É
bem verdade que temos uma ideia distorcida quanto à natureza dos cuidados
paliativos, num certo senso comum é o conjunto de cuidados associados a gente
que vai morrer, já nada há a fazer. Uma jornalista pôs-se num encalço de
diferentes situações de doença grave ou incurável, ouviu profissionais, doentes
e familiares e nesta poderosa narrativa A morrer ou a viver? Histórias de
cuidados paliativos, por Sofia Teixeira, Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2024, afirma-se a convicção de que estas pessoas estão a viver e têm
direito a serem cuidadas para terem o mínimo sofrimento e o máximo de apoio.
Uma viagem em que se retratam cinco doentes, Nini, João, Francisco, Maria José
e Djamila, e fica-nos uma certeza: há sempre algo mais a fazer. A autora diz-se
que chegou ao fim do seu trabalho e ficou mais enriquecida, pois estar doente e
pensar na morte ajuda-nos a refletir sobre a vida. “A vida não tem um final
surpreendente. Este livro também não. A maioria dos seus protagonistas não teve
a oportunidade de ler estas páginas. No entanto, deixaram a sua história, para
que os outros a possam conhecer. Queria que este livro servisse que para quem o
lê fizesse também a si próprio as perguntas que considera importantes, mesmo
que não saiba as respostas.”
Nini
nasceu com neurofibromatose, teve cancro nas vias óticas com dois anos; depois
de doze anos de paz, veio a leucemia, a doença não cedeu, Nini não desarma:
“Vivo um dia de cada vez, agradeço o que tenho e não penso no que me falta.”
Entram em ação os cuidados paliativos, Nini continua a ser seguida pela sua
oncologista, mas passou a ser acompanhada também pela Equipa Intra-Hospitalar
de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos do IPO do Porto. “A melhor
maneira de explicar o que são Cuidados Paliativos é dizendo que oferecem a
alguém muito doente o possível – quer do ponto científico, quer humano – exceto
a cura da doença potencialmente fatal. Oferecem os cuidados necessários,
adequados e proporcionais à situação. E se isso parece pouco é apenas porque
nos habituámos a olhar a morte como um fracasso, em vez de uma
inevitabilidade.” Por outras palavras, há sempre algo mais a fazer, estes
cuidados são prestados por equipas multidisciplinares e interdisciplinares com
médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, outras valências serão
suscitadas, como assistentes espirituais, fisioterapeutas, terapeutas da fala e
terapeutas ocupacionais.
João
tem o mesmo número de anos que de quilos: 14. Não faltam as dificuldades
respiratórias, crises epiléticas diárias que não cedem aos quatro medicamentos
antiepiléticos que toma e deformidades ósseas na anca e coluna, associadas à
imobilidade e às alterações musculares. Não anda, não fala, não chora, não ri.
Tem uma doença sem nome, a mãe é combativa. João é seguido pela Equipa
Intra-hospitalar e Domiciliária de Suporte em Cuidados Paliativos do Hospital
Pediátrico de Coimbra, equipa que segue doenças neurológicas, neuromusculares,
genéticas ou metabólicas. A pediatra, Cândida Cancelinha, diz que a forma como
o trabalho de equipa é explicado pelos colegas influencia muito a recetividade
dos pais. A mãe de João tem esperança, a equipa visita o doente em casa quando
ele piora, é um contacto direto, uma disponibilidade que não se encontra
noutros serviços do hospital, a equipa dá uma resposta quando é necessária.
Maria
José tem 70 anos e nunca tinha estado doente, diagnosticaram-lhe um cancro nos
ovários. Olhar para trás e não para a frente foi a forma que encontrou de viver
o melhor que pode. É acompanhada pela Equipa Comunitária de Cuidados Paliativos
Beja+, estava reticente, mas mudou de ideias quando recebeu a primeira visita
da equipa em casa. A autora observa que quando a pessoa doente e a família
conseguem reconhecer e apropriar-se do seu sofrimento conseguem também
encontrar caminhos para o aliviar um pouco.
Francisco
Brandão Ferreira foi jornalista na Rádio Renascença e depois na RFM,
reformou-se e a doença chegou depois de cinco anos, com um cancro no pulmão, a
seguir foi detetada uma metástase no cérebro, faz quimioterapia. Descobriu-se
que o seu cérebro entrara em autodestruição. Incapaz de andar, debilitado e
confuso, do hospital passou para uma unidade de cuidados continuados. Por
sugestão da médica de família, a mulher, Manuela, recorreu à LInQUE, uma
cooperativa que conta com uma equipa multidisciplinar. Uma das fundadoras, a
médica Elsa Mourão, depois da experiência que teve no INEM, o problema não era
a morte das pessoas, era a morte desacompanhada, assume que uma das
dificuldades de encarar esta realidade passa pela formação médica geral. E
também aqui a autora observa que o tempo é um inimigo cruel de quem tem
demência ou outras doenças progressivas. É graças aos cuidados paliativos que
Manuela está consciente de que se aproxima o dia em que terá de fazer uma
difícil transição: deixar de amar Francisco na sua presença para o amar na
ausência.”
A
autora não se limita a esta verificação, procura saber o depois, volta a ouvir
os cuidadores, e, quando possível, os doentes, caso de Maria José Mestre ou da
Nini. Temos por último Djamila, autora e doente conversaram na Unidade de
Cuidados Paliativos das Irmãs Hospitaleiras da Idanha, em Belas, Djamila tem um
cancro no útero, já com metástases noutros órgãos, veio para Portugal à procura
de soluções que já não existem na Guiné-Bissau. É uma paciente com necessidades
complexas, pois não se consegue manter de pé, precisa de um rigoroso controlo
sintomático, a urina e as fezes são drenadas diretamente para sacos externos. O
médico paliativista Paulo Pina recorda que os pacientes chegam demasiado tarde;
é que além dos sintomas físicos chegam com outras necessidades: fragilidades
emocionais, dúvidas espirituais, uma família preocupada.
É
o momento propício para a autora discorrer sobre a amplitude dos cuidados
paliativos:
“A
morte é cada vez menos um acontecimento inesperado, prematuro e repentino. Os
números mostram que a maioria das pessoas não morre no decurso de eventos
súbitos, como um ataque de coração fulminante ou um acidente de viação fatal,
mas de doenças crónicas e prolongadas que causam sofrimento. Isso significa que
morrer não é apenas um momento, mas um processo, que será mais ou menos penoso
consoante as decisões médicas tomadas, os cuidados paliativos a que cada um tem
acesso e a cultura familiar, social e comunitária em torno destes temas.” O
epílogo da obra é uma peça de grande humanidade sobre quem morre e quem fica,
avulta um mistério, quando a autora escrevia, Djamila continuava internada em
Belas, pois há mistérios que nem as equipas médicas sabem explicar.
De leitura obrigatória, mormente para quem é profissional de saúde ou tem a seu cargo doentes de longa duração ou mal incurável.
Mário Beja Santos
Li percebi julgo eu mas invade nos tristeza..
ResponderEliminarMas invade nos tristeza
ResponderEliminar