É
um livro volumoso, de mais de 600 páginas, porque, no fundo, no fundo, constitui
um três em um: (1) memórias de juventude, contadas com contenção e reserva (por
exemplo, quanto à sexualidade); (2) retrato de uma década, com
abundância de factos e números; (3) almanaque revivalista, cozinhado com os ingredientes
certos para o paladar dos mais nostálgicos. E a primeira coisa a dizer é que o
autor soube conjugar e entrelaçar muitíssimo bem estes três planos, o que,
convenhamos, não era tarefa fácil.
Há o risco de este livro ser tomado, ou
ser tomado apenas, como uma colectânea de referências pretéritas (a
situações, a bens de consumo) para alimentar o mercado da nostalgia, quando a
intenção do autor, segundo creio, foi muito mais vasta do que isso (daí nem
citar sequer as Cadernetas de Cromos de Nuno Markl).
Como
há o risco de julgar que o autor pretendeu teorizar sobre uma década que
qualifica de «prodigiosa», o que também não julgo ter sido o seu propósito (daí
não ter mencionado uma brincadeira que escrevi em forma de livro, Da Direita
à Esquerda. Cultura e sociedade em Portugal dos anos 80 à actualidade).
Três notas apenas:
-
este é um retrato da primeira geração que viveu a chegada em força da sociedade
de consumo a Portugal (as memórias de outros tempos falavam de bailaricos e
festas da aldeia, esta prende-se muito mais, e não por acaso, com aquilo que gastávamos,
comíamos, usávamos);
-
em segundo lugar, este é um retrato da primeira década de democracia plena,
ou quase (o Conselho da Revolução só foi extinto em 1982), sendo curioso
observar como a democratização e o consumismo correram a par, lado a lado, em convívio íntimo – e explicam
em larga medida as vitórias eleitorais de Cavaco;
-
em terceiro lugar, por fim mas não por último, este livro revela, com copiosos exemplos,
o ritmo alucinante como, em poucos anos de meados da década de 80, se alteraram
radicalmente os nossos hábitos culturais e de consumo. Em três, quatro anos, passámos dos
ténis Sanjo à Adidas, o que teve profundíssimas implicações sociais e culturais,
mas também políticas, ou essencialmente políticas. De semelhante, só a queda do
Muro em Berlim. E, de facto, o que em Portugal ocorreu nos anos 80 foi também a
queda de um muro ou, se quisermos, o derrubar das últimas pedras de uma
ditadura tingida de preto e branco. O juízo do autor relativamente à «década
prodigiosa» será talvez complacente ou benévolo em excesso, exagerado até, e,
claro, naturalmente ditado pelas circunstâncias próprias das suas origens, condição social e dos lugares onde cresceu. Mas que foi assim como ele conta, ai
isso foi.
António Araújo
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