quinta-feira, 30 de março de 2023

Aqueles anos de terror e horror em que o comunismo preparou a sua implosão.



 



 

Anne Applebaum faz parte de um núcleo muito restrito de investigadores de primeiríssima água que se debruçam desde o Pós-Guerra na Europa de Leste até à análise sistemática das tendências antidemocráticas que varrem atualmente o continente europeu – é uma historiadora especializada na história do comunismo e na Europa pós-comunista, sem alinhamentos e de um rigor indiscutível. A Cortina de Ferro, A Destruição da Europa de Leste 1944-1956, por Anne Applebaum, Bertrand Editora, 2023, é um documento impressionante, possui o rigor que é timbre da melhor historiografia, abala-nos a consciência pelos alicerces, em mais de 600 páginas iremos acompanhar migrações dramáticas no continente europeu, a asfixia das sociedades civis na Europa de Leste, entre a RDA e a Bulgária, acompanhar a execução do planeamento soviético para destruir qualquer veleidade ao retorno a democracias parlamentares, à execução dos opositores ao projeto totalitário, uma longa viagem que nos levará às convulsões em Berlim em 1953 e à revolução de Budapeste em 1956.

Estaline experimentou este projeto logo em 1939, depois de a Alemanha de Hitler e a URSS terem assinado o pacto germano-soviético, em que se acordou a divisão da Polónia, Roménia, Finlândia e Estados Bálticos. Logo o leste da Polónia, o leste da Finlândia, as nações bálticas, Bucóvina e Bessarábia (Moldova), foram incorporadas na União Soviética. Os territórios orientais da Polónia ainda hoje fazem parte da Ucrânia e da Bielorrússia. Quando a Alemanha de Hitler baqueou e chegou o Exército Vermelho, este fazia-se acompanhar de oficiais do NKVD, desde 1939 que já havia experiência em deportações em massa para os Gulag, havia que ensinar a sovietizar as populações locais.

O que se conta em primeiro lugar é o cataclismo que a guerra provocou, com a sua violência étnica, a chegada e o comportamento dos vencedores, as expulsões de populações, dá-se um quadro claro do que era a representatividade comunista nestes países, de um modo geral diminuta, no fim da guerra verdadeiramente prestigiado só havia Tito, fora o único movimento comunista que dera luta sem tréguas ao invasor alemão; vamos, igualmente, ficar a saber as mudanças que se operaram nas polícias políticas nos países submetidos à URSS e como o NKVD as instruía, como de forma programada se liquidou o Exército Nacional polaco, o símbolo da resistência da Polónia ao nazismo.

Anne Applebaum centrou o seu trabalho nos acontecimentos polacos, húngaros e checoslovacos, será nestes territórios que iremos acompanhar a sua narrativa sobre o que aconteceu em limpeza étnica, como se moldou a nova juventude aos ideais soviéticos, como se destruiu a liberdade de opinião e se procurou reduzir a oposição política a pó. Insista-se nesta observação da autora: “o Exército Vermelho levara agentes da polícia secreta treinados em Moscovo para todos os países ocupados, tinha posto comunistas locais no comando das estações de rádio nacionais e começado a desmantelar as associações juvenis e outras organizações cívicas. Prenderam, assassinaram e deportaram as pessoas que julgavam antissoviéticas e executaram uma brutal operação de limpeza étnica.” A resposta dos aliados ocidentais veio tardia e revelou-se incapaz de remover a chamada Cortina de Ferro, mesmo com o Plano Marshall, a operação de salvar Berlim e o desencadear da Guerra Fria, o comunismo soviético implantara-se. O descontentamento virá depois, logo na economia, revelou-se incapaz de competir com o fulgor da explosão que se deu no Ocidente, a começar pela Alemanha. A autora dá-nos conta dos conflitos em torno da chamada reforma agrária, como a nacionalização da distribuição e do retalho convidou ao mercado negro, como os planos quinquenais, a despeito de inequívocas melhorias, foram insuscetíveis de agradar às populações.

Veremos passados em revista os chamados inimigos e os chamados reacionários, os conflitos com as igrejas, e assim iremos chegar aos inimigos internos e a autora lembra-nos uma observação de um carrasco soviético, Lavrentii Beria: “Uma pessoa que é espancada fará o género de confissão que os agentes do interrogatório quiserem, admitirá que é um espião inglês ou americano ou seja o que for que nós quisermos. Mas nunca será possível saber a verdade desta maneira.” Moscovo irá decidir ao longos dos anos quem deve dirigir cada um dos países, o destino de cada um destes líderes é passado em revista, dá-se especial atenção à tragédia de Gomulka, o dirigente polaco umas vezes incensado outras vezes acusado de desviacionismo de direita, a eterna questão dos judeus infiltrados na direção comunista; o estalinismo ir-se-á progressivamente refinando à medida que estes países conquistados da Europa de Leste não dão uma imagem satisfatória do homem novo ou o homem soviético, tudo se tentou no ensino para mudar os programas e pôr as crianças desde os bancos da escola a conhecer as delícias de uma próxima sociedade sem classes dirigida pela vanguarda proletária, todas as classes de pensamento foram abaladas, como observa a autora: “A partir de 1948, as autoridades da Alemanha de Leste, bem como as da Hungria e as da Checoslováquia, lançaram um ataque mais sistemático contra as faculdades de filosofia, história, sociologia e direito, que foram todas elas transformadas em veículos de transmissão de ideologia, como eram na União Soviética. A história tornou-se história marxista, a filosofia, filosofia marxista, o direito tornou-se direito marxista e a sociologia com frequência desapareceu de todo.” Os académicos foram fugindo, não só das ciências sociais e humanas, mas também os físicos, matemáticos e técnicos; os comunistas sonhavam com a proletarização do corpo estudantil, seria a base da nova intelligentsia socialista, o processo deu os seus fiascos, os estudantes tinham colapsos nervosos, atenda-se que na esmagadora maioria homens novos da classe operária sem instrução secundária não conseguiam acabar os cursos por não terem suficiente capacidade para tomar notas nas aulas.

O leitor que se prepare para este livro de uma importância excecional, que nos permite conhecer como foi montado o mito do realismo socialista, o planeamento de cidades ideais, quem eram os opositores passivos nos diferentes países de Leste e como, depois de 6 de março de 1953, anunciada a morte de Estaline, e com as novas mudanças na hierarquia soviética, o indizível aconteceu, primeiro em Berlim, depois em Budapeste, e a historiadora comenta: “Mesmo quando parecem enfeitiçados pelo culto do chefe ou do partido, as aparências podem ser enganadoras. E mesmo quando parece que estão totalmente de acordo com a mais absurda propaganda, o feitiço pode repentinamente, inesperadamente, dramaticamente, ser quebrado.”

Foi um regime que durou mais de 30 anos nessa Europa de Leste, regularmente os seus próceres interrogavam-se porque é que a propaganda não resultava, porque é que o terror era insuficiente, quais as mudanças nacionais que a URSS aprovaria. Em Moscovo, o dogmatismo impediu ver a aceleração do mundo, Gorbachov tentou remediar o irremediável, perante um mundo atónito caiu o Muro de Berlim e a Europa de Leste cedo começou a apagar as marcas da utopia comunista. Escusado é dizer que ainda há sequelas à vista.

De leitura obrigatória.


                                                                                                            Mário Beja Santos

segunda-feira, 27 de março de 2023

“O Problema da Habitação”

 


 

Um qualquer estudante de Arquitectura que decida, talvez inspirado por José Saramago, fazer uma “viagem a Portugal”, identificará rapidamente, nos vários concelhos por onde for passando, no interior ou no litoral, no norte ou no sul, uma extensíssima série de conjuntos desenhados por arquitectos famosos ou até famosíssimos – bairros, empreendimentos, blocos, urbanizações, o nome não é importante –, levantados do chão, para mantermos a referência literária, a partir do impulso dado pelos vários poderes públicos nos últimos 100 anos. No entanto, se abrir os jornais para acompanhar o longo e polémico debate sobre a habitação nacional, tropeçará, a cada página, no omnipresente 2%, o número repetido à exaustão, normalmente para que nos sintamos envergonhados em relação ao resto da Europa, relativo à percentagem de habitação pública no país. Entre a observação empírica e as estatísticas publicadas, o que é que justifica, afinal, tamanha discrepância?    

 

 


“Nalgumas ruas das avenidas novas têm‑se construído e estão ainda em construção grandes prédios (…). A renda, porém (…), ultrapassa de tal modo as possibilidades de cada um de nós, que tem dado lugar às mais variadas discussões e mais ásperos protestos (…)! É claro que não são alojamentos desta categoria que fazem falta neste momento.”

 

A frase com que se inicia este texto, e que poderia ter sido retirada de um qualquer jornal português da última semana, mês ou ano, foi, na realidade, publicada em 1945 na revista A Arquitectura Portuguesa. O seu autor, Alberto A.C., dando mostras da inquietação que o assolava, deu ao seu artigo o título de Um problema, a palavra que, ontem, hoje, e muito provavelmente amanhã, mais vezes vemos associada à questão da habitação, mesmo sem contar com o famoso livro do poeta Ruy Belo, o qual, apesar de incluir o verso “uma casa é a coisa mais séria da vida”, é de outro campeonato, mais próximo do metafísico do que da materialidade da argamassa e da alvenaria.

Nesse ano de 1945, naturalmente sublinhado em todos os manuais de História de todos os países do planeta como aquele em que chega ao fim a II Guerra Mundial, ocorreu, em Portugal, o arranque de uma nova política pública de habitação, desta vez, ao contrário do que acontecera nos primeiros programas habitacionais do Estado Novo, focada no arrendamento e não no conceito que tinha animado o início da ditadura: o “cidadão-proprietário”, enraizado na sua pequena, modesta, mas higiénica moradia independente e unifamiliar, e devidamente disciplinado pelo braço forte do Estado. 

Através do pagamento mensal de amortizações, pretendia-se então, nessa época constitucionalmente fundadora de 1933, que o morador, num prazo aproximado de duas décadas, atingisse a posse plena da casa que lhe tinha sido destinada pelo poder vigente. O Programa de Casas Económicas, assim foi baptizado, talvez pelo próprio Salazar ou pelos seus muito próximos Duarte Pacheco (responsável pela construção dos imóveis) e Pedro Teotónio Pereira (responsável pela sempre disputada distribuição das chaves), dirigia os seus maiores esforços não para as classes mais desfavorecidas da população, abrangidas por outras iniciativas (Programa de Casas Desmontáveis, por exemplo), mas principalmente para aqueles que constituíam ou poderiam vir a constituir a base social de apoio do regime: chefes de família, com emprego estável no sector público ou privado, e sobre os quais não recaíssem quaisquer suspeitas de mau comportamento político e moral.

Devidamente “emparedados” entre os critérios de admissão (explicitamente atestados pelos sindicatos nacionais ou pelos respectivos chefes quando se tratava de funcionários do Estado) e a disciplina paternalista assegurada pelo fiscal do bairro (responsável, entre outras actividades, pela organização de um ficheiro actualizado sobre cada morador), os beneficiários deste programa sentiam-se, contudo, privilegiados. A “casa portuguesa”, onde viviam e da qual, caso mantivessem perenemente um comportamento decente e adequado, seriam proprietários num futuro relativamente visível, era, afinal de contas, aos olhos da propaganda oficial, um oásis de vida saudável na periferia, sem comparação possível com a confusão sobrelotada e promíscua dos centros urbanos.              

 

“e são tão económicas as nossas ambições / que não vão muito além das mil evoluções das moscas” (Ruy Belo)

 

Mesmo descontado a propaganda, e tentando, claro, ignorar o tenebroso ficheiro do fiscal, parece verdade que o conceito, qual sapatinho no pé da Cinderela, se ajustava perfeitamente aos gostos e preferências do proverbial “português médio”, eventualmente o mesmo que, nos anos 50, catapultou a canção Uma Casa Portuguesa a um tal grau de sucesso que a própria Amália Rodrigues dela se cansou, chegando mesmo, em alguns concertos, a fazer ouvidos de mercador aos pedidos que muitas vezes lhe gritavam da platéia para que a cantasse.

As quatro paredes caiadas, o cheirinho a alecrim, as uvas douradas e as rosas no jardim, entre outras características – o São José de azulejo, o sol a bater na janela – que garantiam o conforto pobrezinho de um lar, se bem que celebrizadas musicalmente pelos versos que Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira escreveram num hotel de Moçambique, tinham uma existência real nos Bairros de Casas Económicas inaugurados a partir da década de 30 nas então pouco ocupadas cercanias das cidades portuguesas, além de partirem de uma teorização largamente desenvolvida, não só pelo poder político pós-I República, mas também por importantes arquitectos, dos quais se destaca o fascinante e multifacetado Raul Lino.   

Figura ainda hoje polémica, alvo de interpretações não consensuais, dele se pode dizer, tentando não extremar a caracterização, que tendia para o nacionalismo, para o romantismo, para o anti-modernismo. Pouco dado ao fascínio da máquina e da velocidade e eficiência por ela proporcionadas, defensor da manufactura artesanal e do tempo lento, refugiava-se nostalgicamente na História e nas tradições do país, procurando a tal alma e essência da “casa portuguesa”, que imaginava meridional e solar, influenciada pelo mediterrâneo na sua dupla vertente romana e árabe.   

Os títulos dos livros que publicou – A Nossa Casa: apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples (1918); A Casa Portuguesa (1929); Casas Portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples (1933) – quase dispensam explicações adicionais sobre a importância deste arquitecto para o Programa de Casas Económicas, muito embora pouca relação houvesse, pela escala e pelos orçamentos, entre os seus projectos particulares (Casa do Cipreste em Sintra, por exemplo) e aqueles que fez para habitação pública. Havia, porém, em ambos os casos, uma ideia de ninho protegido do exterior que batia certo com a ideia transmitida por Salazar num importante discurso radiodifundido em 1933: “a intimidade da vida familiar reclama aconchego, pede isolamento, numa palavra, exige a casa, a casa independente, a casa própria, a nossa casa. Eis porque nos não interessam as colossais construções para habitação operária, com seus restaurantes anexos e sua mesa comum. Para o nosso feitio independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada, nós desejamos antes a casa pequena.”

 



Bairro de Casas Económicas das Condominhas, Porto, Arq. Raul Lino e Joaquim Madureira, 1934


Assim eram, pois, os bairros de Raul Lino e respe ctivos discípulos, como o Novo de Belém, o dos Telheiros da Ajuda, o Duarte Pacheco em Braga, o das Condominhas, o do Ilhéu, com as suas casinhas, jardinzinhos, quintaizinhos, janelinhas, patiozinhos, beiraizinhos, hortazinhas, alpendrezinhos e, claro, alguns São Josés de azulejinhos, como na canção popularizada por Amália. Todos esses “inhos” físicos e palpáveis haveriam de contribuir, esperava-se, para o espírito da “casa portuguesa”, tão presente nos versos cantados pela fadista como nos muito anteriores textos do arquitecto Raul Lino, que o fazia depender, até mais do que dos materiais, do “sabor português” e de um “certo ar amoroso de doçura”. Paradoxalmente, todavia, os projectos conciliavam o conservadorismo com alguns aspectos da modernidade, nomeadamente no que se refere à dimensão e simplificação das habitações, tema que alimentava noutros países o estudo racionalista do Existenzminimum, ou seja, a definição do espaço mínimo onde um ser humano poderia viver eficientemente, seja lá isso o que for.

Por outro lado, dois dos pontos fulcrais deste Programa – o “cidadão-proprietário” em vez do “cidadão-inquilino do Estado” e a moradia unifamiliar em vez da habitação colectiva – revelavam tolerância zero a eventuais instintos “modernizadores”, fazendo prevalecer as opiniões mais tradicionalistas - a aldeia reproduzida na cidade - e o fomento da propriedade privada, pedra basilar da muito bem-vista “herança de família”. Tratava-se, em certa medida, de marcar a diferença em relação à forma como a Primeira República tinha encarado a política pública de habitação, embora mais tarde, em 1945, como foi referido logo no início deste texto, também o Estado Novo aderisse, pragmaticamente mas sempre com reservas, ao arrendamento público a aos blocos de habitação colectiva, ponto que se retomará mais à frente.

Já o período 1910-1926, que deve ser analisado mais pelas intenções do que pela obra, uma vez que a balbúrdia instalada não permitiu que se fizesse muita, fica marcado pelo nascimento das primeiras leis sobre a intervenção do Estado na habitação, uma consequência não só da multiplicação de “ilhas” portuenses e de “pátios” lisboetas insalubres, sobrelotados e miseráveis, como também de uma crise de desemprego na construção civil, duas desgraças que, ao ocorrerem em simultâneo, provocavam nas elites o terror de uma revolução temperada com pitadas de peste e de tuberculose.

 

“Ilha” portuense numa época em que Portugal não sofria de problemas relacionados com a taxa de natalidade

 

Os Bairros Operários ou Sociais da República, alguns só projectados, outros parcialmente construídos, mostravam naturalmente menos receio de um certo colectivismo do que aquele que atingiria o pensamento dos primeiros anos salazaristas, o que não se estranha dadas as características e as diferenças ideológicas entre os dois regimes. Esses Bairros, que se davam bem com blocos multifamiliares e com o modelo do arrendamento, previam também a integração de cantinas, lavandarias e balneários, assim evidenciando o género de mundividência que deixava o ditador de Santa Comba com os cabelos em pé.

O poder republicano, no entanto, fazendo-lhe um grande favor, devido em parte ao desagradável facto de ser muito mais fácil e rápido escrever despachos e decretos do que erguer fiadas de tijolos, não conseguiu transformar a sua visão em realidade, e mesmo o Bairro da Ajuda/Boa Hora e o Bairro do Arco do Cego, dois dos poucos empreendimentos que tiveram obra de facto, acabaram por ser finalizados já pelo Estado Novo, que ainda foi a tempo de os “ajustar” à sua concepção individualista. As habitações acabaram assim nas mãos de “moradores-adquirentes”, reforçando-se o pilar família/herança, e os cabelos de Salazar assentaram novamente. Ademais, o facto de ter sido ele a ter de terminar as empreitadas que os republicanos, no meio do caos político e financeiro, não tinham sido capazes de erigir, reforçou a imagem de competência que vinha laboriosamente a contruir desde o dia em que assumiu funções políticas, se não mesmo desde o dia em que nasceu.

 

“Feliz aquele que administra sabiamente / a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias / Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará” (Ruy Belo)

 

Em Junho de 1970, no número 1496 da Seara Nova, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, cansado do aumento contínuo de barracas e bairros de lata na capital, faz publicar um texto sugestivamente intitulado A nódoa de Lisboa. Esse tipo de “alojamento sem ser em prédio”, como eufemisticamente lhe chamava o Censo de 1960, não era de todo uma especificidade portuguesa, como bem podiam comprovar os inúmeros emigrantes lusos transferidos directamente da miséria local para a miséria estrangeira de um qualquer “bidonville” nos arredores de Paris. Esse pormenor, no entanto, não servia de consolo a Teotónio Pereira, nem, supõe-se, aos moradores das barracas, nem tampouco, e isso sabe-se hoje sem sombra de dúvida, às autoridades políticas, que, programa após programa, iniciativa após iniciativa, se sentiam, embora não o confessassem, como Sísifo nos seus trabalhos.

Note-se que nesse ano de 1970, Portugal levava já mais de duas décadas de novas experiências habitacionais públicas, de escala significativamente maior do que aquela que desejava casar, sob apadrinhamento do fiscal e do seu ficheiro, o pequeno proprietário com a casinha portuguesa “de” Raul Lino. A promoção do arrendamento social, vista com muito maus olhos nos primeiros vinte anos de Estado Novo, começa a ser alvo de uma visão refrescada, mais por necessidade do que por convicção, em meados dos anos 40, e algo de semelhante acontece, pelos mesmos motivos, em relação ao tema dos grandes blocos de habitação colectiva.

O Bairro de Alvalade, por exemplo, onde trabalharam vários arquitectos conhecidos dos quais se destaca Miguel Jacobetty Rosa, foi uma iniciativa levada a cabo pelo poder central e municipal que conjugava rendas económicas, extensa área urbanizada e construção em altura, e a sua visibilidade, indisfarçável, logo despertou o interesse de outras cidades portuguesas, que prontamente deitaram a mão aos projectos de Jacobetty e aos fundos disponibilizados pelo Estado.     

 


Casas de Renda Económica do Bairro do Tarrafal, Matosinhos, um dos “pequenos Alvalades” que surgiram pelo país; Arq. Miguel Jacobetty Rosa, 1951

 

Datam igualmente desta época do pós-guerra a construção de Bairros para Famílias Pobres (um dos arquitectos envolvidos foi Ruy Jervis d'Athouguia, um aristocrata reservado que, dando provas de grande ecumenismo, desenhou casas para pobres ao mesmo tempo que projectava edifícios para a elite, como é o caso da emblemática Sede da Fundação Calouste Gulbenkian), Bairros para Pescadores, Bairros do Movimento Nacional de Auto-Construção, um nome que é todo um programa mas que contavam com apoio público, Bairros da Fundação Salazar, os quais, à semelhança da ponte sobre o Tejo, se chamam agora 25 de Abril, Colónias Agrícolas em vários concelhos, principalmente do interior, numa tentativa de travar o êxodo rural, ou seja, de parar o vento com as mãos, Bairros “do” Padre Américo, enfim, todo um conjunto de políticas que, todavia, coexistiam com um sem-fim de lamaçais inundados por barracas de madeira carcomida e chapa esburacada.   

 

“E a alegria é uma casa recém-construída” (Ruy Belo)

 

Assim sendo, logo no início da governação de Marcello Caetano, e como resultado de uma longa reflexão que atribuía as insuficiências da política de habitação (“falhanço” era uma palavra proibida) ao facto de esta se encontrar dispersa por várias entidades, é criado o Fundo de Fomento da Habitação (FFH), organismo destinado, de acordo com o engraçado lero-lero do governo, a “concentrar o estudo da problemática”. Estamos em pleno III Plano de Fomento e numa época em que parte do regime, contra a opinião de uma outra parte mais conservadora, tentava importar para Portugal algum do Estado Social que caracterizava as democracias da Europa ocidental.

O FFH, através do conceito de Plano Integrado (o arquitecto Nuno Portas, cujas ideias foram aproveitadas para esta abordagem, chamava-lhe uma “arquitectura de nova dimensão, integradora dos sucessivos escalões de planeamento”), inicia então o planeamento de empreendimentos de grande escala, não apenas ao nível dos edifícios previstos, mas também em relação às vias de comunicação, às infraestruturas e aos equipamentos sociais, ou seja, dá-se o tiro de partida, no nosso cantinho, ao lançamento dos grands ensembles que polvilhavam desde o final da II Guerra Mundial as áreas metropolitanas francesas, alemãs ou italianas e que, por essa altura, comprovando pela enésima vez a nossa chegada tardia às coisas, começavam a ser postos em causa pelas populações e autoridades desses países.   

 

 


Bairro da Bela Vista, inserido no Plano Integrado de Setúbal; Arq. José Charters Monteiro, 1974. Charters Monteiro formou-se em arquitectura no Politécnico de Milão e foi aluno de Aldo Rossi, que chegou a projectar um edifício, nunca construído, para este Plano Integrado (PI).

 

Vários arquitectos, alguns deles famosos nos dias de hoje mas nessa época em início de carreira, começam por isso, num espaço temporal que engloba os anos finais da ditadura e os primeiros anos pós-25 de Abril, a projectar, no âmbito destes PI, ou Planos Integrados, ou 3,14 para os amigos, blocos e mais blocos de habitação social, uns para arrendamento, outros no sistema de propriedade resolúvel, ou seja, a amortização por prestações mensais característica das “casas económicas” dos anos 30, espalhando pelo território milhares e milhares de casas e apartamentos.

E a estas devemos também somar as muitas habitações construídas como resposta pública a catástrofes (com destaque para os Bairros Gulbenkian, nascidos de uma espécie de PPP formada para acudir as vítimas das grande cheias de 1967), os Bairros CAR, construídos para alojar o mais rapidamente possível os retornados de África, visto que a solução provisória – mosteiros, seminários, casas de acolhimento, conventos, parques de campismo, autocaravanas, pensões, residenciais e hotéis de uma, duas, três, quatro, cinco estrelas, e mais estrelas houvesse, caso isto fosse o Dubai – se revelava excêntrica e dispendiosa, e os Bairros SAAL, cooperativas de trabalho conjunto entre o povo (o real, mesmo, e não o das teorias ideológicas) e grandes nomes da arquitectura (Siza Vieira, Alcino Soutinho, Fernando Távora, Gonçalo Byrne, etc.), numa experiência inovadora e marcante, pontuada por muita utopia revolucionária, mas que teve projecção internacional e nos deixou frases memoráveis, como aquela em que um morador, interrogado sobre as suas preferências conceptuais, contrapõe um magnífico “o senhor arquitecto faça como se fosse para si que de certeza que eu vou gostar.”

 

“E a alegria é uma casa demolida” (Ruy Belo)

 




Mais recentemente, já na época de estabilidade democrática em que dois gigantes, Mário Soares e Cavaco Silva, ocupavam, numa feliz coincidência histórica, as cadeiras da Presidência e da chefia do Governo, provocando-se mutuamente, às vezes de uma forma feroz, mas também contribuindo para que cada um desse o seu melhor na respectiva função, dá-se a construção de dezenas de milhares de habitações destinadas à substituição das barracas que teimosamente ainda subsistiam. Soares aproveita as suas Presidências Abertas para, no âmbito daquilo que na gíria se convencionou chamar “magistratura de influência”, denunciar as indecentes condições de habitabilidade que marcavam certos territórios, e Cavaco, o executivo, responde-lhe com a pulsão, sempre à flor da pele, de “fazer obra”, demolindo, em conjunto com os municípios, uma infinitude de bairros de lata e de habitações precárias degradadas, não todas, infelizmente, dizem uns que por causa do boicote político de algumas autarquias, dizem outros que por causa de várias outras vicissitudes, sendo seguro que, entretanto, talvez mesmo no mês ou na semana passada, há novas barracas a nascer por aí, muito frágeis na aparência, é certo, mas solidamente resistentes aos discursos bondosos sobre pobreza e chagas sociais.

“Oh as casas as casas as casas”, escrevia Ruy Belo já não no livro O Problema da Habitação, de 1962, mas num outro, País Possível, editado nas vésperas do 25 de Abril. Sim, ouve-se perguntar, onde estão as casas as casas as casas, milhares e milhares delas, construídas com dinheiro público nos últimos 100 anos, mesmo que descontemos outras tantas que foram feitas no modelo de propriedade resolúvel, e destinadas por isso, desde o início, a terem como destino final a posse privada? O tal 2%, número que nos martela os ouvidos, o fraquíssimo indicador da nossa liliputiana habitação pública, não parece compatível com tanto arquitecto, tanto projecto, tanta obra.

E, no entanto, é! Consciente das suas próprias e gritantes dificuldades de gestão, da cobrança das rendas à conservação dos imóveis, o Estado, nos últimos 40 anos, tentou livrar-se a todo o vapor, e se calhar ainda bem!, dos seus edifícios arrendados, umas vezes entregando-os às autarquias, quando estas, distraídas, os aceitavam, outras vezes, a maioria, vendendo as fracções aos respectivos inquilinos, numa operação de larguíssima escala que pouca gente, se é que alguém, consegue quantificar. E as autarquias, como é óbvio, sentindo idênticas aflições quando envergaram o fato de senhorio, fizeram o mesmo. O que sobrou, 2%, aí está, para consumo público em letra de imprensa, pois, como muito bem diz o povo na sua descomplexada sabedoria, quem o rabo vende não se senta quando quer.

 

 

PS (salvo seja!) – a maioria da informação que aparece neste texto foi recolhida no excelente livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas em Portugal, 1918 - 2018 (INCM, Dezembro de 2018, 525 pp.), encomendado pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP a um vasto conjunto de investigadores coordenados pelo arquitecto e professor universitário Ricardo Costa Agarez. Seria talvez boa ideia que a Ministra da Habitação e o PM, ainda que na diagonal, deitassem pelo menos os olhos aos estudos solicitados pelo próprio governo de que fazem parte. Poderiam assim contactar com esse longo período em que o Estado – fosse ele dirigido por republicanos radicais, ditadores reaccionários ou democratas liberais –, quando queria entregar casas ao povo (uma opção discutível, mas legítima), metia as mãos na massa e não na argamassa dos outros.

 

                                                                        Sérgio Barreto Costa

                                                                                   sbcosta13@gmail.com


                                                   (texto originalmente publicado no jornal Observador)

 


quinta-feira, 23 de março de 2023

Cartas de Bruxelas.

 




Forma dat esse


Num texto sobre as últimas palavras ("E então vós julgais" in Nenhum de nós há-de voltar), Charlotte Delbo, uma «concentracionária», refere-se às palavras dos moribundos como palavras solenes. O tema pode não ser novidade, mas o contexto – o Lager – é. Segundo os linguistas, solemnis compõe-se de sollus annus. É solene o que ocorre todos os anos. O termo tem, pois, origem na esfera mítica; diz o regresso do mesmo. Esperado, o sagrado renova-se no mundo e renova o mundo, desse modo tudo se passa como se o ciclo imanente do eterno retorno acarretasse uma solenidade objectiva. Na morte, porém, a imanência quebra-se. O que acontece, acontece uma única vez. A eternidade está diante dos olhos na despedida absoluta. O «nunca mais» tem necessariamente uma solenidade diferente. Longe de regressar, o solene da morte apõe o selo da ausência definitiva. Nessa medida, confere à morte o seu carácter humano, histórico. Nas últimas palavras ditas vem à luz do dia a mais evanescente das formas humanas, que, no entanto, é a sua forma por excelência : o viver em comum com os outros, que faz do homem o animal político. As derradeiras palavras, banais ou não pouco importa, assinalam a comunhão entre os homens no exacto acto de se perder. Ao passar algo a outrem, passa-se o próprio. O poder ter uma morte funda a traditio, a continuidade dos homens.  A solenidade dos moribundos assenta precisamente nessa forma de esperança.

Mas no Lager tudo é roubado aos homens. As coisas são-no para roubar a vida, a vida é-o para roubar a morte.  O homem sem morte reduz-se a coisa, e as coisas não morrem: reduzem-se a matéria-prima que se transforma como elemento do mundo físico. Quando não há esperança, desaparece a necessidade de solenidade. Conta Delbos:

 

 «'Desta vez vou bater a bota.'

Estavam nuas em cima de tábuas nuas.

Estavam sujas e as tábuas sujas de diarreia e de pus. [...]

Mas não era permitido serem fracas para consigo mesmas.

Então disseram: 'Vou bater a bota» para não tirar a coragem às outras e contavam tão pouco que alguma sobrevivesse que não confiaram nada que pudesse ser uma mensagem.»

 

A des-solenização, o disfemismo, é a vingança do humano, que assim se diz de forma invertida – sem esperança. Como se nessas palavras a comunicação entrasse em curto-circuito, perdesse a história que lhe é inerente e regressasse em ricochete para o presente estreito: ad immunda per angusta. O efeito é especular. Quem as escuta devolve a quem as diz o que todos sabem, o que todos aguardam: a morte à porta fechada, fora do mundo humano. Nenhuma mensagem – sans phrase : aqui viveu um ser humano – será transmitida. A morte humana que denuncia a imanência do mesmo acaba assim por se reabsorver nele. Delbos sabe-o e cumpriu-o: o que pode restar da luz de uns olhos que se extinguiu noutros olhos converte-se no dever moral de dar testemunho. Uma última forma. 


João Tiago Proença 





quarta-feira, 22 de março de 2023

São Cristóvão pela Europa (210).

 


 

Na Província de Salamanca, a poucos quilómetros da capital, em San Cristobal de la Cuesta, ergue-se a Igreja de São Cristóvão Mártir. No exterior, no pórtico principal e num nicho, uma pequena estátua do nosso Santo.

 


Na cidade de Salamanca, já aqui amplamente tratada, ainda encontrei mais uma imagem: uma estátua no exterior da igreja de São Cristóvão. Foi inaugurada em 1997 e é da autoria de Valeriano Hernández Fraile 

 



                                                        Fotografias de 20 de Fevereiro de 2023

 

                                                                                         José Liberato


sexta-feira, 17 de março de 2023

Quando a inocência e o sonho não nos desviam da esperança em dias melhores.

 


 


 

Quando li esta tocante narrativa Jénifer, ou a princesa de França, de Joel Neto, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, veio-me como um clarão a lembrança do que vi e senti nos Arrifes, uma populosa freguesia a cerca de 7 km de Ponta Delgada, quando ali fui militar, entre 1967 e 1968. Assombrava-me a delicadeza de maneiras daqueles jovens da minha idade, a quem lhe estava a dar recruta; gostavam da tropa, pela primeira vez na vida comiam três refeições ao dia, tinham banho quente e não sentiam qualquer inquietação na rijeza da atividade física. A pobreza senti-a quando confrontado, estando de oficial de dia, com aquelas crianças andrajosas que esperavam o fim do rancho para levar os restos da sopa e o conduto sobrante, criei problemas mandando abrir latas de atum e dispensando fruta, tudo acabou em bem com o sargento vagomestre. E visitas constantes a S. Miguel e às restantes ilhas permitem-me dizer sem qualquer hesitação que melhoraram radicalmente as condições de vida. O que de modo algum desabona o que o escritor terceirense Joel Neto aqui conta e deixa à nossa ponderação. E acontece que estes ambientes de exclusão, a clamar por mudança, também persistem neste pedaço continental, logo nos subúrbios sob a forma de gueto da capital até a esse largo espaço que designamos por interioridade.

Atenda-se ao que se escreve na badana deste ensaio: “Jénifer é uma criança em busca de uma saída e Joel um homem em busca de uma história. O encontro entre os dois dá-se num bairro social nos Açores, a região mais pobre de Portugal, terreno fértil para o abuso sexual e o incesto, o alcoolismo e a violência doméstica, a exclusão social, o tráfico de droga, o insucesso escolar, a pobreza persistente ou o suicídio jovem, entre tantos outros sinais de subdesenvolvimento humano. Em fundo, uma pergunta: como poderá Jénifer transcender a miserável condição dos pais? Ela tem um plano.”

E abre a narrativa apresentando a heroína: “Jénifer Armelim é uma garotinha aloirada e melancólica que costuma passar as tardes, depois da escola, sentada no muro de cimento frente à casa onde vive. Por vezes, convence um dos lavradores da freguesia a levá-lo com ele até às pastagens, onde passam ambos umas horas a tratar dos animais ou a enxotá-los na direção do pasto vizinho. Dizem os homens que é frequente irem dar com ela debruçada sobre a parede de algum cerrado, a olhar o mar ao fundo a assobiar.” Tudo isto se passa na ilha do Espírito Santo.

É uma criança solitária, a professora até especula se não haverá para ali um certo grau de autismo. Joel visita o bairro na companhia de uma amiga, assistente social, trava conversa com Jénifer. E chama-nos a atenção para os bairros sociais, modelo que poderá ter tido a sua razão durante um certo tempo mas que está petrificado, terá ganho a dimensão de gueto: “A cada novo ciclo eleitoral eram construídos novos bairros, grandes ou pequenos, sem a preocupação sequer de se disseminar as populações mais vulneráveis entre aquelas a que se proporcionara pelo menos alguma espécie de autodeterminação. De ano para ano, a massa de gente afastada para as margens da sociedade concentrava-se e crescia. De tal modo que, à volta de alguns dos complexos originais, já reduzidos a guetos, começavam mesmo a ser construídas novas cinturas de habitação social, de aparência e condições um pouco mais dignas.” O resultado não é brilhante, há para ali um oportunismo eleitoral e uma operação subtil de esconder da paisagem a degradação das construções primitivas.

Reproduzem-se diálogos e chegou a vez de Jénifer conversas com Joel, é quase uma magia de história de encantar, assombra-nos a inocência e a candura de Jénifer, há ali muito saber de experiência feito, uma jovialidade que nos leva a beber intensamente as suas palavras, iremos saber a história da família, bem triste, por sinal, mas a menina é um ardor de sentimento, sente-se uma princesa da França e explica porquê. É nisto que surge um lavrador e fica apalavrado que na manhã seguinte a menina e o escritor vão de trator para um trabalho no campo, mungir vacas com a máquina de ordenha, ouve-se uma roçadora barulhenta limpando o novo pasto, foram buscar as bezerra mais jovens para  as unir às leiteiras, há que limpar os tanques, faz-se pausa para merendar, o lavrador, a quem se põe o nome de Jota, fala daquele bairro social onde vive a Jénifer, disserta sobre o rendimento social de inserção, observa: “Isto é uma terra difícil, com pouco trabalho e pouco dinheiro, tudo mal distribuído.” E, continua: “Mas, quando se vai a ver quantos foram – e entoou – reinseridos? Quantos é que o Governo quis mesmo pôr a andar pelo seu próprio pé outra vez? Nenhum. Nem sequer dava jeito. Estão ali guardados para o dia das eleições.” E lembra que aquela criança não conhece ninguém que trabalhe, os pais não trabalham, os vizinhos não trabalham, é uma região inteira dependente dos subsídios, metade está no consumo da droga e a outra metade no tráfico.

E há a irmã de Jénifer, Mara, a trabalhar na cidade, numa unidade hoteleira, aparecerá grávida do dono da venda, o Chocolatinho, a mulher deste ao princípio reponta, chama-lhe nomes, nascerá a criança, viverão todos juntos, com uma réstia de afeto disfarça-se a tragédia de mais vidas estragadas. Há carrinhas que distribuem metadona, Joel regressa ao bairro e a tudo isto assiste, teremos agora novos esplendentes diálogos com Jénifer. O escritor parece ter desistido de escrever a história daquela criança, vai escrevendo, desanimado, que pensa que aquelas ilhas estão condenadas, quem para ali vem fazer turismo nem sonha que existe toda esta exclusão. Joel muda o rumo da escrita até que viu na televisão a notícia de uma intervenção da polícia no combate à droga naquele bairro, afinal chamara a atenção de alguém aquele escândalo dos garotos que transacionavam droga à janela dos carros.

Assim se encerra a narrativa, a amargura fica em suspenso e o futuro de Jénifer é submetido à gestão da nossa consciência, fala-se muito daquele paraíso a meio do Atlântico mas esta princesa da França vive numa ilha por nós desconhecida, está fora dos nossos circuitos turísticos e já temos bairros suburbanos e interioridade quanto basta, ainda por cima a pandemia não acabou, não se vaticina um fim à vista para esta adoçada Terceira Guerra Mundial, há os problemas da inflação, o melhor, Jénifer, é manteres os teus sonhos, esses pergaminhos de princesa da França, e continuares a dar tudo para teres melhor destino.

De leitura obrigatória.


                                                                                        Mário Beja Santos




terça-feira, 14 de março de 2023

Quando a crise dos bancos em colapso ameaçou ferozmente o Estado Social.

 





Publicado em Portugal no ano em que o autor faleceu, Na Margem, por Rafael Chirbes, Assírio & Alvim, 2015, é a mais poderosa metáfora que conheço sobre aquele início do século XXI que ameaçava pôr-nos quase todos na margem (entenda-se: no terror de perder o emprego ou os apoios sociais enquanto os oportunistas da especulação triunfavam, quando parecia que uma bola de demolição ia arrancar pelos alicerces um mundo de bem-estar nascido depois da Segunda Guerra Mundial e que parecia inalterável nos seus princípios).

A metáfora é o pântano onde o empregado da carpintaria que fechou vai à procura de peixe, é tempo de restrições, o mundo vive sob tormenta, aqueles bancos que faliram na América fazer rugir o funcionamento das economias europeias, agora campeia o desemprego, o pavor da miséria, impôs-se a austeridade, no pântano há despojos putrefactos e, imprevistamente, no meio daquela pestilência, anda por ali um cão com restos de um ser humano.

Feito o achado, entramos propriamente na narrativa, haverá muita gente a comunicar entre si, mas cabe a Esteban abrir as hostilidades, ele trata do pai, um ancião demente que carece de todos os cuidados, não faltará o enquadramento histórico, reminiscências da guerra civil de Espanha, ele é empresário de uma carpintaria falida, teve outros sonhos na vida, jogou na bolha imobiliária, tudo perdeu e tudo fez perder, vemo-lo agora passear-se pelo pântano, dispõe agora de tempo para joguinhos no bar, aí colhe informações de falências dos outros, vêm os representantes da autoridade e tudo arrestam, levam os livros de contas, os credores procuram toda esta gente falida.

Haverá tempo (são mais de 400 páginas que o leitor tem pela frente, Na Margem foi considerado o melhor romance espanhol de 2013 por conceituados suplementos literários de jornais) para sermos embrenhados na vida destas famílias em que a carpintaria é o lugar e o tempo e a placa giratória da vida espanhola desta ditadura até à época da austeridade ditada pelas falências bancárias. Fala-se de frigoríficos vazios, de subsídios de desemprego, de amores desencontrados, daqueles anos de consumo opulento que agora parecem mortos, e para todo o sempre. É romance de indignação, de amargura, de múltiplos equívocos, como a ternura que Esteban dedica a Liliana, e muito mais adiante veremos que ela retribui com o mais puro dos cinismos.

O leitor que se prepare para solilóquios que por vezes parecem assumir uma dimensão barroca, basta pensar nas descrições do apoio que Esteban dá a seu pai. Será passada a revista a negócios que se julgavam muito bem-sucedidos, como os de Pedrós e os de Tomás, serão devorados pela intempérie. Romance de silêncios, de rememoração, cada um dos irmãos seguiu o seu destino, Esteban tinha que ficar ao leme da carpintaria, a tomar conta do pai, e há mesmo confissões dolorosas:

“Nesta luminosa manhã de inverno, sou eu quem procura o cenário onde restabelecer parte do código numa representação íntima, teatro de câmara, para reparar o que a história rompeu. Preparo o momento, pai, encarrego-me de te devolver ao lugar onde quiseste ficar e, por culpa nossa, não ficaste, reconstruo o corpo partido da tua dignidade para o restituir à plenitude do homem que não conheci, porque o meu irmão mais novo, a minha irmã e eu já chegámos depois da mutilação, filhos de uma servidão aceite, seres sem forma própria, criaturas domésticas sem aspirações. O país inteiro tinha sido privado de aspirações. Nada podia crescer à beira desta tristeza. Cabe-me a mim cumprir o teu desejo adiado, devolver-te aos teus camaradas.”

E somos confrontados com o fragor do despedimento, é o caso de Álvaro, a mão-direita de Esteban, ele deita contas à vida, onde vai cortar, do que se vai privar. É um dos muitos discursos sobre aquele desemprego que está a abalar a sociedade por inteiro. Alguém comenta: “A pobreza é pessimista por natureza. Os pobres estão convencidos de que, por muito que sofram, ainda lhe pode acontecer algo pior.”

A grande tensão vai pela decisão que Esteban tomou, que os outros não lhe vejam a dor da perda, a ninguém tem que confessar o vazio, a humilhação, diverte-se com aquelas conversas de botequim em que se fala das fortunas perdidas. E caminhamos para o cerimonial da partida, Esteban liberta o pintassilgo da gaiola, parece que toda a vida familiar, todo o seu passado correu no caudal da consciência, e há um momento extraordinário que é a lembrança da lição que o pai lhe deu sobre o bom carpinteiro:

“Lembra-te de que um bom carpinteiro não é aquele que faz maravilhas com a madeira, mas aquele que vive do seu trabalho com a madeira; tens de saber de cor o porquê de cada instrumento que usas: olha, toca esta cadeira – apoia a mão no espaldar – nasceu do trabalho combinado da natureza e do homem, foi fabricada por gente que fala. O móvel que fizeste suporta o cu ou os cotovelos ou as mãos e os papéis e as toalhas e os pratos e os copos de alguém, alguém que, graças ao teu trabalho, goza de certa comodidade que o alivia da azáfama e do cansaço de cada dia.” Esteban lembra a sua passagem na Escola de Artes e Ofícios e nisto voltamos ao pântano, de ali se avista o que para trás fica do mundo destruído pela crise, restam edifícios inacabados e nenhum em construção; e retoma-se a metáfora do pântano:

“No pântano é possível construir um mundo privado fora do mundo. Ninguém corre nem muito menos pedala pelos caminhos lamacentos, esburacados, que cheiram à podridão da água estagnada, a vegetais macerados e a animais mortos.” É uma dolorosa despedida. Seremos ainda confrontados com a derrocada que o capitalismo financeiro provocou naquela região (mas não será que o regional é igualmente universal?), aliás, iremos assistir à situação de Tomás, ele lá se desenrascou e segue com a sua mulher, Amparo, para férias nas Américas, e toda a amargura deste livro espantoso explode no final: “preocupa-te, sobretudo, em acumular lingotes de ouro, há séculos e séculos que os lingotes de ouro circulam por aí, e as joias, os diamantes, os rubis e as safiras, há milénios que andam de cá para lá, e continuam a ter o valor que tinham no oitavo dia da criação do mundo, quando Eva viu uma serpente e lhe deitou a mão julgando que se tratava de um colar de esmeraldas.”

O resto, os falidos, os vencidos, esses ficam na margem, foram laminados pela crise. Rafael Chirbes fica como um dos maiores escritores que pela sua arquitetura admirável nos põe em permanência, diante dos olhos, as sucessivas tentativas para demolir o Estado Social. 


                                                                                    Mário Beja Santos



 

 


quinta-feira, 9 de março de 2023

O guardador de Pessoa.

 

 


        

Richard Zenith: problemas desde 1992

 

Em 1987, quando aterrou em Lisboa, vindo de Washington, Richard Zenith trazia consigo uma rica ideia: verter para inglês as cantigas medievais galaico-portuguesas.

A descoberta do petróleo pessoano, e a hipótese de traduzir o Livro do Desassossego numa editora inglesa, fizeram-no mudar de planos. Foi assim que apareceu, logo em 1991, o The Book of Disquietude (Carcanet Press), com tradução, organização e prefácio de Richard Zenith, que se abalançou a esta tarefa de enorme exigência sem nunca ter publicado nada, absolutamente nada, sobre Fernando Pessoa.

Passado pouco tempo, começaram os problemas. Em Março de 1992, Teresa Sobral Cunha, uma das maiores especialistas na obra de Fernando Pessoa, ligada à primeira edição do Livro do Desassossego (1982), publicava no Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 17/3/1992, um artigo arrasador, intitulado "Uma Edição, um Prefácio, um Tradutor", em que, sem tirar nem pôr, acusava Zenith de se "servir" (sic) do seu trabalho:

          A revisão de todos os originais manuscritos (que fortemente predominam sobre os dactilografados, na selecção que apresento no vol. I da Presença) [publicado em 1990]. Nela rectifiquei leituras ou completei sentidos, nos casos de lacuna, chegando a envolver parágrafos inteiros; nela corrigi eventuais deslizes anteriores na organização interna de textos; nela diferentemente agrupei novos núcleos ou expandi outros quando a isso me levaram indicações internas, ou mesmo exógenas aos textos, e/ou uma inevitável 'cultura pessoana' de anos e anos textualmente por dentro. De tudo isto Zenith se serviu, tudo usou e incorporou como seu na versão que assina. 

Ao longo do artigo, a organizadora do Livro do Desassossego, Teresa Sobral Cunha, utilizava expressões como "procedimentos que dos meus decalca"; referia partes do seu próprio trabalho que o "tradutor faz passar por contributo original"; acusava o americano de utilizar "a proposta ordenadora que, no meu prefácio, anuncio para o vol. 2", que Zenith "designa por 'My own contribution'", e de tomar "como suas aquelas características com que eu identifico esses textos não datados".

Ou seja, cinco anos após a sua chegada a Portugal, Zenith já estava envolvido em acusações de apropriação ilegítima do trabalho alheio: uma das maiores autoridades em Fernando Pessoa denunciava-o publicamente e recriminava-o por desrespeitar a propriedade intelectual das primeiras edições portuguesas do Livro do Desassossego.

Anos depois, em 1997, a obra de Fernando Pessoa regressou ao domínio privado. Desde 1985, atingidos os 50 anos após a sua morte, que a obra de Pessoa estava no domínio público, mas uma nova directiva europeia veio alargar o período de vigência dos direitos de autor — de 50 para 70 anos sobre a morte dos autores —, o que permitiu aos herdeiros do poeta retirar a sua obra do domínio público, para ceder o exclusivo à Assírio & Alvim, ficando as outras editoras impedidas de publicar todas e quaisquer obras do autor de Mensagem.

Estranhamente, pois pouco ou quase nada havia escrito sobre Pessoa, Zenith apareceu como responsável pela nova versão portuguesa do Livro do Desassossego, que a Assírio & Alvim publicaria em 1998 (com o consequente direito de proibir outros editores de Pessoa de continuarem a publicar.)

A encomenda chegava no momento certo: um ano antes, Richard Zenith tinha acabado de traduzir o palpitante Meditações em Ruínas, de Nuno Júdice (Meditation on ruins, Archangel, 1997), e era preciso ampliar e reafirmar o seu poder sobre o ouro pessoano.

Entretanto, Teresa Sobral foi impedida de publicar o 2.º volume do Livro do Desassossego, na sua nova edição da Relógio d’Água, cujo 1.º volume tinha saído em 1997.

Em 2008, três anos depois de Pessoa ter caído novamente no domínio público, Teresa Sobral Cunha reeditou a sua versão do Livro do Desassossego na Relógio d'Água, com uma nota apensa à introdução (pp. 36-37). Segundo aquela investigadora, a edição da Assírio & Alvim voltara a utilizar "as correcções, os inéditos e as propostas avançadas, poucos meses antes (Outubro de 1997)", por si própria. E, de novo, "à sua revelia", "mais uma vez desconsiderando direitos intelectuais". Ou seja, e em direitas contas: Zenith apropriou-se do seu trabalho não uma, mas duas vezes. E reiterou no delito, mesmo após ter sido exposto publicamente no Jornal de Letras.

Naquele texto, demolidor e de grande dureza, Teresa Sobral Cunha insistia nos argumentos acusatórios contra Zenith: o norte-americano aproveitara-se da sua "revisão dos textos", das suas "novas propostas de arrumação" e das suas "opções e procedimentos", fazendo deles "indevido uso". Além disso, incorporara livremente "a selecção documental alargada, as transcrições e os resultados da pesquisa realizada no ano anterior para a edição da Presença, (...) à revelia da sua única responsável e com omissão de fontes".

A rematar, dizia: "Não é este o lugar para um inventário rigoroso dos prejuízos das edições de Richard Zenith e da inadequação deste à actividade científica da qual é indissociável uma deontologia a que se alheia".

Na sua ácida resposta, intitulada "Uma desassossegada investigadora" (JL, 24/3/1992), Zenith tem o desplante de afirmar: "não entendo o que a Dra. quer. Não gostou que eu traduzisse a partir das suas novas leituras, quando as achei melhores (...) do que as publicadas pela Ática? Deveria eu ter traduzido a partir de leituras inferiores?".

Desde então, e enquanto Richard Zenith continuava a editar e a comentar a obra de Pessoa (e a traduzir outros vultos da literatura portuguesa, como José Luís Peixoto, etc.), foram-se avolumando os rumores de que o norte-americano (naturalizado, entretanto, português) se aproveitava do trabalho alheio, sem o citar ou creditar.

Nos últimos anos, no contexto desta luta pela demonstração de competências filológicas na transcrição e fixação dos textos pessoanos, é indiscutível que Jerónimo Pizarro se afirmou como uma das maiores autoridades em Fernando Pessoa, a ponto de Eduardo Lourenço ter descrito o colombiano como "o mais jovem dos heterónimos pessoanos".

          Ao jornal Público, de 12 de Agosto de 2010, Pizarro diria que as primeiras edições de Zenith eram "muito fracas". E, mais recentemente, José Barreto, historiador e profundo conhecedor da biografia e do pensamento de Fernando Pessoa, sobre os quais publicou vasta obra, deixava o seguinte comentário no blogue Malomil: "Ainda não peguei numa calculadora para averiguar quantas vezes Zenith se esqueceu de citar, ou decidiu não citar, ou citou mal trabalhos de outros estudiosos pessoanos que ele leu e em que se baseou. Quem tem telhados de vidro devia estar muito caladinho" (blogue Malomil).

Em Agosto de 2021, Patricio Ferrari, também ele grande especialista em Fernando Pessoa e membro da equipa de Jerónimo Pizarro, elaborou um esmagador conjunto de notas para uma recensão crítica da biografia de Richard Zenith (notas a que tive acesso graças à generosidade de José Barreto). São nada mais nada menos que 21 páginas com 51 entradas ou ocorrências de apropriações indevidas, por parte de Zenith, do trabalho de outros investigadores.

          Nelas, Ferrari aponta dezenas de edições de Pessoa (livros e artigos sobre ele publicados por outros pessoanos) e obras de sua autoria (ou em colaboração com Jerónimo Pizarro) que Zenith não menciona nem referencia na bibliografia e/ou notas finais da biografia, apesar de nelas se inspirar, ou de a elas ter ido buscar pistas cruciais para o seu livro.

          Quando aceitei o convite para escrever uma biografia de Fernando Pessoa (O Super-Camões. Biografia de Fernando Pessoa, Publicações Dom Quixote) para não académicos, que não fosse lida somente por especialistas ou peritos, julgava que, não sendo especialista em Fernando Pessoa (mas com alguma experiência no género biográfico), me poderia manter saudavelmente à margem das velhas controvérsias pessoanas. Enganei-me redondamente.

        Uma reportagem da revista do jornal Expresso – "O desassossego de uma biografia", de 17 de Fevereiro – arrastou-me para esse universo.

         Nessa peça, a jornalista Luciana Leiderfarb dava uma estranha latitude aos materiais fornecidos por Richard Zenith, sem nunca os indagar ou aprofundar; ignorava o meu livro, pois baseava-se unicamente nas informações transmitidas por Zenith sobre O Super-Camões; cozinhava excertos do meu texto, para insinuar o crime de plágio e lançar a dúvida e a incerteza sobre todo o meu trabalho; procurava temperar a parcialidade da sua reportagem com a opinião de um pretenso árbitro, Fernando Cabral Martins, amigo pessoal de Zenith, com quem colabora há mais de 20 anos e com quem assinou, desde 2001, mais de 15 obras de (e sobre) Fernando Pessoa. Tudo isto, enfim, com direito a notícia de primeira página no nosso semanário de referência.

          Em face da situação assim criada, vi-me na obrigação de demonstrar com factos incontroversos que tanto a jornalista, como Richard Zenith, cometeram vários erros e acumularam contradições, sem cuidarem dos seus próprios telhados de vidro.

          Vejamos, então.

 

          Zenith, um banqueiro muito anarquista

 

      Richard Zenith reivindica para si a propriedade intelectual de algumas ideias. Apregoa ele, em encomiástica referência a si próprio, que é sua (e apenas sua) a seguinte tese, de arrebatadora originalidade: o facto de Fernando Pessoa ter sido desqualificado da bolsa Natal Exhibition (a qual teria permitido ao português estudar numa universidade inglesa à sua escolha, presumivelmente Cambridge ou Oxford), o "resgatou para as letras portuguesas, bem como, genericamente, para a poesia universal (...) É possível que na Grã-Bretanha, ao fim de alguns anos, o inglês de Pessoa se tornasse mais instintivo, adequado a jogar à bola poeticamente”.

          À ingénua jornalista do Expresso, Zenith afirmou, e cita-se, "nunca vi isso dito por mais ninguém".

          A verdade pura e triste, talvez dura, é que essa ideia, temos pena, já tinha sido avançada, sem peneiras nem pretensões, por Robert Bréchon, em Estranho Estrangeiro. Uma Biografia de Fernando Pessoa (Quetzal, 1996, p. 77):

          Todos os que o [Fernando Pessoa] amam, tanto em Portugal como noutros países, se congratulam com a injustiça cometida pelas autoridades do Natal em 1904. 'Que imenso favor, diz Severino [referência a Alexandrino E. Severino e à obra Fernando Pessoa na África do Sul, Publicações Dom Quixote, 1983], prestaram à cultura portuguesa aqueles que lhe recusaram esse destino' (ser inglês). Pessoa como escritor unicamente inglês teria sem dúvida sido sempre Pessoa, mas teria sido outro Pessoa, inimaginável.

         De resto, a soberba atrevida de Zenith é consistente com o menosprezo a que votou o livro de Robert Bréchon, quando afirmou que o francês "não se preocupou em descobrir informações sobre Pessoa, mas sim em mapear a sua vasta obra literária” (p. 1150 da biografia de Pessoa).

        Tal como é consistente com a forma como se apropria, para seu próprio proveito, das ideias dos outros investigadores, sem os citar. Eis alguns exemplos, entre tantos mais, uns recolhidos por Ferrari, outros encontrados por mim:

          a) Paul Valéry – Na página 806, Zenith estabelece uma afinidade literária entre Pessoa e o Senhor Teste, de Paul Valéry, mas nunca refere que esse mesmo paralelismo foi muito antes afirmado por vários estudiosos, começando por João Gaspar Simões (Novos Temas, Ensaios de Literatura e Estética, Lisboa, Editorial Inquérito, 1938, p. 140-197; e, depois, em "Fernando Pessoa e Paul Valéry ou as afinidades ignoradas", Revue de Littérature Comparée, Paris, Vol. 19, 1 de Janeiro de 1939); passando por Jacinto do Prado Coelho (que situou a heteronomia pessoana no ambiente francês de Paul Valéry); e acabando na conferência "Paralelismos entre Edmond Teste e Bernardo Soares", que o académico brasileiro Brutus Pimentel apresentou no XI Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), em Julho de 2008.

          b) Platonismo e Cais Absoluto – Zenith discute a influência do platonismo na Ode Marítima pessoana, dizendo que Álvaro de Campos

          transcende para um universo de Formas idealizadas e invoca explicitamente o platonismo em versos que aludem ao 'cais absoluto', 'inconscientemente imitado' pelos construtores humanos de cais mundanos como aquele, em Lisboa, onde cogita sobre todas estas coisas (p. 546).

          Esqueceu-se, porém, ou fez por se esquecer, da obra do padre Manuel Antunes ("O platonismo em Fernando Pessoa", Brotéria, Fevereiro de 1964, pp. 137-148) e, sobretudo, do texto de Almeida Faria ("Pessoa que pensa Campos que sente", Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.º1, 1980, p. 108; originalmente publicado em Italiano, "Pessoa che pensa Campos che sente", Quaderni Portoghesi, n.º 2, Pisa, 1978). Nesse artigo, Almeida Faria (formado em filosofia) dizia o seguinte, utilizando os mesmos versos da Ode Marítima:

          Tipicamente platónica é toda a 'Ode Marítima', assente no arquétipo do Cais, ideia perfeita (...): 'O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado'/Insensivelmente evocado,/Nós os homens construímos/Os nossos cais nos nossos portos.

          Como Richard Zenith disse ao Expresso sobre mim, "bastava-lhe fazer uma nota de rodapé".

          c) Edvard Munch – Na página 293, Zenith considera que Alexander Search (personalidade fictícia criada por Pessoa) "apresenta algumas semelhanças com Edvard Munch (1863-1944), que viveu no terror de enlouquecer, pintou obras com títulos como 'Melancolia', 'Ansiedade' (...)". Antes dele, porém, já Malcolm Miles (Cities and Cultures, Routledge, 2007) falava do desassossego do semi-heterónimo Bernardo Soares, "whose inner life at times verges on insanity, could be compared with the anxiety of Edvard Munch's paitings and prints in the 1890's" (p. 57).

          d) Dionisíaco e Apolíneo – Quando Zenith afirma que as forças dionisíacas e apolíneas "estão personificadas em Álvaro de Campos, emocionalmente desmedido, e em Ricardo Reis, controlado pela razão" (pp. 478-479), não ignora, decerto, que antes dele já Georg Rudolf Lind (Teoria Poética de Fernando Pessoa, 1970, p. 102) defendera o mesmo: "A Grécia de Pessoa torna-se assim a personificação abstrata de certas regras cuja revivência beneficiará a arte moderna. Donde serem Ricardo Reis e Alberto Caeiro poetas apolíneos: Álvaro de Campos, o dionisíaco de entre os heterónimos". Onde está a citação, o crédito no rodapé?

          e) Nietzsche  Depois, Zenith discute (p. 744) a atitude "infantil" de Alberto Caeiro e diz que ela nos remete para o Assim Falava Zaratustra de Nietzsche, em particular para o discurso inicial sobre "As três metamorfoses".

          Para um biógrafo tão cioso das notas de rodapé, é surpreendente que se tenha esquecido de avisar os leitores de que essa mesma ideia fora defendida (antes dele) por André Boniatti (em "Apontamentos sobre a Presença do Pensamento de Nietzsche na Poesia de Alberto Caeiro", capítulo incluído na colecção de ensaios Nietzsche e Pessoa, organizada por Bartholomew Ryan, Marta Faustino e Antonio Cardiello, e editada pela Tinta-da-China, em 2016). Aí, na página 214, Boniatti, referindo-se à criança que veio habitar a alma de Caeiro, diz que "é notória a relação que podemos fundar entre essa ideia e os apontamentos metamórficos do primeiro discurso de Assim Falava Zaratustra (logo após o prólogo), 'Das Três Metamorfoses', quando ali aponta que o homem ou a história passam por três transformações, que iniciam no camelo, depois passam ao leão e, finalmente, à criança".

          f) Dickens – Sobre o autor fictício "Pi", inventado pelo poeta português, Zenith afirma, como se tivesse sido ele o primeiro a descobri-lo, que esse nome foi "pedido emprestado ao herói em ascensão de Grandes Esperanças, uma das personagens mais memoráveis de Dickens" (p. 156).

          Acontece que essa descoberta pertence, por inteiro, exclusivamente, a Patricio Ferrari: "The protagonist of Dickens’ Great Expectations, the young orphan Pip, yearning for a more distinguished lifestyle, could be at the origin of this early pre-heteronym" (Patricio Ferrari, “On the Margins of Fernando Pessoa’s Private Library: A Reassessment of the Role of Marginalia in the Creation and Development of the Pre-heteronyms and in Caeiro’s Literary Production”, Luso-Brazilian Review, vol. 48, nº 2, 2011, p. 28). Uma vez mais, pergunta-se: onde está o crédito, em nota de rodapé?

          g) Chatterton – No âmbito da discussão em torno dos heterónimos, Zenith afirma que alguns estudiosos de Pessoa os encaram como "um embuste literário similar à criação por Thomas Chatterton de Thomas Rowley, um monge fictício do século XV a coberto de cujo nome o talentoso e imaginativo adolescente setecentista de Bristol produzia poesia medieval falsa, enquanto sob o seu próprio nome escrevia em inglês coevo" (p. 491).

          Ora, a eventual influência de Thomas Chatterton na heteronímia pessoana já tinha sido discutida, muito antes, por Patricio Ferrari (veja-se “A Biblioteca de Fernando Pessoa na génese dos heterónimos: (Dispersão e catalogação 1935-2008); A arte da leitura (1898-1907)”, em Jerónimo Pizarro, org., O Guardador de Papéis, Texto Editores, 2009. pp. 155-218).

          h) Max Stirner – Um pouco mais além, na sua biografia (pp. 709-710), Zenith refere a influência de Max Stirner em O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, sem nunca mencionar que outros, no passado, já o tinham feito: Fernando Luso Soares, no prefácio à antologia por si organizada (Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista e outros contos de raciocínio, Editora Lux, 1964); Maria do Carmo Castelo Branco, "O Caso Policial: Classificações e Argumentos" (Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2006, p. 16); ou Patricio Ferrari e Bernard Kast, “Nichts und Mittelpunkt der Welt. Der Einfluss Max Stirners auf Fernando Pessoa“, Der Einzige. Jahrbuch der Max-Stirner-Gesellschaft, Maurice Schuhmann, 2010, 212-44 (consultável em http://www.max-stirner-archiv-leipzig.de/jahrbuecher.html).

          i) Pessoa e a língua alemã – "(...) Pessoa decidiu que seria útil aprender alemão. (...) Era o final de Abril, e em meados de Maio já tinha conseguido ler, com considerável esforço, um pequeno poema de Schiller no original; mas aqui terminaram os seus esforços para dominar mais um idioma. Leria Schiller, Goethe, Heine e outros autores alemães, bem como filósofos da mesma nacionalidade, tanto em inglês como em francês", diz Zenith na página 258 –, não lhe faria mal nenhum ter citado o trabalho de Claudia J. Fischer (“Fernando Pessoa, leitor de Schiller. Uma aproximação à língua alemã”, REAL — Revista de Estudos Alemães, n.º 1, Julho de 2010, pp. 54-70): "Porém, a 11 de Maio do mesmo ano (1906), os seus modestos conhecimentos do alemão já lhe oferecem condições, ainda que com dificuldade, para a leitura de um pequeno poema no original, não de Goethe mas de Schiller".

          j) Angioletti – No que toca a Giovanni Angioletti, a personalidade fictícia inventada por Pessoa a partir de um nome italiano verdadeiro, Zenith diz (numa raquítica nota escondida nas letras microscópicas do final do livro) que essa descoberta foi revelada por José Barreto ("Mussolini é um louco: uma entrevista desconhecida de Fernando Pessoa com um antifascista italiano", Pessoa Plural, 2012), mas nunca admite que quase todo o material biográfico que utiliza nas páginas 773-774 (o melhor e o essencial sobre o Angioletti da vida real) foi retirado do referido artigo de José Barreto, o investigador que primeiro chegou a todos aqueles dados. Um exemplo. Na página 1121, Zenith informa-nos, sem citar (apesar de ser um abalizado especialista em notas de rodapé), que "O verdadeiro Angioletti, tal como o falso crítico, nunca publicou nada na Mercure de France, mas a sua primeira 'Italian Chronicle' tinha saído recentemente em The Criterion, de T. S. Eliot (no número de Junho de 1926)".

          Muito antes de Zenith, já em 2012, Barreto revelara isso mesmo: "Sabemos, porém, que o verdadeiro G. B. Angioletti foi colaborador, precisamente a partir de Junho de 1926, da revista literária inglesa The Criterion, dirigida por T. S. Eliot, na qual publicou anualmente, até 1933, uma 'Italian Chronicle' (Fortunato, 2004, 12 e segs). Terá sido na Criterion que Pessoa descobriu o nome de Angioletti?".

          l) Madge Anderson – Zenith recorre sistematicamente a este tipo de estratagema. No capítulo 74, quando fala da vinda de Madge Anderson a Portugal (a hipotética "última paixão" de Fernando Pessoa), Zenith cita a página de Internet onde consta a lista de passageiros do navio que trouxe a inglesa a Lisboa, mas não admite que foi buscar essa informação a José Barreto ("A última paixão de Fernando Pessoa", Pessoa Plural, 2017, p. 602).

          Diz que Madge pertenceu à equipa de descodificadores de Bletchey Park, ligada ao Foreign Office, mas não remete para o artigo de Barreto.

          Transcreve (pág. 604) o rascunho de uma carta de Pessoa para Madge (sem data, mas que Barreto presume ser do fim do Verão ou princípio do Outono de 1935), sem nunca referir que essa carta foi publicada, pela primeira vez, naquele artigo de José Barreto.

          Para todos estes casos, e para os anteriores, onde é que estão as notas de rodapé de Zenith? Sem elas, é o mesmo que Zenith dizer que foi ele o primeiro a descobrir todas aquelas informações e o primeiro a estabelecer todas aquelas afinidades literárias.

          Por aqui se pode fazer uma ideia (havia mais a apontar, os exemplos são copiosos e variados) de como Richard Zenith despreza os trabalhos dos seus colegas pessoanos, para os quais parece olhar apenas como concorrentes e adversários, isto apesar de se servir largamente deles. Ou seja, e em suma: em trinta anos, Zenith não mudou, nem no carácter, nem na forma de trabalhar. Pelo contrário: refinou os vícios, amplificou as falhas e o modo de proceder. Porquê? Porque sabe ser impune, num país onde a crítica é fraca e a coragem escassa. Se nada lhe aconteceu quando foi denunciado em 1992 por Teresa Sobral Cunha, porque não continuar, reincidir mais e mais?

        Como me disse José Barreto, em conversa telefónica que me autorizou a reproduzir: "Zenith evita sistematicamente citar os autores e as fontes que lhe podem fazer sombra, valendo-se de mil artimanhas para não ter de os nomear".

         Uma dessas artimanhas consiste em esconder as referências nas notas finais, não as citando depois na bibliografia final. Zenith não faz isso apenas com os textos de José Barreto, mas também com investigadoras como Ana Maria Freitas, nomeadamente com o artigo onde esta autora revelou, pela primeira vez, a existência de um texto de Pessoa sobre a questão do cacau em São Tomé e Príncipe: "Fernando Pessoa e a Polémica Cadbury", Revista de Estudos Anglo-Portugueses, n.º 23, FCSH/UNL, 2014, pp. 349-358). É só um exemplo, mais um, entre muitos.

       Assim, quando não foi o primeiro a publicar um documento inédito de Pessoa, Zenith tende a remeter esses textos para o arquivo da Biblioteca Nacional e raramente cita quem os publicou antes dele (fazendo-os assim passar por fontes completamente inéditas).

          Alguns exemplos:

          i) Zenith cita textos de António Mora (pp. 530-531), mas nunca os remete para a edição de Luís Filipe B. Teixeira (Obras de António Mora, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002).

        ii) Refere os poemas franceses de Alexander Search (p. 267), mas não diz aos leitores que os mesmos foram transcritos, anotados e publicados por Patricio Ferrari, em colaboração com Patrick Quillier (Poèmes français, Éditions de la Différence, 2014).

        iii) Cita os poemas ingleses de The Mad Fliddler (pp. 407 e 568-569), mas não esclarece que foram publicados em 1999, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (Poemas Ingleses. The Mad Fiddler, edição de Marcus Angioni e Fernando Gomes).

          iv) Refere o panfleto Carta a Um Herói Estúpido (p. 563), mas não faz nenhuma referência ao facto de Jerónimo Pizarro o ter publicado nas edições Ática, em 2010.

          v) Transcreve uma carta de Pessoa sobre a loucura (p. 617), da qual se limita a dar (nas notas finais) o número de cota do espólio pessoano, mas esconde que essa mesma correspondência foi publicada por Samuel Dimas (A intuição de Deus em Fernando Pessoa, Edições Didaskalia, 1998) e, mais recentemente, por Jerónimo Pizarro (Fernando Pessoa, Entre Génio e Loucura, INCM, 2007).

        Richard Zenith, o exigentíssimo cultor das notas de rodapé, faz de conta que estas edições dos manuscritos de Pessoa não existem, para esconder o trabalho dos colegas. No entanto, quando é ele o primeiro a publicar um inédito de Pessoa, nunca se esquece de nos dar nota desse facto, seja nas notas finais, seja no corpo do texto, como na página 615: "Estas palavras, publicadas aqui pela primeira vez".

        Em relação a alguns investigadores portugueses, Zenith omite-os intencionalmente, relega-os para os porões do esquecimento. Tanto Teresa Sobral Cunha (a mesma que o acusou de se apropriar do seu trabalho intelectual), como Maria Aliete Galhoz são praticamente ignoradas, apesar de, por junto, terem assinado perto de 40 obras de e sobre Fernando Pessoa.

         Sobre a importância do trabalho de Aliete Galhoz, basta citar as palavras de Robert Bréchon na sua biografia de Pessoa, a ela se referindo como investigadora "exemplar", autora de livros que permaneceram durante muitos anos como obras de referência (p. 587 e 597), ou reproduzir o que Manuela Nogueira, sobrinha de Pessoa, me disse em entrevista: "a Maria Aliete Galhoz é seriíssima".

      O mesmo em relação a Jacinto do Prado Coelho, o responsável pela primeira edição do Livro do Desassossego. Em três ocasiões se lhe refere implicitamente, sem nunca o nomear: "(...) a edição inaugural portuguesa só foi publicada em 1982" (p. 26); "(...) até que a primeira edição póstuma visse a luz do dia, em 1982" (p. 951); "A Ática continuou a publicar volumes da prosa de Pessoa, assim como mais poesia, nas décadas seguintes, e o Livro do Desassossego em 1982" (p. 1047).

       A referência completa a essa "edição inaugural", que Zenith esconde, é esta: "Livro do Desassossego por Bernardo Soares, organização e prefácio de Jacinto do Prado Coelho, recolha e transcrição dos textos por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, Edições Ática, 1982".

     Se isto não é a prova clara de que Richard Zenith omite deliberada e conscientemente o nome de Jacinto do Prado Coelho como primeiro editor do Livro do Desassossego, estamos conversados.



                O pénis de Pessoa



         Outra coisa. Zenith resguarda a sua biografia sob a capa de uma linguagem que se pretende rigorosamente fundamentada em fontes, como se nada nela escapasse a toda a verificação científica, mas só na aparência. Porque Zenith acabou por reconhecer, na reportagem do Expresso, que a sua biografia também inclui partes ficcionais e que, em certos episódios, enveredou pelo caminho da efabulação. 

      A questão é que nada disso foi explicado aos leitores que, antes da reportagem do Expresso, compraram a biografia editada pela Quetzal. Pois o nosso biógrafo, desdobrado em romancista, não os informa em nenhum momento do seu livro, nem sequer numa simples nota de rodapé. "Quanta ficção cabe numa biografia?" - perguntou Leiderfab no Expresso. Zenith que responda.

      Na descrição do episódio em que a mãe de Pessoa conhece o segundo marido (e futuro padrasto de Pessoa), Zenith, apesar de não se basear em factos comprovados, remete o leitor para um livro de Eduardo Freitas da Costa (primo de Fernando Pessoa), onde aquele, respondendo à biografia de João Gaspar Simões, o acusa, precisamente, de ter romanceado a vida de Pessoa. Apesar disso, e contra o próprio Eduardo Freitas da Costa (que era avesso a este tipo de devaneios criativos), Zenith nunca revela ao leitor que se trata de uma recriação literária e fictícia.

    Nisto, como noutros pontos, Zenith não resiste a pisar terrenos puramente especulativos, como quando dá por absolutamente garantido que Pessoa... morreu virgem. (sobre esta questão, cf. Diogo Ramada Curto, "Motim literário Zenith-George: último episódio", Contacto, 24/2/2023.)

       Segundo José Barreto, no comentário que publicou no blogue Malomil, "ninguém pode afirmar que Pessoa morreu virgem. Francisco Peixoto Bourbon, que foi amigo de Pessoa, testemunhou em sentido contrário. Mas Zenith resolveu simplesmente ignorar esse depoimento, porque prefere que Pessoa tenha morrido queer e virgem a ter frequentado um bordel da Rua do Ferragial".

         Com efeito, em 15 de Julho de 1983, Francisco Peixoto Bourbon, amigo e próximo de Pessoa e da sua família, com quem conviveu durante vários anos, publicou no jornal Cidade de Tomar a seguinte história:

          Um dia por parte dos componentes da tertúlia fomos para um bordel da Rua do Ferragial. Fernando Pessoa não nos acompanhou. E com surpresa minha vim a descobrir que frequentava o dito bordel e até nele tinha uma apaixonada. Ora tornou-se visível que se nos tivesse acompanhado se descobriria parte da sua vida privada e esta última para Fernando Pessoa era sagrada e não devia ser violada. Assim como respeitava a vida privada dos outros e nela, de forma alguma, se imiscuía, também não suportava que lhe devassassem a sua.

       Sabe-se lá porquê, ou com que fundamento, Zenith considera todos os textos de Peixoto Bourbon "muito pouco fiáveis". Este, em particular (sobre a amante de Pessoa numa casa de má nota), reputa-o mesmo de "implausível".

         Em contrapartida, e vá lá saber-se também porquê, Zenith sente-se à-vontade para discutir o tamanho do pénis de Pessoa, com base apenas no "diz-que-disse".

          Na página 1008, provavelmente com o auxílio da sua lupa de empírico especialista em Pessoa, Zenith reduz os estudos de género à sua dimensão mais caricata:

          Tanto Botto como Leal (...) afirmaram que Pessoa tinha um pénis pequeno, o que não quer dizer que o tenham visto alguma vez nu. 'Quando se olhava para as entrepernas dele', explicou Leal, 'não se conseguia ver lá nada'. E isso, tendo em conta que Pessoa não usava calças justas, significa simplesmente que Leal nunca detectou nele uma erecção. Os tais 'ímpetos violentos da carne', como Pessoa afirmou, talvez não fossem assim tão violentos.

       Apostado em esclarecer-nos a fundo sobre este tema fundamental — a região do baixo-ventre de Fernando António Nogueira Pessoa —, Zenith vence o passo que vai da biografia académica ao voyeurismo maroto:

          Os comentários de Botto em relação ao interesse de Pessoa por rapazes novos e a um pénis alegadamente pequeno foram divulgados por Jorge de Sena (1948, p. 431). O poeta Herberto Helder (1930-2015) repetiu-me mais de uma vez que Raul Leal lhe contou a propósito do tamanho do pénis de Pessoa (p. 1138, nota 5).

      Zenith escapelizou tudo, absolutamente tudo, e concluiu o quê? Que Fernando Pessoa – pois que dúvida – tinha um pénis pequeno... Pergunta-se, então: o que seria se, na biografia de uma escritora famosa, se discutisse o tamanho dos seus seios ou o aspecto da sua vagina? É possível, até provável, que daqui a alguns anos a sua biografia de Pessoa, esmagadora e douta, com mais de mil páginas, seja recordada e estudada pelos especialistas como a “biografia do pénis” ou, nas academias anglo-americanas, como Pessoa: Biography of the Penis.  


          Enganos de um pessoano


          Na reportagem do Expresso, Richard Zenith aponta-me alguns erros comezinhos. Diz ele que Gandhi "não se manteve em Durban até 1914, como o livro de George reclama, mas viveu em Joanesburgo e depois no Phoenix Settlement"; que o nome da governanta de Pessoa era Claudina e não Clara Alves Claudino; ou que nunca houve telefone na casa da Rua Coelho da Rocha, como eu defendo no meu livro.

Ora ouçamos o que diz Manuela Nogueira, na entrevista que me concedeu em Novembro de 2021, na qual me explicou que, num primeiro momento, Pessoa usava o telefone das vizinhas do lado (familiares de Jorge de Sena), mas que, depois, "tivemos telefone também, como toda a gente". Em recente conversa telefónica, a sobrinha de Pessoa reiterou o que me disse e, sobre a afirmação de Zenith, respondeu ironicamente: "Pelos vistos, ele [Richard Zenith] sabe mais do que eu...".

         Nenhuma obra está isenta de erros, mas Zenith deveria saber, ou ter a humildade de reconhecer, que a sua não é excepção. Na página 728, afirma ele que Pessoa "tinha saudades de comer as refeições preparadas em casa pela irmã". A propósito desta afirmação, disse-me também, categoricamente, Manuela Nogueira: "Isso é mentira. A minha mãe, felizmente, nunca precisou de estar na cozinha, porque havia dinheiro suficiente para ter empregada".

         Depois, a biografia enferma de imprecisões, como afirmar que o texto La France en 1950, da personalidade fictícia Jean Seul, pode ser lido como "uma espécie de texto precursor de Mil Novecentos e Noventa e Quatro, de George Orwell" (p. 323). Ou esta, que li às gargalhadas (obrigado Joana Morais Varela), segundo a qual Pessoa, numa das suas cartas, "solicitava informações a um vendedor parisiense de máquinas de escrever e fotocopiadoras" (p. 263). Fotocopiadoras nessa altura, Richard Zenith?!? As fotocopiadoras foram inventadas em 1938, Pessoa morreu em 1935.


          As “semelhanças flagrantes” de Luciana Leiderfab

 

      Umas breves palavras finais sobre o trabalho da jornalista Luciana Leiderfarb no Expresso. Na sua reportagem sobre O Super-Camões. Biografia de Fernando Pessoa, Leiderfarb recorre a um eufemismo (ou variante eufemística) – "semelhanças flagrantes" – para propositadamente deixar pairar nos leitores do jornal a suspeição de que o meu livro plagia ou segue de muito perto a biografia de Richard Zenith.

         No exigentíssimo critério de Leiderfarb, quando digo, no meu livro, que o Cabo Agulhas é “onde o Atlântico termina e o Índico começa”, deveria ter citado Zenith, pois este, sobre o mesmo acidente geográfico, dissera: “Cabo Agulhas, onde oficialmente o Atlântico acaba e o Índico começa” (obviedade que Zenith, como expliquei à jornalista, parece ter ido buscar a uma obra sobre... submarinos no Índico).

         A benefício de inventário, pergunto: e se de repente formos ler alguns textos de Luciana Leiderfarb no Expresso e os submetermos ao seu implacável crivo das "semelhanças flagrantes"?

          Vejamos então alguns exemplos, tirados ao acaso:


          a) Em 12 de Junho de 2022, sobre uns cadernos inéditos de Picasso exibidos numa exposição do Museu Picasso de Paris, Leiderfarb escreveu no Expresso:

          De imediato, mostrou-os à mãe, hoje com 86 anos, que os reconheceu de imediato. 'Ela disse: 'Claro, estes são os cadernos de desenho de quando eu era pequena.' Foi um momento muito comovente, não só porque estamos a falar de um dos maiores artistas mas também porque isto torna-o muito humano", contou Diana Widmaier-Picasso ao Observer.

          Um dia antes (11 de Junho de 2022), o jornal The Guardian dizia:

          Intrigued, she showed them to her mother, now 86, for whom memories came flooding back. Widmaier-Ruiz-Picasso told the Observer: 'She said, ‘Of course, those are my sketchbooks when I was little’. We tend to be very visual in the family so immediately she was plunged into that time. It was a very moving moment, not only because you’re talking about one of the greatest artists but also because it made it very human. I was excited. Then I was moved.

          No mesmo artigo, afirma Leiderfarb, sem citar a fonte:

          Esta recorda igualmente as revelações da mãe sobre o facto de, à época, devido ao eclodir da II Guerra Mundial, haver falta de lápis e de cadernos. 'É provavelmente por essa razão que o meu pai escreveu tanto nos meus livros de esboços e pintou com os meus lápis. Ainda tenho memórias ternurentas desses momentos em que nos reuníamos na cozinha para desenharmos juntos. Era o único sítio quente do apartamento', disse Maya à filha Diana.

          E o The Guardian:

          Maya particularly remembers that, during the second world war, colour pencils and notebooks were in short supply: 'That’s probably why my father wrote in my exercise books and coloured with my pencils. I still have fond memories of those moments when we met up in the kitchen to draw together. It was the only place in the apartment where it was warm'.


         b) Um ano antes, em 23 de Maio de 2021, Luciana Leiderfarb escreveu uma notícia sobre um romance desconhecido de John Steinbeck, também a partir de um artigo do The Guardian

          Escreveu então a jornalista portuguesa:

          Gavin Jones dirigiu aos proprietários do espólio do autor um pedido de edição da obra, redigida uma década antes de As Vinhas da Ira, a magnum opus onde Steinbeck analisa a Grande Depressão e disseca a vida dos trabalhadores rurais migrantes.

          E no jornal inglês, de 22 de Maio de 2021:

          Now a British academic is calling for the Steinbeck estate to finally allow the publication of the work, written almost a decade before masterpieces such as The Grapes of Wrath, his epic about the Great Depression and the struggles of migrant farm workers.

          Mais adiante, continua Leiderfarb:

          Com 233 páginas escritas à máquina, conservadas nos arquivos do Centro Harry Ransom, na Universidade do Texas, desde a tentativa frustrada de as publicar há já mais de 90 anos, a história centra-se numa Califórnia costeira e ficcional, onde uma onda de assassinatos perpetrados à luz da lua cheia enchem de medo uma comunidade. O original inclui mesmo duas ilustrações de Steinbeck a reproduzirem a planta do prédio onde as mortes acontecem e os locais onde os corpos foram encontrados.

          E o The Guardian:

          The 233-page typescript has been stored in the vast archives of the Harry Ransom Center at the University of Texas in Austin after Steinbeck’s unsuccessful attempt to have it published more than 90 years ago. Set in a fictional Californian coastal town, Murder at Full Moon tells the story of a community gripped by fear after a series of gruesome murders takes place under a full moon. (...) The typescript even has two illustrations by Steinbeck. They depict the floorplan of the building where the murders took place, including the victims’ bodies.


         c) Na revista do Expresso de 2 de Março de 2019 (pp. 47-51), Leiderfarb assina um longo artigo sobre a vida e a obra do escritor de ficção científica Isaac Asimov. A dada altura (p. 50), a jornalista declara textualmente:

          Asimov, na altura a preparar tese de doutoramento e receoso de ferir suscetibilidades no seio da academia, pediu ao editor que o publicasse sob pseudónimo — o que não aconteceu. No fim da sua dissertação, um dos avaliadores dirigiu-lhe a palavra: 'O que pode dizer-nos, Sr. Asimov, sobre as propriedades termodinâmicas do composto conhecido por thiotimoline?' Um ataque de riso fez com que o autor, tomado pelo nervosismo, tivesse de deixar a sala. Quando voltou, foi cumprimentado como 'Dr. Asimov'.

          Faça-me agora o leitor o obséquio de me acompanhar até à página da Wikipedia inglesa sobre Isaac Asimov:

          At the time, Asimov was preparing his own doctoral dissertation, and for the oral examination to follow that. Fearing a prejudicial reaction from his graduate school evaluation board at Columbia University, Asimov asked his editor that it be released under a pseudonym, yet it appeared under his own name. Asimov grew concerned at the scrutiny he would receive at his oral examination, in case the examiners thought he wasn't taking science seriously. At the end of the examination, one evaluator turned to him, smiling, and said, 'What can you tell us, Mr. Asimov, about the thermodynamic properties of the compound known as thiotimoline'. Laughing hysterically with relief, Asimov had to be led out of the room. After a five-minute wait, he was summoned back into the room and congratulated as 'Dr. Asimov'. (https://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov)

          No mesmo artigo, há frases em que Leiderfarb diz serem da sua lavra, como esta:

          E haverá oportunidade para cada jovem, e mesmo cada pessoa, aprender tudo aquilo que quer, no seu tempo e ritmo próprios, e à sua maneira.

          A qual, na verdade, é do próprio Asimov, publicada em 31 de Dezembro de 1983 no jornal The Star:

          There will be an opportunity finally for every youngster, and indeed, every person, to learn what he or she wants to learn. in his or her own time, at his or her own speed, in his or her own way. (aqui)

  

      d) Um último exemplo, retirado de uma recensão de Luciana Leiderfarb à biografia de Hannah Arendt (2021), de Samantha Rose Hill.

       Em 14 de Outubro de 2022, escrevia a jornalista do Expresso que qualquer pensador deve estar disposto a começar de novo e Samantha Rose Hill, no seu livro (pág. 9 da versão original em inglês), diz assim: the work of understanding (...) it requires one to always be ready to begin again.

         Noutra passagem do seu artigo, Leiderfarb afirma:

          Em 1933 abandonou a filosofia académica para se concentrar no pensamento político. (...) Criticava os académicos que cegaram perante o advento do nacional-socialismo.

          E, na biografia de Hannah Arendt, diz Samantha Rose Hill (p. 9):

          After the burning of the Reichstag in 1933, Arendt left the world of academic philosophy to do the work of political thinking, (...) She was appalled by how the ‘professional thinkers’ had been blind to the rise of National Socialism.

          Enfim:        

          i)

          Eleito reitor em Freiburg, Heidegger assinaria a destituição dos docentes que não fossem de ‘ascendência ariana' (Luciana Leiderfarb)

          Heidegger was elected as Rector of the University of Freiburg and signed an order to dismiss all faculty not of ‘Aryan Descent’ (Samantha Rose Hill, p. 40)

          ii)

          Karl Jaspers apresentou-lhe 'uma nova forma de pensamento filosófico', orientada para o mundo. Ao contrário de Heidegger, que via a filosofia como um ato solitário, Jaspers defendia um modo de pensar 'dialogal e plural' (Luciana Leiderfarb)

      Jaspers’s work introduced Arendt to a new form of philosophical thinking that oriented her towards the world. Unlike Heidegger, who understood thinking to be a solitary enterprise about the self, Jaspers’s work on thinking was dialogic and plural (Samantha Rose Hill, p. 43).

         Que terá a dizer a tão exigente Leiderfarb sobre estas estranhas "coincidências"? Ao que se vê, a repórter do Expresso que levianamente me acusou de "semelhanças flagrantes", é a mesmíssima jornalista que, nos seus textos, se entrega a múltiplas apropriações, a sucessivas paráfrases e a cópias integrais de frases ou de parágrafos inteiros retirados de jornais, de livros e até de páginas da Wikipedia.

          

            Pouco há a estranhar de uma jornalista que arrecadou o Prémio Gazeta, em 2017, com uma reportagem intitulada "O Nome do Pai" (Expresso, 13/8/2016), em que entrevista cinco descendentes de dirigentes nazis, que já antes tinham prestado depoimentos a Gerald L. Posner (Os Filhos de Hitler, Editorial Notícias, 1996), a Tania Crasnianski (Enfants de nazis, Março de 2016), bem como ao documentário Hitler's Children (BBC2, 2012), nenhum dos quais é sequer mencionado na peça da jornalista portuguesa. 

       Da "reportagem" do Expresso, um cúmulo de enviesamento e má-fé, não um trabalho imparcial e isento, verdadeiramente informativo e esclarecedor para os leitores, ficam questões bem tristes.

          A primeira e óbvia constatação é que Luciana Leiderfarb, uma jornalista cultural premiada, de um semanário dito “de referência”, não fez sequer o seu trabalho de casa: como é que um indivíduo com tanto lastro e cadastro como Richard Zenith não foi investigado pelo Expresso? Bastava-lhe ter contactado outros especialistas (e não apenas Cabral Martins, amigo e colaborador de décadas de Zenith), bastava-lhe ter investigado minimamente as polémicas pessoanas para perceber a fama de que vinha precedido. Será que Luciana Leiderfab foi mais uma das vítimas de Zenith e dos seus estratagemas? Ou será, pelo contrário, que fui eu a vítima de uma vingança do Expresso, por ter denunciado em tempos os “falsos exclusivos” que Alberto Manguel publicava nas páginas da Revista?

          Quanto a Richard Zenith, disse ao Expresso, com grande jactância: "não preciso de defender a minha biografia". Pelos vistos, precisa.

 

João Pedro George