A fotografia não
nos indica quem é o homem, porque arde, onde está; precisamos, como
observadores, que acrescentem toda a informação contextual, que nos digam que
se trata de José Víctor Salazar Balza, de 28 anos,
“ardendo por entre recontros violentos com a polícia de choque durante um
protesto contra o presidente
Nicolás
Maduro, em Caracas,
Venezuela. Salazar incendiou-se quando o tanque de
combustível de uma motorizada explodiu. Ele sobreviveu ao incidente com
queimaduras de primeiro e segundo graus.” A fotografia é de Ronald Schemidt, da Agência France
Presse, baseado no México, que a intitulou “Crise na Venezuela”.
Embora a Venezuela não esteja em
guerra, nem mesmo em guerra civil, esta é uma fotografia de guerra. É, formalmente, bastante
simples — meio caminho andado para a sua qualidade geral. As cores dominantes
são o amarelo das chamas e o vermelho delas e da luz que projectam, nomeadamente
sobre uma parede de tijolos vermelhos e umas portinholas que, se não são
encarnadas, encarnadas ficam com a luz do fogo. As chamas prolongam-se, formam
um rasto e, ao fundo, há também chamas para lá dum gradeamento.
O
homem, que a máscara torna anónimo, corre da esquerda para a
direita, do passado para o futuro. Corre para longe do mal, do fogo. Corre na
mesma direcção da pistola pintada na parede de tijolos. Essa pistola aponta o
futuro, negro como o passado no canto oposto. É uma pequena pintura mural
irónica: a pistola dispara a palavra “paz”. O homem também esteve no meio da
violência e foge agora da violência em busca de paz. A mão direita do homem
mimetiza a posição e a orientação da pistola. É uma mão que pensaríamos fazer
um gesto delicado se não percebêssemos que é um gesto de medo e dor. Para onde
a pistola vai, vai a mão do homem. Entre aquele passado e aquele futuro, no
presente passa um homem que arde. A imagem faz recordar as fotografias de
monges asiáticos imolando-se como forma de protesto, pesadelos visuais que nos
perseguem há mais de meio século. Numa ou noutra, os suicidas ficam quietos no
seu sacrifício, mas em 2012 um homem que se imolou teve o mesmo gesto do
venezuelano: correr, fugir do fogo que se cola às roupas, que em breve
capturará a pele, o corpo. Fugir do próprio corpo. (Fig.2)
Ao
contrário
dos monges asiáticos, o venezuelano não se imolou. Pela fotografia, não o
sabemos, mas adivinha-se. O movimento do corpo de José Salazar acompanha a
diagonal entre o canto inferior esquerdo e o canto superior direito; o braço
visível acompanha o sentido da diagonal inversa. Esse posicionamento dá
equilíbrio à imagem. Verticalmente, as duas metades contrastam claramente, o
que dá uma nitidez de significado à imagem: de um lado as chamas, do outro a
parede vermelha.
Apesar
do horror da situação, é o
elemento estético
o que motiva a escolha como foto do ano. A presidente do júri, Magdalena
Herrera, disse que “é uma foto clássica, mas tem uma energia e dinâmica
instantâneas. As cores, o movimento, e está muito bem composta, tem força.”
Imagem clássica: no centro de “Escapan entre las llamas”, um dos Desastres da
Guerra, de Goya (cerca de 1810-14), também um homem corre com as chamas atrás,
na mesma posição de José Salazar, ambos irreconhecíveis, ambos em locais não
identificáveis. (Fig.3)
Whitney C. Johnson, outro membro do júri,
disse que a fotografia é “muito simbólica”, pela presença da máscara na cara do
homem. “Ele acaba por representar não apenas ele mesmo e ele mesmo ardendo, mas
como que esta ideia da Venezuela ardendo”. Eman Mohammed, um terceiro membro do
júri, igualmente sublinhou o simbolismo da fotografia: “ela dá-nos aquele sentido
de mais poder para o povo. Para os que se pronunciam.”
Compreende-se que os jurados tenham
justificado o prémio acentuando o valor simbólico da
imagem; tem sido habitual as fotografias premiadas apresentarem mais contexto
da situação retratada do que esta.
Mostrar os referentes e simbolizá-los,
atribuir-lhes significado(s), é uma característica bastante associada ao
foto-jornalismo; todavia, tem sido mais frequente que a imagem singularize um
detalhe da realidade, conseguindo, ao mesmo tempo, mostrar uma parte mais ampla
dessa realidade. Isto é, ao observá-la sabemos ou intuímos o onde e o quando do
evento. Nesta foto, há apenas o horror de um homem que arde, sem que se possa
contextualizar. A imagem é de tal forma reveladora do horror que o júri optou
por escolhê-la. Todavia, é uma fotografia que necessita, mais do que outras, da
âncora do texto verbal: quem é o homem, onde está, quando foi isto, o que
aconteceu e, até, o que lhe aconteceu. Ela não responde a nenhuma das perguntas
a que o jornalismo deve responder e, por extensão, o fotojornalismo: quem,
quando, onde, o quê e porquê. O observador fica de tal forma longe da realidade
ampla em que o evento mostrado se enquadra que a fotografia não chega a
tornar-se “exemplar”, ou parte do todo, sem a ajuda da muleta verbal.
A fotografia de Ronaldo Schemidt é magnífica, mas precisa de ser demasiado explicada. Ela
poderá revelar uma tendência do foto-jornalismo semelhante à do jornalismo
escrito: menos referencial, mais “opinativo”. Para quê transmitir factos — que
se assume, erradamente, que já “todos” conhecem e que se assume, erradamente,
que não é preciso referi-los— quando basta transmitir linguagem simbólica e
opinada sobre esses factos? Nesta fotografia, por ser fotografia, a opinião
está escondida no simbolismo. A imagem impõe que se interprete apenas a carga
simbólica e através dela, porque não há suficientes referentes à vista. O
próprio título é “geral” — “A Crise na Venezuela”, demasiado abstracto para uma
fotografia de jornalismo, de reportagem, que “tem de narrar um evento”, como
refere o regulamento do prémio.
Na contemporaneidade, a comunicação,
escrita e visual, está de tal modo carregada de tropos, de símbolos, que acaba
por prescindir-se do referencial, do que liga as mensagens ao mundo real. Esta
fotografia poderosa não perde nada da sua qualidade icónica, mas a sua escolha
como foto do ano alimenta a inquietação sobre caminhos do jornalismo e do
foto-jornalismo no nosso tempo.
Eduardo
Cintra Torres
Caxias,
20 de Abril de 2018
Estamos a perder os limites de tudo...
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