Puro
acaso do destino, a publicação em Portugal das memórias do ex-comandante Marat
ganhou notoriedade com os recentes acontecimentos da rebelião de um chefe de
grupo que pareceu que iria avançar sobre Moscovo, os acontecimentos ainda estão
muito confusos mas o ex-comandante Marat, bravo combatente de um exército
privado ao serviço da lógica política e económica de Putin e dos seus
oligarcas, desvenda um segredo bem escondido dessa força mercenária de elite
que finalmente Putin confirma a existência, o Grupo Wagner é pago a peso de
ouro tanto por Moscovo como pelos ditadores que interessa a Putin apoiar.
Eu, Marat, Ex-comandante do Grupo
Wagner, prefácio de José Milhazes, Casa das Letras, 2023, traz revelações
sensacionais, conta as manipulações e agitação perpetrada em território
ucraniano, descreve as lutas do Grupo Wagner em território sírio, acima de
tudo.
José
Milhazes recorda que se trata da primeira obra escrita por um mercenário russo,
combatente de uma empresa militar privada que até à recente declaração pública
de Putin não existia oficialmente. A Wagner tem sido utilizada em manobras
muito sujas, onde os russos não querem mostrar onde metem as mãos, para
implementar a sua política externa expansionista servem-se dos mercenários: no
Leste da Ucrânia, na Síria, Líbia, Sudão, República Centro-Africana, Mali e
Moçambique. Marat Gabidullin não edulcora o seu currículo: prestou serviço
militar nas tropas paraquedistas, enredou-se com gente mafiosa, este preso por
assassinato, viveu a praga do alcoolismo; sem emprego, aceitou fazer parte de
um grupo armado, foi combater para a Síria, no comando já estava Evgueni
Prigojin, a figura de quem se fala nos média e redes sociais de todo o mundo,
político com cadastro criminoso longo, também com uma pesada pena de prisão,
multimilionário, já confessou ter contribuído para intoxicar a campanha presidencial
norte-americana de 2016 (ele detém uma rede de empresas no campo da comunicação
social); envolveu-se com os seus mercenários nas regiões ucranianas de Donetsk
e Luhansk, desde 2017 tem a cabeça a prémio nos EUA.
Também o editor francês dá as suas
explicações para esta importante publicação: “O que ele oferece é um relato
único e extremamente atual das forças militares do seu país. As ações dos
Wagner foram sempre ao serviço exclusivo do Kremlin, quer no Donbass, na
Crimeia, na República Centro-Africana, no Mali e na Síria. Ele não tem palavras
suficientemente duras para descrever a indignidade do comportamento das tropas
russas e dos Falcões do Deserto às ordens de Bashar al-Assad, denunciando-lhes
a corrupção, a busca perpétua por honras, o desejo constante de se pouparem ao
trabalho sujo. Ele revela um sentimento perante a total falta de consideração
por parte das autoridades russas no tocante a estes mercenários.”
À cabeça do Grupo Wagner encontram-se
dois homens, o fundador, Dimitri Outkine (Wagner), antigo membro do serviço
militar russo de informações, criou um grupo de intervenção rápida para levar a
cabo operações precisas na região separatista de Donbass, em guerra com as
autoridades pró-europeias de Kiev. Este grupo de mercenários assumiu para si o
nome do seu líder, Wagner, uma homenagem ao compositor alemão (Dimitri Outkine
é um grande admirador do III Reich e Adolf Hitler). Se se pode falar de ideário
do grupo, a matriz é o nacionalismo, são antissemitas e xenófobos, defendem a
pureza étnica e a segregação racial, grande parte destes elementos têm visões
de extrema-direita. A outra figura chave é Evgueni Prigojin, já se disse que
ele tirou partido do caos pós-soviético, é um dos homens mais poderosos da
Rússia, comprovadamente envolveu-se em operações de destabilização tanto no
ciberespaço como no Médio Oriente e África.
O
Grupo Wagner é um meio para que Putin e os oligarcas ganhem dinheiro e estendam
tentáculos imperiais. Na Síria, onde Marat lutou, a missão era reconquistar o
controlo dos campos de petróleo e gás que haviam caído nas mãos de exército
sírio livre ou do Estado Islâmico; em troca, a Wagner recebia uma comissão de
25% sobre as receitas do ouro negro ou do gás, tudo ao abrigo de um acordo
assinado em finais de 2016 em Moscovo; a República Centro-Africana, é o setor
mineiro (ouro e diamantes) que cai sobre o seu controlo, a Wagner tem mão de
ferro sobre as autoridades aduaneiras, e também no Mali a Wagner é paga através
das receitas do setor mineiro. Até aos recentes acontecimentos de rebelião de Evgueni
Prigojin era difícil imaginar o Kremlin e o Ministério da Defesa assumirem a
existência do Grupo Wagner, tal aconteceu e não vale a pena estar a fazer
profecias sobre o futuro do Grupo Wagner.
Marat
descreve o seu alistamento, fala das verbas recebidas, descreve a missão em
2015 a Luhansk e não teve ilusões de que a Rússia se estava a intrometer na
vida de um país estrangeiro: “A República Popular de Luhansk era uma pequena
sociedade de pessoas tomadas como reféns por um bando de bárbaros analfabetos,
a quem fora dado acesso a armas.” Sentiu-se tomado por problemas de
consciência, felizmente para ele foi transferido para Moscovo, doravante todo o
seu relator é sobre a luta sem quartel na Síria, apercebe-se do cinismo das
diplomacias, caso da Turquia, que estava determinada a tirar partido da guerra
na Síria, fornecia armas e munições, conselheiros militares profissionais aos
insurgentes do Exército Sírio Livre, estamos a falar da mesma Turquia que agora
aparece como mediadora entre a Rússia e a Ucrânia. Cedo Marat se apercebeu que
os sírios não apreciavam dar o corpo ao manifesto, quem ia à frente era gente
do Grupo Wagner, são descrições avassaladoras onde não falta o horror e a
crueldade, os tais Falcões revelaram-se ineptos e cobardes, Marat di-lo
abertamente.
É
um detalhado reportório de derrotas e vitórias, muitos camaradas mortos e
feridos, Palmyra foi conquistada, perdida e reconquistada, Marat é muçulmano, e
o valor religioso tocou-lhe muito, dirige-se para uma mesquita depois dos
combates e tece o seguinte comentário: “O interior estava devastado: uma
espessa camada de gesso mesclada com fragmentos de pedra e pedaços de vidro
cobriam o chão, as paredes haviam sido desfiguradas pelos estilhaços e as
janelas, pretas da fuligem, estavam abertas como as feridas. Porém, toda aquela
destruição não afetou a majestosa beleza do edifício religioso. Uma vez lá
dentro, a angústia apoderou-se de mim. Sim, apesar de tudo, sentia-me
muçulmano. A guerra mutilou aquela mesquita e isso deixou-me doente. De
repente, naquele lugar sagrado, percebi claramente, de forma inesperada e
pungente, toda a miséria e vulgaridade do que acontecia na Síria, onde as
partes em confronto lutavam selvaticamente umas contra as outras para obterem
uma fatia de bolo.”
Este
relato é uma gesta sobre a força de combate que Marat era comandante. Recebeu a
Ordem da Coragem, dada em segredo, o povo russo não podia saber da existência
do Grupo Wagner, a descrição que ele faz sobre a reconquista de Palmyra é
admirável, mais uma vez refere que aquele exército sírio não tinha vontade de
lutar, era liderado por diletantes altivos e gananciosos, quem teve que dar o
corpo ao manifesto foi a Wagner.
Ao
despedir-se não esconde o seu ressentimento como a Rússia utiliza os mercenários.
“Dizem-nos que os soldados da fortuna são um fenómeno ocidental, e que o
mercenarismo é um produto da hidra capitalista. Os nossos políticos mantêm um
silencia envergonhado sobre a existência de empresas militares privadas. Os
propagandistas estão a doutrina intensivamente os russos com a ideia de uma
política externa exclusiva à Rússia, e evitando qualquer resposta direta sobre
o uso de mercenários.”
De
leitura obrigatória para quem procure entender o que se passa na Ucrânia e a
política expansionista russa.
Mário Beja Santos