Silverview é
o grande adeus de John le Carré, Publicações D. Quixote, 2021. Conforme nos
elucida o seu filho mais novo, o escritor Nick Cornwell, John le Carré, o
gigante da literatura britânica injustamente conotado com sagas de espiões e
traições, quando na verdade foi um genial cronista do nosso tempo onde primam
guerra regionais, terrorismo islâmico, a engenharia fraudulenta das Bolsas,
manteve no limbo um romance soberbo, enigmaticamente guardado nas gavetas da
secretária, e atreve-se a dar a sua interpretação para o facto: “Silverview
mostra um serviço fragmentado, repleto das suas próprias fações políticas, nem
sempre muito eficaz e, em última instância, já não seguro de poder
justificar-se a si mesmo. Em Silverview, os espiões da Grã-Bretanha
perderam, como tantos nós, a certeza quanto ao significado do país e de quem
somos para nós mesmos. Creio que, conscientemente ou não, relutava em
transmitir estas verdades à – da – instituição que lhe ofereceu uma casa quando
ele era um cão perdido sem coleira, em meados do século XX. Penso que escreveu
um livro excelente, mas, quando olhou para ele, percebeu que se aproximava
desconfortavelmente da verdade e que, quanto mais trabalhava nele, quanto mais
o burilava, mais claro isso tornava”.
Não será por mera
casualidade que é a sua obra a mais singela, menos movimentada, dando voz a
seres humanos que se movem por profundos afetos. Temos um antigo corretor da
Bolsa que se fartou das manigâncias da City e decidiu transferir-se para uma
pequena vila costeira inglesa e criar de raiz uma livraria. Assoberbado por
problemas para pôr de pé o negócio, tudo pintado de fresco, mas com falta de
luz, água e com a cave cheia de humidade, recebe uma visita que inicia um
quadro de peripécias em que ele vai ser envolvido sem entender patavina.
O que falta na
mobilidade geográfica ganha na elasticidade de um processo intrigante em que os
Serviços Secretos Britânicos, na pessoa de Proctor, recebem a denúncia de que
no seio da organização move-se o mais improvável dos espiões, a máquina põe-se
em movimento, vão ser inquiridas pessoas que nas últimas décadas acompanharam
aquele agente que parecia ter vivido todos os riscos numa extrema lealdade. E
entramos na vida de uma pequena vila onde um imigrante polaco dá sugestões
avisadas para que aquela livraria seja um expoente cultural dinâmico, uma
verdadeira república da literatura onde não faltem os clássicos obrigatórios e
se debatam as grandes obras do nosso tempo. O livreiro, de nome Julian
Lawndsley, sente-se arrastado nessa aventura por um homem desconhecido. A
arquitetura literária é hipnotizante, correm em paralelo a saga da livraria,
aquele pequeno mundo da pequena vila e as diligências de Proctor, a denúncia da
traição veio de pessoa irrefutável.
Silverview é o nome de
uma casa, ali vive um casal de espiões, ela está em fim de vida, é conhecedora
da realidade. As diligências de Proctor levam-nos à Rússia pós-soviética, à
Al-Qaeda, ao eterno conflito israelo-palestiniano, à guerra da Bósnia, local
onde a existência do alegado traidor deu uma guinada afetiva.
Haverá mesmo um dia em
que Julian Lawndsley aceita um pedido do seu amigo imigrante polaco para ir
entregar uma missiva a Londres, aparentemente tudo banal, ele não se apercebe
de diferentes códigos secretos que envolvem tal viagem. É nessa circunstância
que Deborah Avon, a dona de Silverview, o convida para ir àquela casa onde
também, dado o estado de saúde de Deborah, vive a filha de nome Lily e o seu
rebento, de nome Sam. Os interrogatórios de Proctor são infatigáveis, o passado
do alegado traidor é mirado e remirado, surge o nome de Ania, uma polaca por
quem este se apaixona, e vêm à baila os massacres bósnios, como eles foram marcantes
na vida do agente britânico. Aproxima-se a hora de ir interrogar o traidor,
prepara-se a operação, que se revela defeituosa, um verdadeiro espião
antecipa-se, sabe criar um cenário de dissimulação e escapa por uma nesga de
oportunidade.
Insista-se nestes dois
tópicos: a singeleza da escrita e a sua centralidade no que as pessoas dizem, e
como as emoções se escancaram; e a simbólica de um desnorte de um país que se
projeta nos serviços secretos reféns num bunker da democracia e da
compartimentação das atividades. Morre Deborah Avon, nasce uma relação de
confiança entre Julian e Lily, a operação que se pretende ultrassecreta para
apanhar o triador com a boca na botija é toda ela delineada.
Jamais saberemos a
escala da traição, nem a natureza da causa em que incorre o alegado traidor.
Dá-se a fuga estrondosa, só remotamente se percebe que houve para ali um carro
que apareceu sabe Deus de onde, Lily revela a Julian que ninguém irá encontrar
aquele homem singular, por portas e travessas ele irá viver agora a sua causa,
liberto de dissimulações e das falsas convicções que manteve ao longo de
décadas, com tal discrição que só muito tarde a mulher descobriu a natureza da
traição.
E voltemos a uma outra
observação do filho mais novo de John le Carré, a quem fora dada a incumbência
de ver se o romance precisava de remate ou de outra revisão, ele leu a escrita
do pai e descobriu que era excelente. “Havia os habituais lapsos da fase do
manuscrito – palavras repetidas, deslizes técnicos, um muito ocasional parágrafo
menos claro. Mas, para um documento que ainda não se encontrava em provas,
estava mais do que habitualmente burilado e, era uma espécie de reflexão
perfeita do seu trabalho anterior – um cântico de experiência – e, ainda assim,
uma narrativa inteiramente original, com a sua própria força emocional e as
suas próprias questões. A versão que o leitor tem em mãos resultou de um
processo editorial mais parecido com uma passagem clandestina de informações.
Para todos os efeitos, é John le Carré genuíno”.
Uma última palavra sobre
a atmosfera que se vive naquela ponto da East Anglia, completamente extensível
ao país: dentro daquele dilúvio da chuva, naqueles estabelecimentos com
empregos da treta, sente-se a nostalgia de um país de que se guarda a memória
que foi uma grande potência e que hoje não sabe definida a identidade nem o seu
papel no tablado internacional… E esse código de desvario é talentosamente
mostrado nos Serviços Secretos, que de uma forma imprevista descobrem que
aquele casal de espiões não era o que parecia ser.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
ResponderEliminarPela resenha é mesmo de leitura obrigatória
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Uma semana feliz … Beijo e/ou abraço
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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