O
livro intitula-se Água em Portugal, o seu autor é Rodrigo Proença de
Oliveira, professor universitário e investigador. A sua área de interesse é a
hidrologia e os recursos hídricos, o ensaio que escreve é sobre a gestão dos
recursos hídricos em Portugal. O título da obra e o grafismo da capa com uma
torneira doméstica ou, vamos lá, de equipamentos públicos, sugerem que o livro
tem a ver com as características da água de abastecimento público. Não é isso
que acontece, o autor adverte que “este ensaio analisa a gestão dos recursos
hídricos em Portugal Continental”, num contexto em que “apesar de a
disponibilidade per capita ser confortável, a irregularidade temporal e
a assimetria espacial provocam situações de escassez”. Acresce que o autor
define este seu trabalho como “ensaio para o grande público.”
O
enfoque está, por conseguinte, na gestão dos recursos hídricos na perspetiva
estrita da hidrologia, isto é, das quantidades e movimentação da água na terra
nos seus diversos estados físico-químicos, na natureza e nas infraestruturas
criadas pelo Homem para armazenamento, transporte e utilização agrícola,
industrial e urbana.
Avisa-nos
na introdução que a água tem características peculiares, é um recurso sujeito
às leis da natureza, é igualmente um recurso económico, e clarifica que o uso
da expressão gestão dos recursos hídricos procura distinguir da gestão dos
serviços de águas, isto é, dos serviços de abastecimento de água para consumo
humano e de saneamento das águas residuais. É de prever que a Fundação
Francisco Manuel dos Santos venha a publicar outro ensaio intitulado Água em
Portugal II. Ficamos depois a saber que a gestão dos recursos hídricos
compreende todas as utilizações da água dentro e fora dos seus cursos,
incluindo as necessidades dos ecossistemas. E o leitor recebe mais informação,
esta gestão está associada à hidrologia (a ciência que estuda a distribuição, a
movimentação e as propriedades físico-químicas da água nos diferentes
compartimentos do sistema hidrológico natural), abrangendo também as
infraestruturas hidráulicas, os instrumentos de governança e de gestão.
São
caracterizados estes desafios da gestão, explanam-se conceitos como bacia
hidrográfica, quais as que temos, quem as gere e entra-se numa explanação sobre
o regime hidrológico de Portugal Continental, figuras e quadros não faltam;
segue-se uma breve perspetiva histórica das infraestruturas e quadro legal
institucional, como se fazem os aproveitamentos hidráulicos existentes, não se
esquece de mencionar a Lei da Água (Lei nº58/2005) e a Lei da Titularidade dos
Recursos Hídricos (Lei nº54/2005), fazem parte da transposição para o Direito
Nacional da Diretiva-Quadro da Água da União Europeia, até chegarmos aos
convénios luso-espanhóis sobre águas internacionais. Para a porção de leitores
que pretendam este esclarecimento parcelar das políticas da água, a narrativa é
rigorosa, trabalho de escola não falta.
Subsistem,
porém, sinuosidades da escrita. Diz-se que “Portugal não é um país pobre em
recursos hídricos”, compara-se os valores de escoamento anual (?) em Portugal
(7100 m3/ano/hab) com os da França, Itália, Espanha, Grécia e Reino
Unido. No mesmo sentido acrescenta-se que “250 m3/ano/hab é
considerado por muitos (?) como a referência a baixo da qual o país se torna
vulnerável à escassez de água.” No parágrafo seguinte acrescenta “No entanto,
vários fatores determinam uma acentuada simetria espacial da disponibilidade do
recurso”… com o rio Tejo a dividir o território entre um Norte húmido e um Sul
seco. O leitor fica esclarecido?
Somos
depois sujeitos a um curso acelerado de hidrologia e assim se chega aos usos da
água, e aqui, palavra de honra, se isto é um livro de divulgação estou mesmo
néscio. Para que o leitor entenda que nada tenho contra este escrito a não ser
o seu despropósito de não ser destinado ao grande público, cinjo-me ao uso
industrial da água, escreve-se que é estimado o volume captado em Portugal
Continental para fins industriais em 387hm3/ano. A maior parte deste
volume de água (79%) é satisfeito a partir de origens superficiais. As RH com
maiores volumes captados são as do Tejo, Sado e Mira e Vouga, Mondego e Lis. Em
2018, o volume acrescentado bruto (VAB) das indústrias transformadoras e
extrativas foi de 24,4 mil milhões de euros, correspondendo este valor quase
exclusivamente às primeiras, uma vez que o peso da indústria extrativa é
inferior a 2%. É interessante verificar que o volume captado para usos
industriais nem sempre acompanha o VAB de cada região. A RH5 – que inclui a
Região Metropolitana de Lisboa, as zonas industriais do Arco Ribeirinho Sul e o
polo industrial em torno da Volkswagen Autoeuropa – é a que apresenta maior VAB
e maior uso de água…” Realça-se os consumos da agricultura, a produção de
energia elétrica, como se processa a proteção de ecossistemas aquáticos e
ribeirinhos. Questiona-se disponibilidades de água e balanço hídrico. Quanto
aos desafios do futuro, recorre-se a uma linguagem tecnocrática muito útil para
não sobressaltar ninguém:
“A
resposta ao desequilíbrio entre disponibilidades e necessidades de água exige
uma estratégia ativa, eficaz e integrada, que assegure simultaneamente o
desenvolvimento social e económico do país e a proteção e valorização dos
ecossistemas naturais.
Essa estratégia deverá consubstanciar-se numa política pública coerente e consistente que, idealmente, resulte de um consenso esclarecido e alargado a toda a sociedade, mas particularmente entre aqueles cuja atividade mais se relacione com a água. No seu papel regulador de diferentes interesses que são, naturalmente, em parte antagónicos, cabe ao Estado mover essa política, assumindo responsabilidades, reconhecendo direitos e distribuindo tarefas. Nesse sentido, é fundamental existir um sistema de governança capaz de assegurar uma utilização eficiente e sustentável dos recursos hídricos, o que exige um quadro legal e institucional adequado, infraestruturas operacionais, sistemas de monitorização, capacidade técnica e acesso a recursos financeiros.” Assim se sacode a água do capote para estar bem com gregos e troianos, não compete ao professor universitário meter as mãos na massa do alguidar, com generalidade, ambiguidades e lugares comuns não se motiva o leitor, porque isto da gestão dos recursos hídricos e da hidrologia não é assunto direto da cidadania, tenham paciência.
Mário Beja Santos
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