segunda-feira, 10 de junho de 2024

Como Portugal viveu uma revolução turbulenta e se tornou numa democracia bem-sucedida.

 



 

 

A proposta de ensaio de Tiago Fernandes parte da premissa de que as relações sociais democráticas são processos de mudança política historicamente raros, e dentro dessa raridade consta Portugal. Desenvolve a sua análise a partir de um estudo comparado da revolução portuguesa de 1974-75 com outros ciclos revolucionários europeus do século XX, procura os fundamentos de quando se dá o predomínio das forças liberais/moderadas face aos movimentos contrarrevolucionários e ao radicalismo esquerdista, tais forças moderadas gozam da capacidade de organização cívica e contam com aliados determinantes nas forças militares; os conflitos findam porque esse predomínio de forças liberais/moderadas se torna no eixo de sustentação do regime democrático – situação que porventura se viveu e vive em Portugal, e o ensaio dá como demonstrado.

É, pois, proposta ousada a do ensaio intitulado Portugal, 1974-1975, Revolução, Contrarrevolução e Democracia, por Tiago Fernandes, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024. Diz o autor na introdução que o seu livro procura um objetivo teórico mais geral: o de compreender as razões pelas quais as revoluções originam regimes democráticos. É facto que a maioria das revoluções não deram lugar a democracias, acabam em ditaduras de partido único, autarcias geridas por autocratas, juntas militares, ídolos nacionalistas populistas ditos marxistas ou não.

O interesse pelo que se passou em Portugal também é ditado pelo facto desta revolução ter sido a última grande revolução social europeia do século XX. “Por definição, as revoluções sociais caracterizam-se por extremo conflito social de classes, polarização política, colapso do Estado e, nalguns casos, violência generalizada. O seu rescaldo imediato traduz-se geralmente numa contrarrevolução da direita nacionalista ou ditaduras revolucionárias de partido único.”

Há requisitos entusiasmantes para estudar esta revolução portuguesa onde predominou um regime autoritário de partido único durante 48 anos, segue-se um período marcadamente turbilhonante, mas pouco violento e impõe-se a pergunta o que é que pode explicar a singularidade democrática da revolução portuguesa. O autor passa em revista situações revolucionárias europeias do século XX, desvela transformações sociais e económicas radicais que se operaram na revolução portuguesa de 1974-1975, onde não faltou uma vaga de nacionalizações, coletivização de terras no sul do país, purgas na máquina do Estado e nas Forças Armadas; e lança a questão sobre os termos, as condições em que as situações revolucionárias produzem o regime democrático-liberal.

O ensaio de Tiago Fernandes está ricamente fundamentado pelo estudo de revoluções vitoriosas e fracassadas e quais os fatores emergentes nas revoluções democráticas, dizendo claramente que apesar da vasta mobilização popular em diferentes níveis, no Portugal revolucionário, permaneceu o predomínio das forças moderadas na coligação democrática. A avaliação que o autor faz é que essas forças moderadas já detinham elevada capacidade de organização no período ditatorial. Subsiste uma explicação para o surto de contrarrevoluções, também ocorreram em Portugal, mas foram focos que acabaram por ficar reduzidos a uma pura excrescência, não se puderam jamais confrontar com organizações partidárias robustas onde predominam as classes médias urbanas, e o autor dirá porquê: “É uma aliança de classes trabalhadoras urbanas e rurais e de setores dos militares, organizada em robustos movimentos cívicos.”

Procura demonstrar que havia já no regime anterior uma sociedade civil com pujança e autonomia que permitiu a constituição de partidos moderados, o PS e o PSD, que bloquearam o caminho às forças radicais. “No MFA, o contexto cultural europeu era favorável a uma combinação entre socialismo revolucionário e democracia. Era uma geração profundamente influenciada pelo Maio de 1968, pelos movimentos estudantis, pelos debates dentro do marxismo ocidental e as críticas ao modelo soviético e pelo consenso do anticolonialismo. Permitiu um consenso entre as forças militares e civis e terminar rapidamente a guerra, descolonizar e realizar eleições livres.” Estes, os fatores endógenos. Mas há que ter em contas os fatores exógenos: “O contexto internacional era favorável à democratização portuguesa. Por um lado, não havia uma potência hegemónica regional de extrema-direita que patrocinasse a contrarrevolução.” A Espanha vivia o seu próprio processo de transição, havia os acordos de Helsínquia, é um tempo em que vão soçobrar os regimes ditatoriais da Espanha e da Grécia.

O autor mostra como se passou de um apertado controlo político, onde preponderavam caciques locais para uma abertura que foi diluindo e desagregando o autoritarismo: o Concílio Vaticano II, a carta do Bispo do Porto a Salazar, o aparecimento de cooperativas, a postura oposicionista das organizações de Ação Católica, entre outros fatores. “É a partir deste setor católico reformista que em parte emerge no final dos anos 1960 a primeira oposição ao regime institucionalizada, uma ala liberal que defendia a transformação pacífica da ditadura num regime social-democrata de estilo europeu.” Dá-nos o quadro da evolução dos partidos da oposição ao regime de Salazar e Marcello Caetano e as suas posições anticolonialistas, revela-nos a evolução política dos jovens oficiais portugueses, como da contestação ganhou corpo a ideia de roubo do Governo. Na sequência do 25 de Abril explode a participação cívico-política, a sociedade civil foi-se organizando em bases democráticas, as ideias do passado e a tentação contrarrevolucionária perderam o entusiasmo. E o autor disserta como o processo revolucionário começa por derrotar a direita autoritária e como fracassou o radicalismo esquerdista e se abriu caminho a uma democracia bem-sucedida, é um dos tópicos mais originais desta investigação que nos leva à essência de uma vida associativa que precede o 25 de abril, envolvendo as oposições comunista como a socialista e a católica, o crescimento do corporativismo, das coletividades, o aparecimento de uma oposição sindical dentro das estruturas corporativas. E no período revolucionário, derrotado o vanguardismo esquerdista, impuseram-se as forças moderadas, foram elas que pouparam Portugal a uma invasão militar e a uma guerra civil. Foram essas mesmas forças moderadas o esteio da institucionalização democrática. Esta a singularidade do processo português: destruição das antigas estruturas a par da promoção da igualdade e do pluralismo políticos – tudo produto do predomínio das forças moderadas na coligação revolucionária. “Isto é possível quando essas mesmas forças já tinham elevado a capacidade de organização cívica no regime anterior, quando o conflito militar termina com o eclodir da própria revolução, e, por último, quando as forças radicais são dividas entre si.”

Uma perspetiva com a cordite suficiente para alargados debates.

 

                                                                Mário Beja Santos


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