A
proposta de ensaio de Tiago Fernandes parte da premissa de que as relações
sociais democráticas são processos de mudança política historicamente raros, e
dentro dessa raridade consta Portugal. Desenvolve a sua análise a partir de um
estudo comparado da revolução portuguesa de 1974-75 com outros ciclos
revolucionários europeus do século XX, procura os fundamentos de quando se dá o
predomínio das forças liberais/moderadas face aos movimentos
contrarrevolucionários e ao radicalismo esquerdista, tais forças moderadas
gozam da capacidade de organização cívica e contam com aliados determinantes
nas forças militares; os conflitos findam porque esse predomínio de forças
liberais/moderadas se torna no eixo de sustentação do regime democrático –
situação que porventura se viveu e vive em Portugal, e o ensaio dá como
demonstrado.
É,
pois, proposta ousada a do ensaio intitulado Portugal, 1974-1975, Revolução,
Contrarrevolução e Democracia, por Tiago Fernandes, Fundação Francisco
Manuel dos Santos, 2024. Diz o autor na introdução que o seu livro procura um
objetivo teórico mais geral: o de compreender as razões pelas quais as
revoluções originam regimes democráticos. É facto que a maioria das revoluções
não deram lugar a democracias, acabam em ditaduras de partido único, autarcias
geridas por autocratas, juntas militares, ídolos nacionalistas populistas ditos
marxistas ou não.
O
interesse pelo que se passou em Portugal também é ditado pelo facto desta
revolução ter sido a última grande revolução social europeia do século XX. “Por
definição, as revoluções sociais caracterizam-se por extremo conflito social de
classes, polarização política, colapso do Estado e, nalguns casos, violência
generalizada. O seu rescaldo imediato traduz-se geralmente numa
contrarrevolução da direita nacionalista ou ditaduras revolucionárias de
partido único.”
Há
requisitos entusiasmantes para estudar esta revolução portuguesa onde
predominou um regime autoritário de partido único durante 48 anos, segue-se um
período marcadamente turbilhonante, mas pouco violento e impõe-se a pergunta o
que é que pode explicar a singularidade democrática da revolução portuguesa. O
autor passa em revista situações revolucionárias europeias do século XX,
desvela transformações sociais e económicas radicais que se operaram na
revolução portuguesa de 1974-1975, onde não faltou uma vaga de nacionalizações,
coletivização de terras no sul do país, purgas na máquina do Estado e nas
Forças Armadas; e lança a questão sobre os termos, as condições em que as
situações revolucionárias produzem o regime democrático-liberal.
O
ensaio de Tiago Fernandes está ricamente fundamentado pelo estudo de revoluções
vitoriosas e fracassadas e quais os fatores emergentes nas revoluções
democráticas, dizendo claramente que apesar da vasta mobilização popular em
diferentes níveis, no Portugal revolucionário, permaneceu o predomínio das
forças moderadas na coligação democrática. A avaliação que o autor faz é que
essas forças moderadas já detinham elevada capacidade de organização no período
ditatorial. Subsiste uma explicação para o surto de contrarrevoluções, também
ocorreram em Portugal, mas foram focos que acabaram por ficar reduzidos a uma
pura excrescência, não se puderam jamais confrontar com organizações
partidárias robustas onde predominam as classes médias urbanas, e o autor dirá
porquê: “É uma aliança de classes trabalhadoras urbanas e rurais e de setores
dos militares, organizada em robustos movimentos cívicos.”
Procura
demonstrar que havia já no regime anterior uma sociedade civil com pujança e
autonomia que permitiu a constituição de partidos moderados, o PS e o PSD, que
bloquearam o caminho às forças radicais. “No MFA, o contexto cultural europeu
era favorável a uma combinação entre socialismo revolucionário e democracia.
Era uma geração profundamente influenciada pelo Maio de 1968, pelos movimentos
estudantis, pelos debates dentro do marxismo ocidental e as críticas ao modelo
soviético e pelo consenso do anticolonialismo. Permitiu um consenso entre as
forças militares e civis e terminar rapidamente a guerra, descolonizar e
realizar eleições livres.” Estes, os fatores endógenos. Mas há que ter em
contas os fatores exógenos: “O contexto internacional era favorável à
democratização portuguesa. Por um lado, não havia uma potência hegemónica
regional de extrema-direita que patrocinasse a contrarrevolução.” A Espanha
vivia o seu próprio processo de transição, havia os acordos de Helsínquia, é um
tempo em que vão soçobrar os regimes ditatoriais da Espanha e da Grécia.
O
autor mostra como se passou de um apertado controlo político, onde
preponderavam caciques locais para uma abertura que foi diluindo e desagregando
o autoritarismo: o Concílio Vaticano II, a carta do Bispo do Porto a Salazar, o
aparecimento de cooperativas, a postura oposicionista das organizações de Ação
Católica, entre outros fatores. “É a partir deste setor católico reformista que
em parte emerge no final dos anos 1960 a primeira oposição ao regime
institucionalizada, uma ala liberal que defendia a transformação pacífica da
ditadura num regime social-democrata de estilo europeu.” Dá-nos o quadro da
evolução dos partidos da oposição ao regime de Salazar e Marcello Caetano e as
suas posições anticolonialistas, revela-nos a evolução política dos jovens oficiais
portugueses, como da contestação ganhou corpo a ideia de roubo do Governo. Na
sequência do 25 de Abril explode a participação cívico-política, a sociedade
civil foi-se organizando em bases democráticas, as ideias do passado e a
tentação contrarrevolucionária perderam o entusiasmo. E o autor disserta como o
processo revolucionário começa por derrotar a direita autoritária e como
fracassou o radicalismo esquerdista e se abriu caminho a uma democracia
bem-sucedida, é um dos tópicos mais originais desta investigação que nos leva à
essência de uma vida associativa que precede o 25 de abril, envolvendo as
oposições comunista como a socialista e a católica, o crescimento do
corporativismo, das coletividades, o aparecimento de uma oposição sindical
dentro das estruturas corporativas. E no período revolucionário, derrotado o
vanguardismo esquerdista, impuseram-se as forças moderadas, foram elas que
pouparam Portugal a uma invasão militar e a uma guerra civil. Foram essas
mesmas forças moderadas o esteio da institucionalização democrática. Esta a
singularidade do processo português: destruição das antigas estruturas a par da
promoção da igualdade e do pluralismo políticos – tudo produto do predomínio
das forças moderadas na coligação revolucionária. “Isto é possível quando essas
mesmas forças já tinham elevado a capacidade de organização cívica no regime
anterior, quando o conflito militar termina com o eclodir da própria revolução,
e, por último, quando as forças radicais são dividas entre si.”
Uma
perspetiva com a cordite suficiente para alargados debates.
Mário
Beja Santos
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