Richard Zenith: problemas desde 1992
Em 1987, quando aterrou em Lisboa, vindo de
Washington, Richard Zenith trazia consigo uma rica ideia: verter para inglês as
cantigas medievais galaico-portuguesas.
A descoberta do petróleo pessoano, e a hipótese de
traduzir o Livro do Desassossego numa editora inglesa,
fizeram-no mudar de planos. Foi assim que apareceu, logo em 1991, o The
Book of Disquietude (Carcanet Press), com tradução, organização e
prefácio de Richard Zenith, que se abalançou a esta tarefa de enorme exigência
sem nunca ter publicado nada, absolutamente nada, sobre Fernando Pessoa.
Passado pouco tempo, começaram os problemas. Em Março
de 1992, Teresa Sobral Cunha, uma das maiores especialistas na obra de Fernando
Pessoa, ligada à primeira edição do Livro do Desassossego (1982),
publicava no Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 17/3/1992, um
artigo arrasador, intitulado "Uma Edição, um Prefácio, um Tradutor",
em que, sem tirar nem pôr, acusava Zenith de se "servir" (sic) do
seu trabalho:
A
revisão de todos os originais manuscritos (que fortemente predominam sobre os
dactilografados, na selecção que apresento no vol. I da Presença) [publicado em
1990]. Nela rectifiquei leituras ou completei sentidos, nos casos de lacuna,
chegando a envolver parágrafos inteiros; nela corrigi eventuais deslizes
anteriores na organização interna de textos; nela diferentemente agrupei novos
núcleos ou expandi outros quando a isso me levaram indicações internas, ou
mesmo exógenas aos textos, e/ou uma inevitável 'cultura pessoana' de anos e
anos textualmente por dentro. De tudo isto Zenith se serviu, tudo usou e
incorporou como seu na versão que assina.
Ao longo do artigo, a organizadora do Livro do
Desassossego, Teresa Sobral Cunha, utilizava expressões como
"procedimentos que dos meus decalca"; referia partes do seu próprio
trabalho que o "tradutor faz passar por contributo original"; acusava
o americano de utilizar "a proposta ordenadora que, no meu prefácio,
anuncio para o vol. 2", que Zenith "designa por 'My own contribution'",
e de tomar "como suas aquelas características com que eu identifico esses
textos não datados".
Ou seja, cinco anos após a sua chegada a Portugal,
Zenith já estava envolvido em acusações de apropriação ilegítima do trabalho
alheio: uma das maiores autoridades em Fernando Pessoa denunciava-o
publicamente e recriminava-o por desrespeitar a propriedade intelectual das
primeiras edições portuguesas do Livro do Desassossego.
Anos depois, em 1997, a obra de Fernando Pessoa
regressou ao domínio privado. Desde 1985, atingidos os 50 anos após a sua
morte, que a obra de Pessoa estava no domínio público, mas uma nova directiva
europeia veio alargar o período de vigência dos direitos de autor — de 50 para
70 anos sobre a morte dos autores —, o que permitiu aos herdeiros do poeta
retirar a sua obra do domínio público, para ceder o exclusivo à Assírio &
Alvim, ficando as outras editoras impedidas de publicar todas e quaisquer obras
do autor de Mensagem.
Estranhamente, pois pouco ou quase nada havia escrito
sobre Pessoa, Zenith apareceu como responsável pela nova versão portuguesa
do Livro do Desassossego, que a Assírio & Alvim publicaria em
1998 (com o consequente direito de proibir outros editores de Pessoa de
continuarem a publicar.)
A encomenda chegava no momento certo: um ano antes,
Richard Zenith tinha acabado de traduzir o palpitante Meditações em
Ruínas, de Nuno Júdice (Meditation on ruins, Archangel, 1997), e era
preciso ampliar e reafirmar o seu poder sobre o ouro pessoano.
Entretanto, Teresa Sobral foi impedida de publicar o
2.º volume do Livro do Desassossego, na sua nova edição da Relógio
d’Água, cujo 1.º volume tinha saído em 1997.
Em 2008, três anos depois de Pessoa ter caído
novamente no domínio público, Teresa Sobral Cunha reeditou a sua versão
do Livro do Desassossego na Relógio d'Água, com uma nota apensa à introdução
(pp. 36-37). Segundo aquela investigadora, a edição da Assírio & Alvim
voltara a utilizar "as correcções, os inéditos e as propostas avançadas, poucos
meses antes (Outubro de 1997)", por si própria. E, de novo, "à sua
revelia", "mais uma vez desconsiderando direitos intelectuais".
Ou seja, e em direitas contas: Zenith apropriou-se do seu trabalho não uma,
mas duas vezes. E reiterou no delito, mesmo após ter sido exposto publicamente
no Jornal de Letras.
Naquele texto, demolidor e de grande dureza, Teresa
Sobral Cunha insistia nos argumentos acusatórios contra Zenith: o
norte-americano aproveitara-se da sua "revisão dos textos", das suas
"novas propostas de arrumação" e das suas "opções e
procedimentos", fazendo deles "indevido uso". Além disso,
incorporara livremente "a selecção documental alargada, as transcrições e
os resultados da pesquisa realizada no ano anterior para a edição da Presença,
(...) à revelia da sua única responsável e com omissão de fontes".
A rematar, dizia: "Não é este o lugar para um
inventário rigoroso dos prejuízos das edições de Richard Zenith e da
inadequação deste à actividade científica da qual é indissociável uma
deontologia a que se alheia".
Na sua ácida resposta, intitulada "Uma
desassossegada investigadora" (JL, 24/3/1992), Zenith tem o
desplante de afirmar: "não entendo o que a Dra. quer. Não gostou que eu
traduzisse a partir das suas novas leituras, quando as achei melhores (...) do
que as publicadas pela Ática? Deveria eu ter traduzido a partir de leituras
inferiores?".
Desde então, e enquanto Richard Zenith continuava a
editar e a comentar a obra de Pessoa (e a traduzir outros vultos da literatura
portuguesa, como José Luís Peixoto, etc.), foram-se avolumando os rumores de
que o norte-americano (naturalizado, entretanto, português) se aproveitava do
trabalho alheio, sem o citar ou creditar.
Nos últimos anos, no contexto desta luta pela
demonstração de competências filológicas na transcrição e fixação dos textos
pessoanos, é indiscutível que Jerónimo Pizarro se afirmou como uma das maiores
autoridades em Fernando Pessoa, a ponto de Eduardo Lourenço ter descrito o
colombiano como "o mais jovem dos heterónimos pessoanos".
Ao
jornal Público, de 12 de Agosto de 2010, Pizarro diria que as
primeiras edições de Zenith eram "muito fracas". E, mais
recentemente, José Barreto, historiador e profundo conhecedor da biografia e do
pensamento de Fernando Pessoa, sobre os quais publicou vasta obra, deixava o
seguinte comentário no blogue Malomil: "Ainda não peguei numa calculadora
para averiguar quantas vezes Zenith se esqueceu de citar, ou decidiu não citar,
ou citou mal trabalhos de outros estudiosos pessoanos que ele leu e em que se
baseou. Quem tem telhados de vidro devia estar muito caladinho" (blogue Malomil).
Em Agosto de 2021, Patricio Ferrari,
também ele grande especialista em Fernando Pessoa e membro da equipa de
Jerónimo Pizarro, elaborou um esmagador conjunto de notas para uma recensão
crítica da biografia de Richard Zenith (notas a que tive acesso graças à
generosidade de José Barreto). São nada mais nada menos que 21 páginas com 51
entradas ou ocorrências de apropriações indevidas, por parte de Zenith, do
trabalho de outros investigadores.
Nelas,
Ferrari aponta dezenas de edições de
Pessoa (livros e artigos sobre ele publicados por outros pessoanos) e obras de
sua autoria (ou em colaboração com Jerónimo Pizarro) que Zenith não menciona
nem referencia na bibliografia e/ou notas finais da biografia, apesar de nelas
se inspirar, ou de a elas ter ido buscar pistas cruciais para o seu livro.
Quando
aceitei o convite para escrever uma biografia de Fernando Pessoa (O
Super-Camões. Biografia de Fernando Pessoa, Publicações Dom Quixote) para
não académicos, que não fosse lida somente por especialistas ou peritos,
julgava que, não sendo especialista em Fernando Pessoa (mas com alguma
experiência no género biográfico), me poderia manter saudavelmente à margem das
velhas controvérsias pessoanas. Enganei-me redondamente.
Uma
reportagem da revista do jornal Expresso – "O desassossego de uma biografia", de 17 de Fevereiro – arrastou-me para esse
universo.
Nessa
peça, a jornalista Luciana Leiderfarb dava uma estranha latitude aos materiais
fornecidos por Richard Zenith, sem nunca os indagar ou aprofundar; ignorava o
meu livro, pois baseava-se unicamente nas informações transmitidas por Zenith
sobre O Super-Camões; cozinhava excertos do meu texto, para
insinuar o crime de plágio e lançar a dúvida e a incerteza sobre todo o meu
trabalho; procurava temperar a parcialidade da sua reportagem com a opinião de
um pretenso árbitro, Fernando Cabral Martins, amigo pessoal de Zenith, com quem
colabora há mais de 20 anos e com quem assinou, desde 2001, mais de 15 obras de
(e sobre) Fernando Pessoa. Tudo isto, enfim, com direito a notícia de primeira
página no nosso semanário de referência.
Em
face da situação assim criada, vi-me na obrigação de demonstrar com factos
incontroversos que tanto a jornalista, como Richard Zenith, cometeram vários
erros e acumularam contradições, sem cuidarem dos seus próprios telhados de
vidro.
Vejamos,
então.
Zenith,
um banqueiro muito anarquista
Richard
Zenith reivindica para si a propriedade intelectual de algumas ideias. Apregoa
ele, em encomiástica referência a si próprio, que é sua (e apenas sua) a
seguinte tese, de arrebatadora originalidade: o facto de Fernando Pessoa ter
sido desqualificado da bolsa Natal Exhibition (a qual teria permitido ao
português estudar numa universidade inglesa à sua escolha, presumivelmente
Cambridge ou Oxford), o "resgatou para as letras portuguesas, bem como,
genericamente, para a poesia universal (...) É possível que na Grã-Bretanha, ao
fim de alguns anos, o inglês de Pessoa se tornasse mais instintivo, adequado a
jogar à bola poeticamente”.
À
ingénua jornalista do Expresso, Zenith afirmou, e cita-se,
"nunca vi isso dito por mais ninguém".
A
verdade pura e triste, talvez dura, é que essa ideia, temos pena, já tinha sido
avançada, sem peneiras nem pretensões, por Robert Bréchon, em Estranho
Estrangeiro. Uma Biografia de Fernando Pessoa (Quetzal, 1996, p. 77):
Todos
os que o [Fernando Pessoa] amam, tanto em Portugal como noutros países, se
congratulam com a injustiça cometida pelas autoridades do Natal em 1904. 'Que
imenso favor, diz Severino [referência a
Alexandrino E. Severino e à obra Fernando Pessoa na África do Sul, Publicações
Dom Quixote, 1983], prestaram à cultura portuguesa aqueles que lhe
recusaram esse destino' (ser inglês). Pessoa como escritor unicamente inglês
teria sem dúvida sido sempre Pessoa, mas teria sido outro Pessoa, inimaginável.
De
resto, a soberba atrevida de Zenith é consistente com o menosprezo a que votou
o livro de Robert Bréchon, quando afirmou que o francês "não se preocupou em descobrir informações sobre Pessoa,
mas sim em mapear a sua vasta obra literária” (p. 1150 da biografia de Pessoa).
Tal
como é consistente com a forma como se apropria,
para seu próprio proveito, das ideias dos outros investigadores, sem os citar.
Eis alguns exemplos, entre tantos mais, uns recolhidos por Ferrari, outros
encontrados por mim:
a) Paul
Valéry – Na página 806, Zenith estabelece uma afinidade literária
entre Pessoa e o Senhor Teste, de Paul Valéry, mas nunca refere que esse mesmo
paralelismo foi muito antes afirmado por vários estudiosos, começando por João
Gaspar Simões (Novos
Temas, Ensaios de Literatura e Estética, Lisboa, Editorial Inquérito, 1938, p. 140-197; e,
depois, em "Fernando Pessoa e
Paul Valéry ou as afinidades ignoradas", Revue de Littérature Comparée, Paris, Vol. 19, 1 de Janeiro de 1939);
passando por Jacinto do Prado Coelho (que situou a heteronomia pessoana no ambiente
francês de Paul Valéry); e acabando na conferência "Paralelismos entre
Edmond Teste e Bernardo Soares", que o académico brasileiro Brutus
Pimentel apresentou no XI Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), em Julho
de 2008.
b) Platonismo
e Cais Absoluto – Zenith discute a influência do platonismo na Ode
Marítima pessoana, dizendo que Álvaro de Campos
transcende
para um universo de Formas idealizadas e invoca explicitamente o platonismo em
versos que aludem ao 'cais absoluto', 'inconscientemente imitado'
pelos construtores humanos de cais mundanos como aquele, em Lisboa, onde cogita
sobre todas estas coisas (p. 546).
Esqueceu-se,
porém, ou fez por se esquecer, da obra do padre Manuel Antunes ("O
platonismo em Fernando Pessoa", Brotéria, Fevereiro de 1964,
pp. 137-148) e, sobretudo, do texto de Almeida Faria ("Pessoa que pensa
Campos que sente", Revista da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, n.º1, 1980, p. 108; originalmente publicado em Italiano,
"Pessoa che pensa Campos che sente", Quaderni Portoghesi,
n.º 2, Pisa, 1978). Nesse artigo, Almeida Faria (formado em filosofia) dizia o
seguinte, utilizando os mesmos versos da Ode Marítima:
Tipicamente platónica é
toda a 'Ode Marítima', assente no arquétipo do Cais, ideia perfeita (...):
'O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente
imitado'/Insensivelmente evocado,/Nós os homens construímos/Os nossos cais nos
nossos portos.
Como
Richard Zenith disse ao Expresso sobre mim, "bastava-lhe
fazer uma nota de rodapé".
c) Edvard
Munch – Na página 293, Zenith
considera que Alexander Search (personalidade fictícia criada por Pessoa) "apresenta
algumas semelhanças com Edvard Munch (1863-1944), que viveu no terror de
enlouquecer, pintou obras com títulos como 'Melancolia', 'Ansiedade'
(...)". Antes dele, porém, já Malcolm Miles (Cities and Cultures, Routledge,
2007) falava do desassossego do semi-heterónimo Bernardo Soares, "whose
inner life at times verges on insanity, could be compared with the anxiety of
Edvard Munch's paitings and prints in the 1890's" (p. 57).
d) Dionisíaco e
Apolíneo – Quando Zenith afirma que as forças dionisíacas e apolíneas
"estão personificadas em Álvaro de Campos, emocionalmente desmedido, e em
Ricardo Reis, controlado pela razão" (pp. 478-479), não ignora, decerto,
que antes dele já Georg Rudolf Lind (Teoria Poética de Fernando Pessoa,
1970, p. 102) defendera o mesmo: "A Grécia de Pessoa torna-se assim a
personificação abstrata de certas regras cuja revivência beneficiará a arte
moderna. Donde serem Ricardo Reis e Alberto Caeiro poetas apolíneos: Álvaro de
Campos, o dionisíaco de entre os heterónimos". Onde está a citação, o
crédito no rodapé?
e) Nietzsche – Depois,
Zenith discute (p. 744) a atitude "infantil" de Alberto Caeiro e diz
que ela nos remete para o Assim Falava Zaratustra de
Nietzsche, em particular para o discurso inicial sobre "As três
metamorfoses".
Para
um biógrafo tão cioso das notas de rodapé, é surpreendente que se tenha
esquecido de avisar os leitores de que essa mesma ideia fora defendida (antes
dele) por André Boniatti (em "Apontamentos sobre a Presença do Pensamento
de Nietzsche na Poesia de Alberto Caeiro", capítulo incluído na colecção
de ensaios Nietzsche e Pessoa, organizada por Bartholomew Ryan,
Marta Faustino e Antonio Cardiello, e editada pela Tinta-da-China, em 2016).
Aí, na página 214, Boniatti, referindo-se à criança que veio habitar a alma de
Caeiro, diz que "é notória a relação que podemos fundar entre essa ideia e
os apontamentos metamórficos do primeiro discurso de Assim Falava
Zaratustra (logo após o prólogo), 'Das Três Metamorfoses', quando ali
aponta que o homem ou a história passam por três transformações, que iniciam no
camelo, depois passam ao leão e, finalmente, à criança".
f) Dickens –
Sobre o autor fictício "Pi", inventado pelo poeta português, Zenith
afirma, como se tivesse sido ele o primeiro a descobri-lo, que esse nome foi
"pedido emprestado ao herói em ascensão de Grandes Esperanças,
uma das personagens mais memoráveis de Dickens" (p. 156).
Acontece que essa
descoberta pertence, por inteiro, exclusivamente, a Patricio Ferrari: "The
protagonist of Dickens’ Great Expectations, the young orphan Pip,
yearning for a more distinguished lifestyle, could be at the origin of this
early pre-heteronym" (Patricio Ferrari, “On the Margins of Fernando
Pessoa’s Private Library: A Reassessment of the Role of Marginalia in the
Creation and Development of the Pre-heteronyms and in Caeiro’s Literary
Production”, Luso-Brazilian Review, vol. 48, nº 2, 2011, p. 28). Uma vez mais, pergunta-se: onde está o crédito, em
nota de rodapé?
g) Chatterton –
No âmbito da discussão em torno dos heterónimos, Zenith afirma que alguns
estudiosos de Pessoa os encaram como "um embuste literário similar à
criação por Thomas Chatterton de Thomas Rowley, um monge fictício do século XV
a coberto de cujo nome o talentoso e imaginativo adolescente setecentista de
Bristol produzia poesia medieval falsa, enquanto sob o seu próprio nome
escrevia em inglês coevo" (p. 491).
Ora,
a eventual influência de Thomas Chatterton na heteronímia pessoana já tinha
sido discutida, muito antes, por Patricio Ferrari (veja-se “A Biblioteca de
Fernando Pessoa na génese dos heterónimos: (Dispersão e catalogação 1935-2008);
A arte da leitura (1898-1907)”, em Jerónimo Pizarro, org., O Guardador
de Papéis, Texto Editores, 2009. pp. 155-218).
h) Max
Stirner – Um pouco mais além, na sua biografia (pp. 709-710), Zenith
refere a influência de Max Stirner em O Banqueiro Anarquista, de
Fernando Pessoa, sem nunca mencionar que outros, no passado, já o tinham feito:
Fernando Luso Soares, no prefácio à antologia por si organizada (Fernando
Pessoa, O banqueiro anarquista e outros contos de raciocínio,
Editora Lux, 1964); Maria do Carmo Castelo Branco, "O Caso Policial:
Classificações e Argumentos" (Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2006, p. 16); ou Patricio Ferrari
e Bernard Kast, “Nichts und Mittelpunkt der
Welt. Der Einfluss Max Stirners auf Fernando Pessoa“, Der Einzige.
Jahrbuch der Max-Stirner-Gesellschaft, Maurice Schuhmann, 2010, 212-44
(consultável em http://www.max-stirner-archiv-leipzig.de/jahrbuecher.html).
i) Pessoa
e a língua alemã – "(...) Pessoa decidiu que seria útil aprender
alemão. (...) Era o final de Abril, e em meados de Maio já tinha conseguido
ler, com considerável esforço, um pequeno poema de Schiller no original; mas
aqui terminaram os seus esforços para dominar mais um idioma. Leria Schiller,
Goethe, Heine e outros autores alemães, bem como filósofos da mesma
nacionalidade, tanto em inglês como em francês", diz Zenith na página 258
–, não lhe faria mal nenhum ter citado o trabalho de Claudia J. Fischer
(“Fernando Pessoa, leitor de Schiller. Uma aproximação à língua alemã”, REAL
— Revista de Estudos Alemães, n.º 1, Julho de 2010, pp. 54-70):
"Porém, a 11 de Maio do mesmo ano (1906), os seus modestos conhecimentos
do alemão já lhe oferecem condições, ainda que com dificuldade, para a leitura
de um pequeno poema no original, não de Goethe mas de Schiller".
j) Angioletti –
No que toca a Giovanni Angioletti, a personalidade fictícia inventada por
Pessoa a partir de um nome italiano verdadeiro, Zenith diz (numa raquítica nota
escondida nas letras microscópicas do final do livro) que essa descoberta foi
revelada por José Barreto ("Mussolini é um louco: uma entrevista
desconhecida de Fernando Pessoa com um antifascista italiano", Pessoa
Plural, 2012), mas nunca admite que quase todo o material biográfico que
utiliza nas páginas 773-774 (o melhor e o essencial sobre o Angioletti da vida
real) foi retirado do referido artigo de José Barreto, o investigador que
primeiro chegou a todos aqueles dados. Um exemplo. Na página 1121, Zenith
informa-nos, sem citar (apesar de ser um abalizado especialista em notas de
rodapé), que "O verdadeiro Angioletti, tal como o falso crítico, nunca
publicou nada na Mercure de France, mas a sua primeira 'Italian
Chronicle' tinha saído recentemente em The Criterion, de T. S.
Eliot (no número de Junho de 1926)".
Muito
antes de Zenith, já em 2012, Barreto revelara isso mesmo: "Sabemos, porém,
que o verdadeiro G. B. Angioletti foi colaborador, precisamente a partir de
Junho de 1926, da revista literária inglesa The Criterion, dirigida
por T. S. Eliot, na qual publicou anualmente, até 1933, uma 'Italian Chronicle'
(Fortunato, 2004, 12 e segs). Terá sido na Criterion que
Pessoa descobriu o nome de Angioletti?".
l)
Madge Anderson – Zenith recorre sistematicamente a este tipo de
estratagema. No capítulo 74, quando fala da vinda de Madge Anderson a Portugal
(a hipotética "última paixão" de Fernando Pessoa), Zenith cita
a página de Internet onde consta a lista de passageiros do navio que trouxe a
inglesa a Lisboa, mas não admite que foi buscar essa informação a José Barreto
("A última paixão de Fernando Pessoa", Pessoa
Plural, 2017, p. 602).
Diz
que Madge pertenceu à equipa de descodificadores de Bletchey Park, ligada ao
Foreign Office, mas não remete para o artigo de Barreto.
Transcreve
(pág. 604) o rascunho de uma carta de Pessoa para Madge (sem data, mas que
Barreto presume ser do fim do Verão ou princípio do Outono de 1935), sem nunca
referir que essa carta foi publicada, pela primeira vez, naquele artigo de José
Barreto.
Para
todos estes casos, e para os anteriores, onde é que estão as notas de rodapé de
Zenith? Sem elas, é o mesmo que Zenith dizer que foi ele o primeiro a descobrir
todas aquelas informações e o primeiro a estabelecer todas aquelas afinidades
literárias.
Por
aqui se pode fazer uma ideia (havia mais a apontar, os exemplos são copiosos e
variados) de como Richard Zenith despreza os trabalhos dos seus colegas
pessoanos, para os quais parece olhar apenas como concorrentes e adversários,
isto apesar de se servir largamente deles. Ou seja, e em suma: em trinta anos,
Zenith não mudou, nem no carácter, nem na forma de trabalhar. Pelo contrário:
refinou os vícios, amplificou as falhas e o modo de proceder. Porquê? Porque
sabe ser impune, num país onde a crítica é fraca e a coragem escassa. Se nada
lhe aconteceu quando foi denunciado em 1992 por Teresa Sobral Cunha, porque não
continuar, reincidir mais e mais?
Como
me disse José Barreto, em conversa telefónica que me autorizou a reproduzir:
"Zenith evita sistematicamente
citar os autores e as fontes que lhe podem fazer sombra, valendo-se de mil
artimanhas para não ter de os nomear".
Uma dessas artimanhas consiste
em esconder as referências nas notas finais,
não as citando depois na bibliografia final. Zenith não faz isso apenas com os
textos de José Barreto, mas também com investigadoras como Ana Maria Freitas,
nomeadamente com o artigo onde esta autora revelou, pela primeira vez, a
existência de um texto de Pessoa sobre a questão do cacau em São Tomé e
Príncipe: "Fernando Pessoa e a Polémica Cadbury", Revista de
Estudos Anglo-Portugueses, n.º 23, FCSH/UNL, 2014, pp. 349-358). É só um
exemplo, mais um, entre muitos.
Assim,
quando não foi o
primeiro a publicar um documento inédito de Pessoa, Zenith tende a remeter
esses textos para o arquivo da Biblioteca Nacional e raramente cita quem os publicou antes dele (fazendo-os assim passar por fontes completamente
inéditas).
Alguns
exemplos:
i) Zenith
cita textos de António Mora (pp. 530-531), mas nunca os remete para a edição
de Luís Filipe B. Teixeira (Obras de António Mora, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2002).
ii) Refere
os poemas franceses de Alexander Search (p. 267), mas não diz aos leitores que
os mesmos foram transcritos, anotados e publicados por Patricio Ferrari, em
colaboração com Patrick Quillier (Poèmes
français, Éditions de la Différence, 2014).
iii) Cita
os poemas ingleses de The Mad Fliddler (pp. 407 e 568-569),
mas não esclarece que foram publicados em 1999, pela Imprensa Nacional-Casa da
Moeda (Poemas Ingleses. The Mad Fiddler, edição de Marcus Angioni e
Fernando Gomes).
iv) Refere
o panfleto Carta a Um Herói Estúpido (p. 563), mas não faz
nenhuma referência ao facto de Jerónimo Pizarro o ter publicado nas edições
Ática, em 2010.
v) Transcreve
uma carta de Pessoa sobre a loucura (p. 617), da qual se limita a dar (nas
notas finais) o número de cota do espólio pessoano, mas esconde que essa mesma
correspondência foi publicada por Samuel Dimas (A intuição de Deus em
Fernando Pessoa, Edições Didaskalia, 1998) e, mais recentemente, por
Jerónimo Pizarro (Fernando Pessoa, Entre Génio e Loucura, INCM,
2007).
Richard
Zenith, o exigentíssimo cultor das notas de rodapé, faz de conta que estas
edições dos manuscritos de Pessoa não existem, para esconder o trabalho dos
colegas. No entanto, quando é ele o primeiro a publicar um inédito de Pessoa,
nunca se esquece de nos dar nota desse facto, seja nas notas finais, seja no
corpo do texto, como na página 615: "Estas palavras, publicadas aqui pela
primeira vez".
Em
relação a alguns investigadores portugueses, Zenith omite-os intencionalmente,
relega-os para os porões do esquecimento. Tanto Teresa Sobral Cunha (a mesma
que o acusou de se apropriar do seu trabalho intelectual), como Maria Aliete
Galhoz são praticamente ignoradas, apesar de, por junto, terem assinado perto
de 40 obras de e sobre Fernando Pessoa.
Sobre
a importância do trabalho de Aliete Galhoz, basta citar as palavras de Robert
Bréchon na sua biografia de Pessoa, a ela se referindo como investigadora
"exemplar", autora de livros que permaneceram durante muitos anos
como obras de referência (p. 587 e 597), ou reproduzir o que Manuela Nogueira,
sobrinha de Pessoa, me disse em entrevista: "a Maria Aliete Galhoz é
seriíssima".
O
mesmo em relação a Jacinto do Prado Coelho, o responsável pela primeira edição
do Livro do Desassossego. Em três ocasiões se lhe refere implicitamente,
sem nunca o nomear: "(...) a edição inaugural portuguesa só foi publicada
em 1982" (p. 26); "(...) até que a primeira edição póstuma visse a
luz do dia, em 1982" (p. 951); "A Ática continuou a publicar volumes
da prosa de Pessoa, assim como mais poesia, nas décadas seguintes, e o Livro
do Desassossego em 1982" (p. 1047).
A
referência completa a essa "edição inaugural", que Zenith esconde, é
esta: "Livro do Desassossego por Bernardo Soares, organização e
prefácio de Jacinto do Prado Coelho, recolha e transcrição dos textos por Maria
Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, Edições Ática, 1982".
Se
isto não é a prova clara de que Richard Zenith omite deliberada e
conscientemente o nome de Jacinto do Prado Coelho como primeiro editor do Livro
do Desassossego, estamos conversados.
O pénis de Pessoa
Outra
coisa. Zenith resguarda a sua biografia sob a capa de uma linguagem que se
pretende rigorosamente fundamentada em fontes, como se nada nela escapasse a
toda a verificação científica, mas só na aparência. Porque Zenith acabou por
reconhecer, na reportagem do Expresso, que a sua biografia também
inclui partes ficcionais e que, em certos episódios, enveredou pelo caminho da
efabulação.
A
questão é que nada disso foi explicado aos leitores que, antes da reportagem
do Expresso, compraram a biografia editada pela Quetzal. Pois o
nosso biógrafo, desdobrado em romancista, não os informa em nenhum momento do
seu livro, nem sequer numa simples nota de rodapé. "Quanta ficção cabe numa biografia?" - perguntou Leiderfab no Expresso. Zenith que responda.
Na
descrição do episódio em que a mãe de Pessoa conhece o segundo marido (e futuro
padrasto de Pessoa), Zenith, apesar de não se basear em factos comprovados,
remete o leitor para um livro de Eduardo Freitas da Costa (primo de Fernando
Pessoa), onde aquele, respondendo à biografia de João Gaspar Simões, o acusa,
precisamente, de ter romanceado a vida de Pessoa. Apesar disso, e contra o
próprio Eduardo Freitas da Costa (que era avesso a este tipo de devaneios
criativos), Zenith nunca revela ao leitor que se trata de uma recriação
literária e fictícia.
Nisto,
como noutros pontos, Zenith não resiste a pisar terrenos puramente
especulativos, como quando dá por absolutamente garantido que Pessoa... morreu
virgem. (sobre esta questão, cf. Diogo Ramada Curto, "Motim literário Zenith-George: último episódio", Contacto, 24/2/2023.)
Segundo
José Barreto, no comentário que publicou no blogue Malomil, "ninguém pode afirmar que Pessoa
morreu virgem. Francisco Peixoto Bourbon, que foi amigo de Pessoa, testemunhou
em sentido contrário. Mas Zenith resolveu simplesmente ignorar esse depoimento,
porque prefere que Pessoa tenha morrido queer e virgem a ter
frequentado um bordel da Rua do Ferragial".
Com
efeito, em 15 de Julho de 1983, Francisco Peixoto Bourbon, amigo e próximo de
Pessoa e da sua família, com quem conviveu durante vários anos, publicou no
jornal Cidade de Tomar a seguinte história:
Um
dia por parte dos componentes da tertúlia fomos para um bordel da Rua do
Ferragial. Fernando Pessoa não nos acompanhou. E com surpresa minha vim a
descobrir que frequentava o dito bordel e até nele tinha uma apaixonada. Ora
tornou-se visível que se nos tivesse acompanhado se descobriria parte da sua
vida privada e esta última para Fernando Pessoa era sagrada e não devia ser
violada. Assim como respeitava a vida privada dos outros e nela, de forma
alguma, se imiscuía, também não suportava que lhe devassassem a sua.
Sabe-se
lá porquê, ou com que fundamento, Zenith considera todos os textos de Peixoto
Bourbon "muito pouco fiáveis". Este, em particular (sobre a amante de
Pessoa numa casa de má nota), reputa-o mesmo
de "implausível".
Em
contrapartida, e vá lá saber-se também porquê, Zenith sente-se à-vontade para
discutir o tamanho do pénis de Pessoa, com base apenas no
"diz-que-disse".
Na
página 1008, provavelmente com o auxílio da sua lupa de empírico especialista
em Pessoa, Zenith reduz os estudos de género à sua dimensão mais caricata:
Tanto Botto como Leal (...) afirmaram que Pessoa tinha
um pénis pequeno, o que não quer dizer que o tenham visto alguma vez nu.
'Quando se olhava para as entrepernas dele', explicou Leal, 'não se conseguia
ver lá nada'. E isso, tendo em conta que Pessoa não usava calças justas,
significa simplesmente que Leal nunca detectou nele uma erecção. Os tais
'ímpetos violentos da carne', como Pessoa afirmou, talvez não fossem assim tão
violentos.
Apostado
em esclarecer-nos a fundo sobre este tema fundamental — a região do
baixo-ventre de Fernando António Nogueira Pessoa —, Zenith vence o passo que
vai da biografia académica ao voyeurismo maroto:
Os
comentários de Botto em relação ao interesse de Pessoa por rapazes novos e a um
pénis alegadamente pequeno foram divulgados por Jorge de Sena (1948, p. 431). O
poeta Herberto Helder (1930-2015) repetiu-me mais de uma vez que Raul Leal lhe
contou a propósito do tamanho do pénis de Pessoa (p. 1138, nota 5).
Zenith
escapelizou tudo, absolutamente tudo, e concluiu o quê? Que Fernando Pessoa –
pois que dúvida – tinha um pénis pequeno... Pergunta-se, então: o que seria se, na biografia de uma escritora famosa, se discutisse o tamanho dos seus seios ou o aspecto da sua vagina? É possível, até provável, que daqui
a alguns anos a sua biografia de Pessoa, esmagadora e douta, com mais de mil
páginas, seja recordada e estudada pelos especialistas como a “biografia do
pénis” ou, nas academias anglo-americanas, como Pessoa: Biography of
the Penis.
Enganos
de um pessoano
Na
reportagem do Expresso, Richard Zenith aponta-me alguns erros
comezinhos. Diz ele que Gandhi "não
se manteve em Durban até 1914, como o livro de George reclama, mas viveu em
Joanesburgo e depois no Phoenix Settlement"; que o nome da governanta de Pessoa era Claudina e não
Clara Alves Claudino; ou que nunca houve telefone na casa da Rua Coelho da
Rocha, como eu defendo no meu livro.
Ora ouçamos o que
diz Manuela Nogueira, na entrevista que me concedeu em Novembro de 2021, na
qual me explicou que, num primeiro momento, Pessoa usava o telefone das
vizinhas do lado (familiares de Jorge de Sena), mas que, depois, "tivemos
telefone também, como toda a gente". Em recente conversa telefónica, a
sobrinha de Pessoa reiterou o que me disse e, sobre a afirmação de Zenith,
respondeu ironicamente: "Pelos vistos, ele [Richard Zenith] sabe mais do
que eu...".
Nenhuma
obra está isenta de erros, mas Zenith deveria saber, ou ter a humildade de
reconhecer, que a sua não é excepção. Na página 728, afirma ele que Pessoa
"tinha saudades de comer as refeições
preparadas em casa pela irmã". A propósito desta afirmação, disse-me
também, categoricamente, Manuela Nogueira: "Isso é mentira. A minha mãe,
felizmente, nunca precisou de estar na cozinha, porque havia dinheiro
suficiente para ter empregada".
Depois,
a biografia enferma de imprecisões, como afirmar que o texto La France
en 1950, da personalidade fictícia Jean Seul, pode ser lido como "uma
espécie de texto precursor de Mil Novecentos e Noventa e
Quatro, de George Orwell" (p. 323). Ou esta, que li às
gargalhadas (obrigado Joana Morais Varela), segundo a qual Pessoa, numa das
suas cartas, "solicitava informações a um vendedor parisiense de máquinas
de escrever e fotocopiadoras" (p. 263). Fotocopiadoras nessa altura,
Richard Zenith?!? As fotocopiadoras foram inventadas em 1938, Pessoa morreu em
1935.
As
“semelhanças flagrantes” de Luciana Leiderfab
Umas
breves palavras finais sobre o trabalho da jornalista Luciana Leiderfarb
no Expresso. Na sua reportagem sobre O Super-Camões.
Biografia de Fernando Pessoa, Leiderfarb recorre a um eufemismo (ou
variante eufemística) – "semelhanças flagrantes" – para
propositadamente deixar pairar nos leitores do jornal a suspeição de que o meu
livro plagia ou segue de muito perto a biografia de Richard Zenith.
No
exigentíssimo critério de Leiderfarb, quando digo, no meu livro, que o Cabo
Agulhas é “onde
o Atlântico termina e o Índico começa”, deveria ter citado Zenith, pois este,
sobre o mesmo acidente geográfico, dissera: “Cabo Agulhas, onde oficialmente o
Atlântico acaba e o Índico começa” (obviedade que Zenith, como expliquei à
jornalista, parece ter ido buscar a uma obra sobre... submarinos no Índico).
A
benefício de inventário, pergunto: e se de repente formos ler alguns textos de
Luciana Leiderfarb no Expresso e os submetermos ao seu
implacável crivo das "semelhanças flagrantes"?
Vejamos
então alguns exemplos, tirados ao acaso:
a) Em
12 de Junho de 2022, sobre uns cadernos inéditos de Picasso exibidos numa exposição do
Museu Picasso de Paris, Leiderfarb
escreveu no Expresso:
De imediato, mostrou-os à mãe, hoje
com 86 anos, que os reconheceu de imediato. 'Ela disse: 'Claro, estes são os
cadernos de desenho de quando eu era pequena.' Foi um momento muito comovente,
não só porque estamos a falar de um dos maiores artistas mas também porque isto
torna-o muito humano", contou Diana Widmaier-Picasso ao Observer.
Um dia antes
(11 de Junho de 2022), o jornal The Guardian dizia:
Intrigued, she showed them to her mother, now 86, for whom memories came
flooding back. Widmaier-Ruiz-Picasso told the Observer: 'She said, ‘Of
course, those are my sketchbooks when I was little’. We tend to be very visual
in the family so immediately she was plunged into that time. It was a very
moving moment, not only because you’re talking about one of the greatest
artists but also because it made it very human. I was excited. Then I was moved.
No
mesmo artigo, afirma Leiderfarb, sem citar a fonte:
Esta recorda igualmente as revelações
da mãe sobre o facto de, à época, devido ao eclodir da II Guerra Mundial, haver
falta de lápis e de cadernos. 'É provavelmente por essa razão que o meu pai
escreveu tanto nos meus livros de esboços e pintou com os meus lápis. Ainda
tenho memórias ternurentas desses momentos em que nos reuníamos na cozinha para
desenharmos juntos. Era o único sítio quente do apartamento', disse Maya à
filha Diana.
E o The Guardian:
Maya particularly remembers that, during the second world war, colour
pencils and notebooks were in short supply: 'That’s probably why my father
wrote in my exercise books and coloured with my pencils. I still have fond
memories of those moments when we met up in the kitchen to draw together. It
was the only place in the apartment where it was warm'.
b) Um ano antes, em 23 de Maio de 2021, Luciana
Leiderfarb escreveu uma notícia sobre um romance desconhecido de John Steinbeck, também a partir de um artigo do The Guardian.
Escreveu
então a jornalista portuguesa:
Gavin Jones dirigiu aos proprietários
do espólio do autor um pedido de edição da obra, redigida uma década antes
de As Vinhas da Ira,
a magnum opus onde Steinbeck analisa a Grande Depressão
e disseca a vida dos trabalhadores rurais migrantes.
E
no jornal inglês, de 22 de Maio de 2021:
Now a British academic is calling for the Steinbeck estate to finally allow
the publication of the work, written almost a decade before masterpieces such
as The Grapes of Wrath, his epic about the Great Depression and the struggles
of migrant farm workers.
Mais adiante, continua Leiderfarb:
Com 233 páginas escritas à máquina,
conservadas nos arquivos do Centro Harry Ransom, na Universidade do Texas,
desde a tentativa frustrada de as publicar há já mais de 90 anos, a história
centra-se numa Califórnia costeira e ficcional, onde uma onda de assassinatos
perpetrados à luz da lua cheia enchem de medo uma comunidade. O original inclui
mesmo duas ilustrações de Steinbeck a reproduzirem a planta do prédio onde as
mortes acontecem e os locais onde os corpos foram encontrados.
E o The Guardian:
The
233-page typescript has been stored in the vast archives of the Harry Ransom
Center at the University of Texas in Austin after Steinbeck’s unsuccessful
attempt to have it published more than 90 years ago. Set in a fictional
Californian coastal town, Murder at Full Moon tells
the story of a community gripped by fear after a series of gruesome murders
takes place under a full moon. (...) The typescript even has two illustrations
by Steinbeck. They depict the floorplan of the building where the murders took
place, including the victims’ bodies.
c) Na revista do Expresso de 2 de
Março de 2019 (pp. 47-51), Leiderfarb assina um longo artigo sobre a vida e a
obra do escritor de ficção científica Isaac Asimov. A dada altura (p. 50), a
jornalista declara textualmente:
Asimov, na altura a preparar tese de doutoramento e
receoso de ferir suscetibilidades no seio da academia, pediu ao editor que o
publicasse sob pseudónimo — o que não aconteceu. No fim da sua dissertação, um
dos avaliadores dirigiu-lhe a palavra: 'O que pode dizer-nos, Sr. Asimov, sobre
as propriedades termodinâmicas do composto conhecido por thiotimoline?' Um
ataque de riso fez com que o autor, tomado pelo nervosismo, tivesse de deixar a
sala. Quando voltou, foi cumprimentado como 'Dr. Asimov'.
Faça-me
agora o leitor o obséquio de me acompanhar até à página da Wikipedia inglesa
sobre Isaac Asimov:
At the time,
Asimov was preparing his own doctoral dissertation, and for the oral
examination to follow that. Fearing a prejudicial reaction from his graduate
school evaluation board at Columbia University, Asimov asked his editor that it
be released under a pseudonym, yet it appeared under his own name. Asimov grew
concerned at the scrutiny he would receive at his oral examination, in case the
examiners thought he wasn't taking science seriously. At the end of the
examination, one evaluator turned to him, smiling, and said, 'What can you tell
us, Mr. Asimov, about the thermodynamic properties of the compound known as
thiotimoline'. Laughing hysterically with relief, Asimov had to be led out of the
room. After a five-minute wait, he was summoned back into the room and
congratulated as 'Dr. Asimov'. (https://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov)
No
mesmo artigo, há frases em que Leiderfarb diz serem da sua lavra, como esta:
E
haverá oportunidade para cada jovem, e mesmo cada pessoa, aprender tudo aquilo
que quer, no seu tempo e ritmo próprios, e à sua maneira.
A
qual, na verdade, é do próprio Asimov, publicada em 31 de Dezembro de 1983 no
jornal The Star:
There will be an opportunity finally for every
youngster, and indeed, every person, to learn what he or she wants to learn. in
his or her own time, at his or her own speed, in his or her own way. (aqui)
d) Um último exemplo,
retirado de uma recensão de Luciana Leiderfarb à biografia de Hannah Arendt (2021), de Samantha Rose Hill.
Em
14 de Outubro de 2022, escrevia a jornalista do Expresso que qualquer
pensador deve estar disposto a começar de novo e Samantha Rose Hill,
no seu livro (pág. 9 da versão original em inglês), diz assim: the work
of understanding (...) it requires one to always be ready to begin again.
Noutra
passagem do seu artigo, Leiderfarb afirma:
Em
1933 abandonou a filosofia académica para se concentrar no pensamento político.
(...) Criticava os académicos que cegaram perante o advento do
nacional-socialismo.
E, na biografia de Hannah Arendt, diz Samantha Rose
Hill (p. 9):
After the
burning of the Reichstag in 1933, Arendt left the world of academic philosophy
to do the work of political thinking, (...) She was appalled by how the
‘professional thinkers’ had been blind to the rise of National Socialism.
Enfim:
i)
Eleito reitor em Freiburg, Heidegger assinaria a
destituição dos docentes que não fossem de ‘ascendência ariana' (Luciana Leiderfarb)
Heidegger was
elected as Rector of the University of Freiburg and signed an order to dismiss
all faculty not of ‘Aryan Descent’ (Samantha Rose Hill, p. 40)
ii)
Karl Jaspers apresentou-lhe 'uma nova forma de
pensamento filosófico', orientada para o mundo. Ao contrário de Heidegger, que
via a filosofia como um ato solitário, Jaspers defendia um modo de pensar
'dialogal e plural' (Luciana Leiderfarb)
Jaspers’s work
introduced Arendt to a new form of philosophical thinking that oriented her
towards the world. Unlike Heidegger, who understood thinking to be a solitary
enterprise about the self, Jaspers’s work on thinking was dialogic and
plural (Samantha Rose Hill, p. 43).
Que terá a dizer a tão exigente Leiderfarb sobre estas
estranhas "coincidências"? Ao que se vê, a repórter do Expresso que
levianamente me acusou de "semelhanças flagrantes", é a mesmíssima
jornalista que, nos seus textos, se
entrega a múltiplas apropriações, a
sucessivas paráfrases e a cópias integrais de frases ou de parágrafos inteiros
retirados de jornais, de livros e até de páginas da Wikipedia.
Pouco há a estranhar de uma jornalista que arrecadou o
Prémio Gazeta, em 2017, com uma reportagem intitulada "O Nome do Pai"
(Expresso, 13/8/2016), em que entrevista cinco descendentes de
dirigentes nazis, que já antes tinham prestado depoimentos a Gerald L. Posner (Os
Filhos de Hitler, Editorial Notícias, 1996), a Tania Crasnianski (Enfants
de nazis, Março de 2016), bem como ao documentário Hitler's
Children (BBC2, 2012), nenhum dos quais é sequer mencionado na peça da
jornalista portuguesa.
Da
"reportagem" do Expresso, um cúmulo de enviesamento e
má-fé, não um trabalho imparcial e isento, verdadeiramente informativo e
esclarecedor para os leitores, ficam questões bem tristes.
A
primeira e óbvia constatação é que Luciana Leiderfarb, uma jornalista cultural
premiada, de um semanário dito “de referência”, não fez sequer o seu trabalho
de casa: como é que um indivíduo com tanto lastro e cadastro como Richard
Zenith não foi investigado pelo Expresso? Bastava-lhe ter
contactado outros especialistas (e não apenas Cabral Martins, amigo e
colaborador de décadas de Zenith), bastava-lhe ter investigado minimamente as
polémicas pessoanas para perceber a fama de que vinha precedido. Será que
Luciana Leiderfab foi mais uma das vítimas de Zenith e dos seus estratagemas?
Ou será, pelo contrário, que fui eu a vítima de uma vingança do Expresso, por
ter denunciado em tempos os “falsos exclusivos” que Alberto Manguel publicava
nas páginas da Revista?
Quanto
a Richard Zenith, disse ao Expresso, com grande jactância:
"não preciso de defender a minha biografia". Pelos vistos, precisa.
João
Pedro George