Numa
das frases mais citadas de sempre, provavelmente apócrifa, como são quase todas
as frases mais citadas de sempre, G.K. Chesterton explica-nos que quando as
pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Em
Portugal, ao progressivo esvaziamento das igrejas (mas não de Fátima!), tem-se
sucedido, de facto, um progressivo enchimento de pavilhões – e não dos pequenos
– com crentes desejosos de assistir a sessões de coaching, mentoria,
empoderamento, motivational talks, desenvolvimento pessoal, e mais uma
série de nomes, portugueses ou estrangeiros, que especialistas (ou specialists)
diversos nos garantem não serem sinónimos, mas aos quais os mais descrentes,
falhos do mindset adequado, dedicam uma opinião semelhante, nada
agradável, do género – obrigado, Sérgio Godinho! – “fraudes da mesma mó”.
Achando
talvez que a facturação desses grandes espaços, Meo Arena à cabeça, não
atingira ainda os valores desejados, Joana Marques (a
humorista, não a ex-Procuradora-Geral da República) resolveu promover o
maior evento de anti-coaching de sempre, esgotando duas vezes o
monumental recinto sob o signo da comédia. Não satisfeita, exportou o
espectáculo para o Porto, e eu, iluminista racional altamente desconfiado de
tudo o que não é ciência pura e dura (nasci a 13 de Setembro e os Virgens são
muito cépticos), fui vê-lo, e aqui deixo o relato possível do
acontecimento.
Mandam
as regras não escritas do ofício, nobre e conceituado desde a época de Pedro de
Barcelos e Fernão Lopes, que o aspirante a cronista chegue cedo ao alvo da sua
análise, de maneira a conseguir descrever, em modo de sociologia barata, os
portadores de bilhete. Sendo a Super Bock Arena (perdoa-me, Rosa Mota!) um
pavilhão com apenas cinco ou seis mil lugares sentados, não me foi difícil
concluir, com uma margem de erro de 0,5%, que 72,31% da assistência era do sexo
feminino, uma percentagem enigmaticamente semelhante à que caracteriza o
público das talks de Cristina Ferreira, talvez o alvo principal da
sátira de Joana Marques.
Aos
pares ou em grupos maiores, alguns deles de amplo espectro geracional,
desfilavam pelos corredores os outfits distintivos da classe C1,
equivalente contemporâneo do agrupamento pequeno-burguês que tirava o Dr.
Cunhal do sério, ou seja, e sem pretensões de exaustividade, calças de ganga
largas de cintura subida, t-shirts, blazers q.b., umas poucas de Birkenstocks,
muitas sapatilhas (suponho que em Lisboa optaram por ténis). As tatuagens,
discretas, não apresentavam os nomes das crias, confirmando assim, ao nível da
análise estereotipada que dá corpo à minha prática, a pertença a um estrato socioeconómico
urbano e escolarizado de ascendência não proletária.
A
investigação pormenorizadamente levada a cabo durante dez minutos, associada a
uma temperatura altíssima para os parâmetros do Entre-Douro-e-Minho, na ordem
dos 22/23 graus!, acabou por me provocar sede, pelo que me dirigi a um dos
bares, todos eles com fila, com o intuito de beber um fino (suponho que em
Lisboa optaram por imperiais), manobra infelizmente abortada quando o solícito
empregado me pediu 4,5 euros, ou 902 escudos na moeda antiga, e eu lhe fiz ver,
educadamente, que o meu objectivo não era comprar o estabelecimento mas apenas
uns poucos centilitros de cerveja. E foi assim, sequioso e ligeiramente
enervado, digamos que naquele ponto em que me daria jeito um guru portátil
carregado de estratégias prêt-à-porter para lidar com a fúria, o chamado
anger management, ou gestion de la colère, fazendo pendant
com o prêt-à-porter, que me dirigi para a sala, onde imediatamente me
acalmei graças ao choque térmico infligido pelas potentes máquinas que
transformaram um espaço com 90.000 m3 num frigorífico. Pude concluir, desta
forma, que o preço das bebidas foi calibrado tendo como ponto de partida a
necessidade de pagar a conta da EDP.
Casa
cheia, luzes apagadas, entra em palco Joana Marques e respectivos convidados, a
primeira equipada com a sua aptidão para o humor autodepreciativo, os segundos,
ou pelo menos alguns deles, equipados com episódios verdadeiros extremamente
desagradáveis, como é o caso de Sara Norte, uma actriz que, na esteira de
D. Sebastião, resolveu complicar a própria existência em aventuras norte-africanas.
As risadas da assistência iam confirmando o acerto da aposta, ainda que as
maiores, sem sombra de dúvida, tenham tido como gatilho não as piadas
proferidas voluntariamente em directo, mas as palestras gravadas, e reais, dos
genuínos coachs/mentores/influencers que iam aparecendo nos ecrãs
gigantes, trazidos à cena para ilustrar o ridículo, e que cumpriram com
involuntária eficácia o papel que a produção lhes destinou.
Não
que a estratégia de autodepreciação de Joana Marques funcione mal, pois embora
seja provavelmente desenvolvida a partir de Ricardo Araújo Pereira, acaba por o
conseguir ultrapassar em verosimilhança (é necessário um menor grau de suspensão
da descrença para acreditarmos que a humorista em causa é baixinha e ingere
demasiadas calorias do que para acreditarmos que RAP é uma besta sem talento); e
também não se dá o caso de os participantes do (Des)confia terem apresentado
histórias desinteressantes ou terem falhado na arte da comunicação. O que
aconteceu foi simplesmente um daqueles casos, frequentes, em que a arte imita a
vida sem conseguir superá-la no que esta tem de risível, pateta e embaraçoso. Despindo
o fato de sociólogo de contrafacção e vestindo o de psicólogo de feira com chapéu
de adivinho, pressentia-se até, em muitas das gargalhadas, uma ligeira afinação
nervosa, consequência normal de estarem a ser expelidas por seres humanos
anteriormente apanhados, esporadicamente ou por sistema, nas malhas da
“ciência” que estava ali a ser desmontada a golpes de sarcasmo, apanhados talvez
não através daqueles coachs/mentores/influencers em concreto, mas
eventualmente através dos seus equivalentes que apostaram na classe C1. Uma “ciência”,
com aspas, e por isso causadora de riso nervoso, que pelos vistos passa
imediatamente a ciência, sem aspas, quiçá até a Ciência, sem
aspas e com letra maiúscula, se for exercida por profissionais devidamente
certificados pelas instituições universitárias reconhecidas pelos poderes
oficiais.
Esta
é, pelo menos, a opinião da Ordem dos Psicólogos, que num parecer emitido sobre
o coaching, definido no documento como uma actividade que pretende “promover
o potencial de alguém, maximizando o seu desempenho e facilitando a
aprendizagem e o desenvolvimento de competências” (ou seja, traduzindo para
linguagem chã: “ajudar o Éder a marcar o golo decisivo na final do Euro 2016”),
mostra preocupação pela prática do ofício num ambiente de negócio não regulado,
e também pela profusão de coachs (“coachs”, neste caso) munidos
de pseudo-qualificações. Em resumo: a UEFA deve retirar a taça à selecção das
quinas, uma vez que Susana Torres, a mulher que devolveu a confiança a Ederzito
António Macedo Lopes, não está inscrita na inexistente – mas porventura
desejada – Ordem dos Coachs.
Brincadeiras
– e corporativismos – à parte, e tendo naturalmente em conta a posterior
quezília entre o futebolista e a sua ex-guru, um desaguisado que poderá
inclusive terminar na mesa de trabalho de Joana Marques (a ex-Procuradora-Geral
da República, não a humorista), é óbvio que a falta de enquadramento legal
destas tretas / orientações de enorme utilidade (riscar o que não interessa)
potencia a ocorrência de fraudes deliberadas (financeiras, principalmente). Já
quanto à eventual relação directa entre qualificações não pseudo e a
probabilidade de sucesso dos procedimentos, a conclusão não é assim tão simples,
pois estamos no escorregadio universo da auto-estima e da psicologia da
insegurança, o estado emocional responsável – cobrindo-me agora com o fato de
técnico do Instituto Nacional de Estatística – pelo aparecimento de 99% destes
“novos” negócios (serão mesmo novos ou apenas reinvenções de antigos?). A mente
humana, dizem-nos vários estudos, nomeadamente no âmbito dos placebos, é uma
caixinha de surpresas, e há sempre espaço, desde que com conta, peso e medida,
para abordagens “whatever works”, como bem nos ensinou Woody Allen num filme
homónimo. Se um mentor de feng shui, desagradado com a orientação solar
da nossa casa, nos recomenda uma visita ao banco com o objectivo de nos
endividarmos até ao pescoço para comprar uma nova, o melhor talvez seja
agradecer o conselho e esquecê-lo rapidamente; se, por outro lado, a terapia do
dito-cujo para uma crise de insónias se resume a afastarmos a cama da parede 5
centímetros, então não há mal nenhum em aplicá-la, depositando um pouco de fé
no intrujão / indivíduo de extrema sabedoria (riscar o que não interessa).
Em
certa medida, foi isso que muitas pessoas procuraram, e encontraram, no
espectáculo de Joana Marques, não um evento de anti-coaching, mas um
evento de coaching para não mais recorrer a coachs, uma sessão de
empoderamento para não mais precisar de assistir a sessões de empoderamento,
uma palestra de uma influencer sobre como não cair na tentação de correr
atrás de influencers. Em jeito de conclusão, uma vacina. Que costuma ser
produzida, como é sabido, com variações do próprio vírus. E que tem o inconveniente,
à semelhança dos discursos motivacionais, de precisar de doses de reforço
regulares para manter a eficácia. Vai resultar? Talvez, a não ser que a vacina
(Des)confia não passe de uma substância meramente homeopática, embora com um
preço – do bilhete e do raio da cerveja – nada diluído!
Sérgio Barreto Costa
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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