Leo Tolstoi. Dessa experiência escreveu um
ensaio sobre a arte russa que será publicado em 1901. Antes disso, entre Maio e
finais de Agosto de 1900, e novamente na companhia de Lou, faz uma nova viagem
à Rússia, país cuja arte, cultura e poesia estudara intensamente (sobre esta
viagem, cf. Lou Andreas-Salomé, Na Rússia
com Rilke. Diário da viagem com Rainer Maria Rilke em 1900, tradução
portuguesa, Lisboa, Relógio d’Água, 2018, onde se refere uma visita à Galeria Chtchukine, em Moscovo, onde Lou e Rainer, além de quadros impressionistas e simbolistas, admiraram arte japonesa: «No salão japonês, o biombo representando a deusa da graça tem uma força extraordinária: uma figura cinzenta, como as águas sobre as quais desliza erguida sobre um peixe. Este não é gracioso, embora a linha do seu movimento o seja, e a figura encarna este ritmo. Também as restantes peças japonesas são das mais belas que já vi», p. 15).
Regressado
da Rússia, em Setembro desse ano de 1900 desloca-se a Worpswede, uma aldeia nos
arredores de Bremen onde desde 1889 se havia instalado uma colónia de artistas,
tendo o poeta escrito um longo ensaio sobre essa marcante experiência de
convívio quotidiano e directo com diversos criadores que aí se encontravam, como
a pintora Paula Becker, o escritor Carl Hauptmann e a escultora Clara Westhoff,
com quem Rilke vem a casar em Abril de 1901, tendo o casal fixado residência em
Westerwede, nas imediações de Worpswede (cf. Wolfgang Leppmann, Rilke. A life, trad. inglesa, Cambridge,
Lutterworth Press, 1984, pp. 122ss e, sobre o casamento com Clara, um dos
episódios menos conhecidos da sua vida, sobre o qual o poeta pouco ou nada
disse, pp. 135ss; sobre Worpswede, cf., entre nós, não numa perspectiva de
história literária mas de análise textual, José Miranda Justo, «Do incomensurável
rosto da paisagem: estranhamento e singularidade no livro de Rilke sobre os
pintores de Worpswede», in AA.VV., Rilke.
70 Anos Depois, Colóquio Interdisciplinar, Lisboa, Edições Colibri, 1997,
pp. 307-328).
A
estadia em Worpswede resultara de um convite feito há muito pelo pintor Heinrich
Vogeler, quando se conheceram acidentalmente em Florença, como atrás se
referiu. Rilke aceita, em larga medida, por necessidades financeiras, mas
também devido à tensão gerada entre si e Lou Andreas-Salomé no decurso da
segunda viagem de ambos à Rússia, o que o levaria a uma ruptura com Lou e ao
fim do projecto de efectuar uma terceira visita àquele país, ao abandono dos
estudos e ao casamento algo precipitado com Clara Westehoff. A permanência na
colónia artística do norte da Alemanha será decisiva para Rilke, a ponto de
este escrever no seu diário: «sinto que só agora estou a aprender a olhar para
as imagens». Ensaia, então, uma distinção entre duas formas de leitura de um
quadro, uma «novelística», outra «lírica»; a primeira assimila o visual como
modelo literário, focando-se no seu conteúdo narrativo ou na atmosfera
retratada, enquanto a segunda procura fazer justiça ou ir ao encontro da
qualidade puramente visual da pintura, sendo este último o caminho que o poeta se
propõe trilhar.
Quando
decide escrever sobre Worpswede, na Primavera de 1902, muito mudara na vida de
Rilke relativamente ao tempo em que lá estivera pela primeira vez, ainda
solteiro, dois anos antes, em 1900. Em Dezembro de 1901 nasce a sua filha Ruth
(«o único período em que vivi plenamente foram os dez dias após o nascimento de
Ruth, quando vi uma realidade indescritível até nos seus mais ínfimos
detalhes», escreverá em Setembro de 1907: cf. Lettres, 1901-1911, trad. francesa, Paris, Librairie Stock, 1934).
Aliada ao nascimento da filha, a interrupção do apoio financeiro que recebia do
seu tio Jaroslav Rilke e dos seus primos, em Janeiro de 1902, fazem-no procurar
fontes de rendimento (a partir de 1905, contará com o apoio do banqueiro e
escritor Karl von der Heydt (1858-1922) e, em 26 de Junho de 1914, no último domingo antes
de deflagrar a Grande Guerra, um jovem austríaco de nome Ludwig Wittgenstein
far-lhe-á, a título anónimo, uma doação de 50 mil coroas). Como modo de vida, torna-se
crítico de arte do jornal Das Bremer
Tagblatt e, graças à influência de Gustav Pauli (1866-1938), director da Kunsthalle de
Bremen, obtém a encomenda de um livro sobre Worpswede feita pelos editores de
arte Velhagen & Klasing. A escrita da obra não o satisfaz, descrevendo esse
trabalho como «metade prazer, metade canseira».
É
em Worpswede que, em conversas com Clara Westehoff, que trabalhara com o mestre
francês, e com Paula Becker, nasce o seu desejo de escrever sobre Rodin e de o
conhecer pessoalmente. Rilke começa a admirar cada vez mais a escultura, a
permanência e a solidão das obras escultóricas, características que, em seu
entender, as apartam da transitoriedade da perspectiva de quem as observa. Em
Setembro de 1901, é num estado de alguma exaltação que anota no seu diário:
«Tenho em definitivo de ir a Paris após o Natal para ver os quadros, visitar
Rodin e pôr-me a par da infinidade de coisas de que me tenho afastado neste meu
isolamento». Contudo, só cerca de um ano depois concretizará este projecto.
No
final de Agosto de 1902, Rilke desloca-se a Paris na companhia da sua mulher,
Clara, tendo a filha ficado ao cuidado dos avós maternos, em Bremen. À semelhança
do que ocorrera com Worpswede, a escrita de uma monografia sobre Rodin resultou
da encomenda de um volume para uma colecção dirigida por Richard Muther, o
atrás citado autor de História da Pintura
Moderna, que Rilke admirava profundamente e com quem chegou a pensar fazer
um doutoramento.
A correspondência do poeta mostra a sua
enorme admiração por Auguste Rodin, quer no plano artístico, quer no plano
pessoal (cf. Helen Bridge, ob. cit.,
p. 150; Maria Elsa Marques da Paixão Pina, ob.
cit., pp. 44ss). Pouco antes de partir para Paris, louvava a «grandeza e a
magnificência» dos trabalhos de Rodin, idealizando-o como um «mestre» (sic) solitário, inteiramente devotado à
sua arte. O escultor dir-lhe-á, em jeito de conselho «Oui, il faut travailler,
rien que travailler», algo que deixa Rilke algo perplexo, já que sentia ser
difícil aplicar essa máxima, plenamente explicável no labor da escultura, ao
campo da criação poética, como confessará numa carta a Lou Andréas-Salomé
(sobre as dificuldades de aplicação da teoria toujours travailler à actividade poética, cf. F. W. A. Van
Heerikhuizen, Rainer Maria Rilke. His
life and work, trad.
inglesa, Londres, Routledge and Keegan Paul, 1959, pp. 163-164).
A
comoção causada pela estadia em Paris e pelo contacto com Rodin estão na base
de um dos seus mais conhecidos poemas da altura, «A Pantera» (Der Panther), redigido no Jardin des
Plantes provavelmente em Novembro de 1902 e que aqui se transcreve na tradução
brasileira de Augusto de Campos (ob. cit.,
pp. 120-121):
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
É interessante confrontar esta tradução
com a de Paulo Quintela (Rainer Maria Rilke, Poemas, I, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, 2ª ed.,
Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1967, p. 215):
O seu olhar, do repassar das barras,
cansou-se tanto que já nada retém.
É como se houvesse um milhar de barras
e para lá das barras nenhum mundo.
O brando andar de passo forte e dúctil
que se move no mais estreito círculo
é dança de força à volta dum centro
em que está aturdido um grande querer.
De onde a onde abre a cortina das pupilas
silenciosa –. Então entra uma imagem,
passa pela calma tensa dos membros –
e cessa de existir no coração.
E, por sua vez, atente-se na tradução
de Vasco Graça Moura (Rainer Maria Rilke, Carrossel
e outros poemas, organização e tradução de Vasco Graça Moura com dez
desenhos de Júlio Resende, Porto, Edições Asa, 2004, p. 13):
De percorrer as grades o seu olhar cansou-se
e não retém mais nada lá no fundo,
como se a jaula de mil barras fosse
e além das barras não houvesse mundo.
O andar elástico dos passos fortes dentro
da ínfima espiral assim traçada
é uma dança da força em torno ao centro
de uma grande vontade atordoada.
Mas por vezes a cortina da pupila
ergue-se sem ruído – e uma imagem então
vai pelos membros em tensão tranquila
até desvanecer no coração.
Em 1903, é publicada a sua monografia
sobre Auguste Rodin, escrita em Novembro e Dezembro do ano anterior. Um ano
mais tarde, e comprovando o seu envolvimento nos meios artísticos, Rilke foi
convidado para uma viagem à Suécia em que ficou hospedado na casa do pintor
Ernst Norlind, em Lund (cf. Wolfgang Leppmann, ob. cit., pp. 194ss)
Em Agosto de 1905, regressa a Paris,
tendo passado o Inverno na casa de Rodin em Meudon-Val-Fleury. É então que o
escultor o convida para seu secretário particular: «desde há cerca de um mês,
trato da correspondência de Rodin, na medida em que o meu francês o permite, e
à maneira de um secretário privado», dirá o poeta numa carta enviada de
Meudon-Val-Fleury para Karl von der Heydt, em Outubro de 1905. Aceitara com
entusiasmo o convite, pois, como confessará na altura, deslumbrado, «a
proximidade de Rodin cria em mim uma atmosfera de trabalho calorosa e fecunda e
o seu exemplo de vida (…), é tão discreto, tão profundo e tão límpido que não
podemos encontrar noutro lugar (…) uma força semelhante e uma tal segurança». Nesse
mesmo ano de 1905, acumulam-se os louvores a Rodin, às suas esculturas, aos
seus desenhos («esta obra tremenda (…) é como uma grande fonte: as suas coisas
são uma força luminosa em direcção a um jorrar e brilhar nas alturas»: cf. Auguste Rodin / Rainer Maria Rilke, Momentos de Paixão, trad. portuguesa de
João Barrento, José Miranda Justo e Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, 2004,
p. 81).
Rilke
irá desempenhar as tarefas de secretário de Rodin até romper relações com este,
em Maio de 1906, que o despediu de forma abrupta, sem um motivo aparente,
sabendo-se apenas que Rilke começara a entender que aquelas funções eram um
fardo que prejudicava o exercício da sua actividade literária e sobretudo
poética. O despedimento, ao que parece ditado por uma razão trivial (Rilke
abrira involuntariamente uma carta dirigida a Rodin…), não abala a admiração do
poeta pelo autor de O Beijo, pelo
menos no imediato. Mais tarde, em meados de 1907, confessará que a sua visão do
trabalho de Rodin se alterara significativamente, o que porventura se terá
devido ao facto de Rilke ter abandonado a influência das obras de Richard
Muther em favor do livro Arte Moderna (Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst: vergleichende
Betrachtungen der bildenden Künste, als Beitrag zu einer neuen Aesthetik,
1904) de Julius Meier-Graefe (1867-1935), que traça um juízo bastante severo da
arte de Rodin. Aliás, em Outubro de 1907, o poeta encontrará Julius Meier-Graefe
no Salon d’Automne, onde se expunha uma antologia dos trabalhos de Cézanne,
tendo Rilke anotado esse encontro numa das suas Cartas sobre Cézanne.
Além
da monografia publicada em 1903, Rilke fará conferências sobre Rodin em Praga e
em Dresden, em Outubro de 1905, e em Elberfeld, Berlim e Hamburgo, no Verão de
1906. Tudo indicia, portanto, que o fim da relação laboral com Rodin não
afectara, pelo menos numa primeira fase, a admiração de Rilke pelo escultor, a
quem, aliás, dedicará o segundo volume dos Novos
Poemas, publicado em 1908.
Camille Claudel (1864-1943)
|
A
este propósito, deve lembrar-se que Camille Claudel (1864-1943), irmã mais
velha do poeta Paul Claudel, uma discípula, confidente, modelo e amante do
escultor, era uma devotada apreciadora da obra de Hokusai, paixão que
partilhava com Debussy: ambos passavam horas a fio a folhear a manga do autor de A Grande Onda, tendo Camille realizado, entre 1897 e 1903, uma
pequena escultura decorativa de 56 centímetros, em ónix, mármore e bronze que
evoca a xilogravura de Hokusai e se intitula justamente «A Onda» (La Vague ou Les baigneuses),
encontrando-se hoje no Museu Rodin, em Paris, e descrita aqui.
Camille Claudel, La Vague ou Les baigneuses, 1897-1903
Museu Rodin, S.C. 66559
|
Inspirado pela exposição de Cézanne no
Salon d’Automne, que visita quase diariamente em Outubro 1907, Rilke escreverá
um longo ensaio sobre o pintor. Antes disso, no final de 1906 e no início de
1907, o poeta interessara-se pelos trabalhos de Van Gogh e de Manet, mas nenhum
deles terá sobre Rilke o impacto da retrospectiva de Cézanne. Na
correspondência com a mulher, escreverá profusamente sobre a funda impressão
que a pintura de Cézanne lhe causara, sendo esse epistolário publicado
postumamente com o sugestivo título Cartas
sobre Cézanne.
Em 1908, sai o segundo volume de Novos Poemas (Neue Gedichte II), sendo aí publicado Der Berg. A referência ao Fuji, veladamente evocado como «montanha»
e como «vulcão», fazem de Der Berg um
exemplo paradigmático dos Dinggedicht rilkeanos,
a um tempo «poemas sobre coisas» (objectos, plantas, animais) e poemas que
procuram criar uma equivalência linguística às coisas através das propriedades
materiais do verbo, nomeadamente a sonoridade e a sintaxe (cf. Helen Bridge, ob. cit., p. 156), havendo uma oposição
clara entre «poemas de coisas» (Dinggedicht)
e a «poesia do eu» (Ichdichtung) (sobre o programa estético da
«poesia-objecto», em que destaca o impacto da força criativa de Rodin e a
influência de simbolistas franceses como Mallarmé, Rimbaud, Baudelaire e Verlaine,
mas atendo-se ao primeiro volume de Novos
Poemas, sem mencionar, portanto, Der
Berg, cf. Maria Teresa Dias Furtado, «Rilke: os poemas-objecto», Revista da Faculdade de Letras, nº 5, 5ª
série, Abril de 1986, pp. 67-80).
No vasto conjunto dos seus escritos
ensaísticos, o nome de Hokusai é citado, facto demonstrativo de que Rilke
conhecia o autor de A Grande Onda,
como é evidente pelo poema Der Berg,
mas estava também familiarizado com a sua obra, o que poderá ter advindo da
leitura do conhecido livro de Goncourt (logo nas primeiras linhas de O Salão dos Três, de Novembro de 1898,
Rilke menciona, sem o especificar, «um volume de Goncourt») ou do envolvimento
do poeta nos meios artísticos parisienses que ainda ecoavam o japonisme tardo-oitocentista.
Sem
contestar a tese de Dieter Bassermann (Der
späte Rilke, 1947; Der andere Rilke,
1961) segundo a qual Rilke nunca se debruçou seriamente sobre a sabedoria
asiática – da Índia, da China, do Japão – e dela só tinha um conhecimento
casual, trabalhos mais recentes têm vindo a defender a tese de que existem
múltiplos pontos de contacto entre Rilke e o Oriente. Tais investigações, que
incluem a relação entre Rilke e Hokusai, como a empreendida por Daniela
Liguori, que lhe dedica um capítulo inteiro do seu livro Rilke e l’Oriente (Milão-Udine, Mimesis Edizioni, 2014), sustentam
que Rilke tanto pode ter lido o famoso livro de Goncourt como a monografia
sobre Hokusai escrita por Friedrich Perzyński e publicada em 1904 na mesma série
em que saíra o seu trabalho sobre Worpswede.
Sem
formação académica (a ruína dos negócios do seu pai impediu-o de prosseguir os
estudos), o livreiro e antiquário Friedrich Perzyński
(1877-1965) foi um dos primeiros divulgadores das xilogravuras japonesas na
Alemanha e Gustav Pauli, o director da Kunsthalle de Bremen, que conseguira
para Rilke a encomenda de uma monografia sobre Woprswede, solicitou-lhe em 1905
que comprasse obras (gravuras do ukiyo-e,
livros) para aquele museu. Autor de um livro sobre xilogravuras japonesas (Der
japanische Farbenholzschnitt: Seine Geschichte – Sein Einfluss, Berlim, 1903, com prefácio de Richard Muther)
e de outro sobre o criador de A
Grande Onda (Hokusai,
Bielefeld-Berlim, 1904, que pode ser lido aqui), Perzyński viajou até à China em 1912-1913, por conta
própria, provavelmente como comprador de antiguidades (entre os seus clientes
encontrar-se-iam Paul Cassirer, negociante de arte de Berlim, que Rilke também
conhecia e menciona nas Cartas sobre Cézanne,
e o escritor e bem-sucedido editor Alfred Walter Heymel, que adquiriu a
Perzyński diversas obras de arte japonesas, as quais pertencem actualmente ao
acervo do Überseemuseum de Bremen). Na China, Perzyński descobriu as estátuas
budistas de pedra das montanhas de Ichou que hoje se encontram no Metropolitan
Museum de Nova Iorque e no British Museum, em Londres. Durante a Grande Guerra,
trabalhou no Nachrichtenstelle für den Orient, um departamento de propaganda e
informações especializado no Oriente do Ministério dos Negócios Estrangeiros
alemão; mais tarde, integrou o Arbeitsrat für Kunst, juntamente com Walter
Gropius, Bruno Taut, Gerhard Marcks e Erich Heckel. No pós-guerra, publicaria a
suas impressões de viagens na China (Von Chinas Göttern – Reisen in China, Munique, 1920) e, em 1924,
apesar de não ter formação académica para tanto, foi autorizado a doutorar-se
pela Universidade de Hamburgo, com uma dissertação sobre máscaras japonesas nō
e kyōgen (Die Masken der japanischen Schaubühne – Nō und Kyōgen, Hamburgo, 1925, obra ainda hoje editada). Em 1929,
leiloou a sua colecção de arte oriental, sendo a venda seriamente prejudicada
pela crise económica então em curso. Tal venda deve ter-se devido a razões de
saúde, as quais ditariam que Perzyński passasse largas temporadas no Lago de
Garda, na Itália, no sul de França e em Maiorca. A sua firme oposição ao regime
nazi fá-lo exilar-se em Buenos Aires, em Março de 1942, onde morreu em 1965, de
cancro, sendo enterrado numa vala comum do cemitério de Chacarita.
Entre
aqueles com quem Friedrich Perzyński manteve mais extensa correspondência
contavam-se o diplomata e escritor pacifista Harry Clemens Ulrich Graf von
Kessler (1868-1937), o musicólogo inglês Edward Joseph Dent (1876-1957) e
Rainer Maria Rilke, pelo que é extremamente provável que, em alternativa ou em
conjunto com o livro de Goncourt sobre Hokusai, o autor de Cartas a um jovem poeta conhecesse a obra do mestre japonês também
através da monografia que Perzyński lhe dedicara, para mais saindo esta na
mesma colecção em que Rilke publica o seu ensaio sobre Worpswede.
Nesse
ensaio, e a propósito de uma reflexão sobre o significado da paisagem e do seu
carácter inapreensível, há uma fugaz referência de Rilke a Hokusai, aludindo o
poeta à «famosa gravura» da «aparição dos espectros» da autoria do mestre
japonês: «Tratando-se dos homens, lemos muita coisa nas suas mãos, e tudo no
seu rosto, onde, como num mostrador de relógio, são visíveis as horas que
sustentam e embalam a sua alma. A paisagem, porém, mostra-se sem mãos, e não
tem rosto – ou então é toda ela rosto, e a grandeza e a marca inabarcável dos
seus traços surge então de forma terrível e avassaladora sobre o homem, como
naquela “Aparição dos Espectros” no conhecido desenho do pintor japonês Hokusai»
(etwa wie jene «Geisterererscheinung» auf
dem bekannten Blatte des japanischen Maler Hokusai): cf. Rainer Maria
Rilke, Tutto gli scritti sull’arte e
sulla letteratura, organização, tradução, notas e estudo introdutório de
Elena Polledri, texto bilingue alemão-italiano, Milão, Bompiani, 2008, p. 427;
existe tradução portuguesa deste escrito de Rilke: cf. Rainer Maria Rilke, Viagem Singular a Worpswede, trad. de
João Barrento, Sintra, Feitoria dos Livros, 2016, p. 33, quanto ao trecho
transcrito.
Mais tarde, numa das Cartas sobre Cézanne, escrita em Paris a
19 de Outubro de 1907, e num trecho em que se mostra fascinado por Cézanne ter
memorizado o poema La Charogne, de Baudelaire,
e pela Légende de Saint Julien
l’Hospitalier, de Flaubert, Rilke mencionará
fugazmente o autor de A Grande Onda,
desta feita a propósito dos que alcançam a santidade, «a vida simples de um
amor que resistiu (…), que percorreu todas as coisas, sem ser acompanhado, sem
se fazer notar, sem proferir palavra». «O verdadeiro trabalho, a plenitude das
tarefas só começa uma vez superada esta prova [a prova do amor], e quem não
tenha podido chegar até aí sem dúvida poderá ver no céu a Virgem Maria, alguns
santos e pequenos profetas, o rei Saúl e Carlos o Temerário, mas quanto a
Hokusai e Leonardo, a Li Tai Pe e Villon, a Verhaeren, Rodin, Cézanne e até
mesmo a Deus, só os conhecerá de ouvir dizer» (cf. Cartas sobre Cézanne, ed. de Clara Rilke, epílogo e notas de
Heinrich Wiegand Pezet, trad. castelhana, Barcelona, Ediciones Paidós, 1985, pp.
52-53; cf. também Letters on Cézanne,
ed. de Clara Rilke, trad. inglesa, Londres, Vintage, 1991, p. 68).
Há quem sustente, a este propósito, que
o poema Der Berg, sendo uma evocação
indiscutível da obra de Hokusai, é também uma alusão velada a Mont Sainte-Victoire,
na Provença, cujo carácter «irrepresentável» confrontou incessantemente Paul
Cézanne, que lhe dedicará várias pinturas (cf. a recensão de Marcello Barison
ao livro de Daniela Liguori in Philosophy
East and West, vol. 66, nº 2, Abril de 2016, p. 653). Numa das Cartas sobre Cézanne – mais
precisamente, numa missiva de 9 de Outubro de 1907 –, Rilke, aliás, mencionará
o Mont Sainte-Victoire e o desafio que este colocava ao génio do pintor (ver aqui).
Paul Cézanne, Mont Sainte-Victoire, 1904-06
Princeton University Art Museum
|
Os textos sobre Worpswede, Rodin e
Cézanne constituem como que um «ciclo», encerrado o qual não mais Rainer Maria
Rilke voltaria a escrever crítica de arte.
Após
a publicação do segundo volume dos Novos
Poemas, em 1908, a sua correspondência continuará a conter diversas alusões
às artes plásticas, a criadores e a exposições, sendo aí patente o seu desprezo
pela arte moderna, de um modo geral, de que Picasso e Paul Klee eram excepções;
a obra do primeiro, aliás, servirá de inspiração à quinta das Elegias a Duíno («Quem são os ambulantes, diz-me, um pouco /
mais fugazes ainda do que nós»; sobre
este ponto, cf. Judith Ryan, ob. cit.,
em esp. pp. 186-191; K. A. J. Batterby, Rilke
and France. A study in poetic development, Oxford, Oxford University Press, 1966, p. 43).
Ainda
assim, Picasso e Klee não desempenharam, de modo algum, o papel de modelos da
poética de Rilke como o haviam sido Rodin ou Cézanne. «Por volta de 1908, as
artes visuais cessaram o seu papel de fonte de modelo estético para Rilke»,
assim termina o ensaio de Helen Bridge dedicado a este tema (ob. cit., p. 157).
Depois
disso, o encontro em Paris com a princesa Marie von Thurn und Taxis-Hohenlohe (1855-1934),
em 1909, que publicará em 1932 as memórias da sua convivência com o poeta; a
viagem, em 1901, ao norte de África e ao Egipto; a visita à Toledo de El Greco
e a Ronda, em 1912; a descoberta de uma alma gémea na pessoa da pianista Magda von Hattingberg (1883-1959); o horror da incorporação no exército, aos quarenta anos, no
decurso da Grande Guerra (sobre a viagem ao Egipto, tida por uma «experiência
mística» e em que o poeta manifestou total desinteresse pelo Egipto do seu
tempo, cf. Maria Helena Gonçalves da Silva, «Rilke no Egipto», in AA.VV., Rilke. 70 Anos Depois…, cit., pp.
271-283, em esp. p. 277; sobre a viagem a Espanha, cf. Jaime Ferreiro
Alemparte, España en Rilke, Madrid,
Ediciones Taurus, 1966, em esp. pp. 127ss, sobre Córdova e Sevilha, e pp.
134ss, sobre Ronda, cf. ainda Rainer Maria Rilke, En Ronda. Cartas y poemas, trad. castelhana, Valência, Pre-Textos,
2013).
No
pós-guerra, as Elegias de Duíno,
viagens pela Suíça, leituras de Proust. A doença, cujos primeiros sintomas se
manifestam em 1923, obrigam-no a frequentes internamentos no sanatório de
Valmont. Valéry, que o visitou na época, ficou impressionado pela solidão
profunda em que o poeta vivia, tendo recusado a generalidade dos tratamentos e
dos remédios que os médicos lhe prescreveram.
Rainer
Maria Rilke morreu de leucemia, a 29 de Dezembro de 1926.
Nota
– sobre Rilke em Portugal, cf. esta breve nota, ainda que incompleta e
desactualizada;
cf. também Arnaldo Saraiva, Para a
história da leitura de Rilke em Portugal e no Brasil, Porto, Árvore, 1984;
Maria António Ferreira Hörster, Para uma
História da Recepção de Rilke em Portugal (1920-1960), Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2002; cf. ainda Maria Teresa Furtado (org.), Rilke. 70 Anos Depois, Colóquio
Interdisciplinar, Lisboa, Edições Colibri, 1997. É também interessante o
artigo de Albin Beau saído em separata do Boletim
Alemão e intitulado Rainer Maria
Rilke e As Cartas de Sóror Mariana, Coimbra, Instituto Alemão, 1935, 24pp.
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