sexta-feira, 14 de junho de 2024

(Des)(des)confia.

 



 

Numa das frases mais citadas de sempre, provavelmente apócrifa, como são quase todas as frases mais citadas de sempre, G.K. Chesterton explica-nos que quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Em Portugal, ao progressivo esvaziamento das igrejas (mas não de Fátima!), tem-se sucedido, de facto, um progressivo enchimento de pavilhões – e não dos pequenos – com crentes desejosos de assistir a sessões de coaching, mentoria, empoderamento, motivational talks, desenvolvimento pessoal, e mais uma série de nomes, portugueses ou estrangeiros, que especialistas (ou specialists) diversos nos garantem não serem sinónimos, mas aos quais os mais descrentes, falhos do mindset adequado, dedicam uma opinião semelhante, nada agradável, do género – obrigado, Sérgio Godinho! – “fraudes da mesma mó”.

Achando talvez que a facturação desses grandes espaços, Meo Arena à cabeça, não atingira ainda os valores desejados, Joana Marques (a humorista, não a ex-Procuradora-Geral da República) resolveu promover o maior evento de anti-coaching de sempre, esgotando duas vezes o monumental recinto sob o signo da comédia. Não satisfeita, exportou o espectáculo para o Porto, e eu, iluminista racional altamente desconfiado de tudo o que não é ciência pura e dura (nasci a 13 de Setembro e os Virgens são muito cépticos), fui vê-lo, e aqui deixo o relato possível do acontecimento.       

Mandam as regras não escritas do ofício, nobre e conceituado desde a época de Pedro de Barcelos e Fernão Lopes, que o aspirante a cronista chegue cedo ao alvo da sua análise, de maneira a conseguir descrever, em modo de sociologia barata, os portadores de bilhete. Sendo a Super Bock Arena (perdoa-me, Rosa Mota!) um pavilhão com apenas cinco ou seis mil lugares sentados, não me foi difícil concluir, com uma margem de erro de 0,5%, que 72,31% da assistência era do sexo feminino, uma percentagem enigmaticamente semelhante à que caracteriza o público das talks de Cristina Ferreira, talvez o alvo principal da sátira de Joana Marques.

Aos pares ou em grupos maiores, alguns deles de amplo espectro geracional, desfilavam pelos corredores os outfits distintivos da classe C1, equivalente contemporâneo do agrupamento pequeno-burguês que tirava o Dr. Cunhal do sério, ou seja, e sem pretensões de exaustividade, calças de ganga largas de cintura subida, t-shirts, blazers q.b., umas poucas de Birkenstocks, muitas sapatilhas (suponho que em Lisboa optaram por ténis). As tatuagens, discretas, não apresentavam os nomes das crias, confirmando assim, ao nível da análise estereotipada que dá corpo à minha prática, a pertença a um estrato socioeconómico urbano e escolarizado de ascendência não proletária.

A investigação pormenorizadamente levada a cabo durante dez minutos, associada a uma temperatura altíssima para os parâmetros do Entre-Douro-e-Minho, na ordem dos 22/23 graus!, acabou por me provocar sede, pelo que me dirigi a um dos bares, todos eles com fila, com o intuito de beber um fino (suponho que em Lisboa optaram por imperiais), manobra infelizmente abortada quando o solícito empregado me pediu 4,5 euros, ou 902 escudos na moeda antiga, e eu lhe fiz ver, educadamente, que o meu objectivo não era comprar o estabelecimento mas apenas uns poucos centilitros de cerveja. E foi assim, sequioso e ligeiramente enervado, digamos que naquele ponto em que me daria jeito um guru portátil carregado de estratégias prêt-à-porter para lidar com a fúria, o chamado anger management, ou gestion de la colère, fazendo pendant com o prêt-à-porter, que me dirigi para a sala, onde imediatamente me acalmei graças ao choque térmico infligido pelas potentes máquinas que transformaram um espaço com 90.000 m3 num frigorífico. Pude concluir, desta forma, que o preço das bebidas foi calibrado tendo como ponto de partida a necessidade de pagar a conta da EDP.

Casa cheia, luzes apagadas, entra em palco Joana Marques e respectivos convidados, a primeira equipada com a sua aptidão para o humor autodepreciativo, os segundos, ou pelo menos alguns deles, equipados com episódios verdadeiros extremamente desagradáveis, como é o caso de Sara Norte, uma actriz que, na esteira de D. Sebastião, resolveu complicar a própria existência em aventuras norte-africanas. As risadas da assistência iam confirmando o acerto da aposta, ainda que as maiores, sem sombra de dúvida, tenham tido como gatilho não as piadas proferidas voluntariamente em directo, mas as palestras gravadas, e reais, dos genuínos coachs/mentores/influencers que iam aparecendo nos ecrãs gigantes, trazidos à cena para ilustrar o ridículo, e que cumpriram com involuntária eficácia o papel que a produção lhes destinou.

Não que a estratégia de autodepreciação de Joana Marques funcione mal, pois embora seja provavelmente desenvolvida a partir de Ricardo Araújo Pereira, acaba por o conseguir ultrapassar em verosimilhança (é necessário um menor grau de suspensão da descrença para acreditarmos que a humorista em causa é baixinha e ingere demasiadas calorias do que para acreditarmos que RAP é uma besta sem talento); e também não se dá o caso de os participantes do (Des)confia terem apresentado histórias desinteressantes ou terem falhado na arte da comunicação. O que aconteceu foi simplesmente um daqueles casos, frequentes, em que a arte imita a vida sem conseguir superá-la no que esta tem de risível, pateta e embaraçoso. Despindo o fato de sociólogo de contrafacção e vestindo o de psicólogo de feira com chapéu de adivinho, pressentia-se até, em muitas das gargalhadas, uma ligeira afinação nervosa, consequência normal de estarem a ser expelidas por seres humanos anteriormente apanhados, esporadicamente ou por sistema, nas malhas da “ciência” que estava ali a ser desmontada a golpes de sarcasmo, apanhados talvez não através daqueles coachs/mentores/influencers em concreto, mas eventualmente através dos seus equivalentes que apostaram na classe C1. Uma “ciência”, com aspas, e por isso causadora de riso nervoso, que pelos vistos passa imediatamente a ciência, sem aspas, quiçá até a Ciência, sem aspas e com letra maiúscula, se for exercida por profissionais devidamente certificados pelas instituições universitárias reconhecidas pelos poderes oficiais.

Esta é, pelo menos, a opinião da Ordem dos Psicólogos, que num parecer emitido sobre o coaching, definido no documento como uma actividade que pretende “promover o potencial de alguém, maximizando o seu desempenho e facilitando a aprendizagem e o desenvolvimento de competências” (ou seja, traduzindo para linguagem chã: “ajudar o Éder a marcar o golo decisivo na final do Euro 2016”), mostra preocupação pela prática do ofício num ambiente de negócio não regulado, e também pela profusão de coachs (“coachs”, neste caso) munidos de pseudo-qualificações. Em resumo: a UEFA deve retirar a taça à selecção das quinas, uma vez que Susana Torres, a mulher que devolveu a confiança a Ederzito António Macedo Lopes, não está inscrita na inexistente – mas porventura desejada – Ordem dos Coachs.

Brincadeiras – e corporativismos – à parte, e tendo naturalmente em conta a posterior quezília entre o futebolista e a sua ex-guru, um desaguisado que poderá inclusive terminar na mesa de trabalho de Joana Marques (a ex-Procuradora-Geral da República, não a humorista), é óbvio que a falta de enquadramento legal destas tretas / orientações de enorme utilidade (riscar o que não interessa) potencia a ocorrência de fraudes deliberadas (financeiras, principalmente). Já quanto à eventual relação directa entre qualificações não pseudo e a probabilidade de sucesso dos procedimentos, a conclusão não é assim tão simples, pois estamos no escorregadio universo da auto-estima e da psicologia da insegurança, o estado emocional responsável – cobrindo-me agora com o fato de técnico do Instituto Nacional de Estatística – pelo aparecimento de 99% destes “novos” negócios (serão mesmo novos ou apenas reinvenções de antigos?). A mente humana, dizem-nos vários estudos, nomeadamente no âmbito dos placebos, é uma caixinha de surpresas, e há sempre espaço, desde que com conta, peso e medida, para abordagens “whatever works”, como bem nos ensinou Woody Allen num filme homónimo. Se um mentor de feng shui, desagradado com a orientação solar da nossa casa, nos recomenda uma visita ao banco com o objectivo de nos endividarmos até ao pescoço para comprar uma nova, o melhor talvez seja agradecer o conselho e esquecê-lo rapidamente; se, por outro lado, a terapia do dito-cujo para uma crise de insónias se resume a afastarmos a cama da parede 5 centímetros, então não há mal nenhum em aplicá-la, depositando um pouco de fé no intrujão / indivíduo de extrema sabedoria (riscar o que não interessa).

Em certa medida, foi isso que muitas pessoas procuraram, e encontraram, no espectáculo de Joana Marques, não um evento de anti-coaching, mas um evento de coaching para não mais recorrer a coachs, uma sessão de empoderamento para não mais precisar de assistir a sessões de empoderamento, uma palestra de uma influencer sobre como não cair na tentação de correr atrás de influencers. Em jeito de conclusão, uma vacina. Que costuma ser produzida, como é sabido, com variações do próprio vírus. E que tem o inconveniente, à semelhança dos discursos motivacionais, de precisar de doses de reforço regulares para manter a eficácia. Vai resultar? Talvez, a não ser que a vacina (Des)confia não passe de uma substância meramente homeopática, embora com um preço – do bilhete e do raio da cerveja – nada diluído!

 

                                                        Sérgio Barreto Costa



 

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia 

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