segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Galiza, terra da nossa fala e do nosso berço pátrio.

 



 

O mínimo que se pode dizer desta obra Galiza, Terra Irmã de Portugal, por Ramón Villares, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022, é que é obra mestra de pedagogia para entender os vínculos profundos que ligam Portugal à Galiza. Dali irrompeu a nossa língua, fizemos conjuntamos parte da Galécia romana, que tinha sede em Braga; e sempre que atravessamos o Minho somos surpreendidos pela continuidade da paisagem, pelo calor do acolhimento e por não precisarmos de mudar de idioma. Como observou Filomena Mónica, “Entra-se na Galiza sem dar por isso.” É este o assombro de ter um vizinho-irmão de quem mal se conhece a História e este valiosíssimo estudo revela-se um fecundo contributo, até porque, por decisão do autor, o ensaio foi escrito em diálogo com a história portuguesa e com as suas principais linhas de força.

Ainda mais observa o autor que os galegos fazem parte permanente da história portuguesa, contribuíram para criar “a escadaria dos socalcos do Douro”, que Orlando Ribeiro considerou “a mais vasta e imponente obra humana do território português”. Isto para já não falar a convivência amigável que se estabeleceu no Brasil e na América do Sul entre estes emigrantes altamente adaptativos. Ramón Villares propõe uma viagem diacrónica. Primeiro, mostra-nos a terra dos galegos, releva a diversidade interna, o granito e a sua paisagem com formas onduladas e suaves, o clima oceânico, os contrastes climáticos muito marcados; povoamento em aldeias concentradas ou em casarios dispersos, à semelhança do Norte de Portugal, pátria do minifúndio, as estruturas agrárias tiveram sempre um peso determinante no ordenamento do território. Uma Galiza que veio da Galécia, que tinha poucas cidades, preponderava Compostela, Ourense e Tui e certos burgos costeiros, só mais tarde se impuseram Vigo e Corunha.

Segundo, o longo termo da duração do país galego; recua-se até à província da Galécia, criada no século III d.C., na época do imperador Diocleciano, mas antes desta presença romana aqui houve culturas megalíticas e castrejas. A romanização foi determinante, garantiu a aculturação, fundindo as tradições indígenas e a influência cultural do império de Roma. E há que não esquecer o reino suevo no tempo dos povos germânicos que invadiram a Península Ibérica, que permaneceu independente até ser conquistado pelos visigodos. O nome do cristianismo se impôs: Martinho de Braga, bispo de Dume, a figura cristã por excelência. E a partir do século IX desencadeou-se um processo de feudalização. Emerge um novo reino cristão liderado por D. Afonso Henriques, criador da dinastia borgonhesa – assim se deu a divisão da antiga província romana e sueva da Galécia. E o autor reflete sobre uma pátria dividida, a Galiza tem as suas fronteiras desde o século XII, fronteiras estáveis, haverá pontualmente ao longo da História conflitos galaico-portugueses, caso das guerras da independência entre 1640 e 1668.

O condado portucalense, no início, não parece constituir uma rutura à vista, eram reinos cristãos, Raimundo e Henrique estavam casados com duas filhas do rei Afonso VI de Leão, mas D. Afonso Henriques transformou o condado em reino, não nasceu nenhuma oposição forte nas duas margens do rio Minho. Os historiadores sempre ruminaram quanto ao destino muito diferente para as “duas Galizas”. As populações não se separaram radicalmente. “Durante vários séculos a fronteira política entre Galiza e Portugal era tão ténue que permitiu uma grande permeabilidade social e institucional em ambos os lados do rio Minho ou através da raia seca, nascia a boa vizinhança entre as populações arraianas. É facto que o reino da Galiza ficou bloqueado na sua expansão para sul e numa posição excêntrica face a Leão e Castela – a Galiza passou a ser uma terra de término, sem a possibilidade de dispor de uma fronteira. Mas ganhou um peso na cultura e na espiritualidade representada pelo túmulo do apóstolo Santiago. A língua portuguesa nasceu na Galiza, aparece o romance galaico-português, a poesia trovadoresca, a terra de Santiago torna-se no itinerário fundamental da Europa cristã.”

Terceiro, Santiago significa Caminho, peregrinação, impõem-se vários caminhos, partem de Santiago inúmeros teólogos e professores, para estudarem e darem aulas em Bolonha, em Paris ou em Salamanca, estamos assumidamente numa finisterra europeia. “A figura do apóstolo foi capaz de resistir à divisão da terra dos Galegos, mas também de se tornar o campeão das aventuras bélicas e conquistadoras dos reinos cristãos de Portugal e de Castela, os quais, séculos mais tarde, passariam a ser a cabeça de dois impérios ultramarinos. Como observa o autor, a evolução histórica da Galiza medieval ficou claramente marcada pela sua posição política excêntrica no contexto das monarquias de Leão e Castela e pela hegemonia política da nobreza eclesiástica sobre a laica”. É um extraordinário sorvedouro de informações que não dispomos, de um modo geral, desta gente da nossa fala.

Quarto, chegamos à Galiza moderna, o renascimento nacionalista emergiu claramente em atmosfera propícia, o mesmo se estava a passar na Catalunha. Houve grandes mudanças no mundo rural, a conversão maciça dos camponeses em pequenos proprietários, deu-se a emigração, chegou-se a Portugal ou atravessou-se o oceano nestes tempos de ressurgimento cultural e político, e o autor dá-nos o panorama destes fenómenos do orgulho da língua, da busca de origens heroicas, como o celtismo, a obsessão em europeizar a Galiza. É neste contexto que Portugal aparece como referência, a aproximação entre os dois povos é registada por um vasto número de intelectuais, no final do século XIX ao século XX a Galiza entrou na tendência política cultura iberística.

Quinto, o nacionalismo galego é travado pelo franquismo, será necessário esperar pela Constituição de 1978 para nascer o governo da Comunidade Autónoma, em 1983, pela lei de normalização linguística, deu-se a transição de uma língua popular para um idioma culto e com presença instrucional no sistema educativo e na administração pública, criou-se espaço para que entre as velhas fronteiras se espraiasse a irmandade e a cooperação. O autor recorda que no século passado havia uma tendência para uma aliança ou fusão entre Portugal e Galiza como expressão de uma nacionalidade atlântica, de base linguística e espírito saudosista, por oposição à nacionalidade castelhana central e à nacionalidade mediterrânica oriental (catalã). “Apesar destas tentativas, nem o lusitanismo galego conseguiu avançar para um projeto político de reintegração com Portugal, nem tomou forma um irredentismo português sobre a Galiza, semelhante ao que foi tão comum na Europa de entre guerras”. E dá-nos conta do fortalecimento gradual para a desfronteirização. Há um longo caminho a percorrer, mas os primeiros passos já foram dados e a nossa fala é um verdadeiro cimento de confiança, não falta a atração mútua por berço pátrio.

Um belíssimo ensaio.



                                                                                                       Mário Beja Santos




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