Tem
sido publicitado que o Exército, no âmbito da sua participação nas comemorações
do centenário da Grande Guerra, vai finalmente organizar os fundos documentais
de que é detentor, relacionados com a participação portuguesa na guerra. É uma
boa notícia. Todos nós esperamos, em especial a comunidade académica e
universitária, que o trabalho a efectuar seja de qualidade, planeado e
executado com cuidado científico e sem excessiva interferência nos trabalhos de
investigação em curso.
Como
antigo director do Arquivo Histórico Militar (entre 1993 e 2007) e como
investigador dessa época só posso congratular-me por o Exército se dispor a
efectuar os trabalhos que há muito vinham sendo reclamados. Mas, se me é permitido,
gostaria de partilhar algumas preocupações que me ocorrem. Faço-o publicamente
porque elas são preocupações de carácter geral, não envolvendo qualquer crítica
ou desacordo.
Entrada do edifício do Estado-Maior do Exército, lado de Santa Apolónia, porta de acesso ao Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.
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Quais
são então essas preocupações?
Em
primeiro lugar, a constituição da equipa. O tratamento de arquivos e fundos
documentais tem hoje regras muito específicas, normas e procedimentos
completamente definidos, que fazem parte da formação e actuação dos membros da
comunidade arquivística. É pois necessária uma ligação à autoridade nacional
arquivística (o Arquivo Nacional) e a inclusão de técnicos desta área na equipa
executiva do trabalho.
Em
segundo lugar, a relação com a universidade. Felizmente muitas universidades
estão hoje preparadas para abordar e investigar temas de história
contemporânea, existindo em muitas delas Centros e Institutos próprios para esta
área, assim como departamentos de Ciências Documentais. O Exército só teria a
ganhar se estabelecesse protocolos com uma ou várias Universidades, no sentido
de a organização dos fundos da Grande Guerra poder ser acompanhada por
especialistas universitários deste âmbito.
Pátio dos canhões, porta de entrada no Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.
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Em
terceiro lugar, as investigações em curso e aquelas que serão iniciadas durante
este período comemorativo. Organizar um arquivo pode implicar uma enorme
interferência na sua documentação, tudo dependendo do plano de abordagem e da
profundidade necessária à reconstituição e reorganização dos processos. Ora,
esta seria a pior altura para retirar do acesso à leitura os fundos documentais
em causa, pois será este o período em que mais incentivos surgirão para o
estudo e para a publicação de trabalhos sobre o assunto. Esta situação merece
uma ponderação cuidada da comissão que se prepara para dar andamento ao
projecto do Exército.
Em
quarto lugar, a informatização. Existem hoje, felizmente, no mercado nacional,
programas informáticos de gestão documental adequadamente preparados para gerir
a reorganização de fundos arquivísticos. Os que principalmente têm sido usados
pelo Arquivo Histórico Militar resumem-se a dois, mas julgo que serão
perfeitamente adequados ao trabalho que é necessário efectuar. Um, é o
Digitarq, comercializado pela empresa Keep Solutions (distribuído gratuitamente
pelo Arquivo Nacional, embora impedido por este de ser desenvolvido para além
da sua actual versão 3); o outro é o ArqHist, desenvolvido pela empresa SHP, possuidora
do portal de pesquisa inter-arquivos InfoGestNet, acessível on-line e através
do qual é possível, já hoje, aceder às outras bases de dados do próprio Arquivo
Histórico Militar. Julgo que a comissão deve também neste campo ponderar
vantagens e custos para determinar a melhor opção. O que nunca deve, pela má
experiência anterior, é tentar construir um projecto informático próprio.
Caixas do arquivo do C.E.P. num dos depósitos do Arquivo Histórico Militar. Foto de Aniceto Afonso, 2007.
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Em
quinto lugar, as prioridades. Os principais núcleos da documentação relacionada
com a Grande Guerra estão dispersos na actual organização do Arquivo Histórico
Militar e porventura, assim devem continuar. São os seguintes, se não estou em
erro:
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O Arquivo do Corpo Expedicionário Português. Este é de longe o mais importante
acervo documental do AHM relacionado com a Grande Guerra. Tem cerca de 3.000
caixas de documentação e inclui, para além do C.E.P. propriamente dito, também
os fundos documentais da Divisão de Instrução, da Divisão Auxiliar, do Estado
Maior do Exército, do Quartel General Base, entre outros menores. Na
organização actual do AHM constituem a 35ª Secção (C.E.P.) da 1ª Divisão
(Operações em Portugal e na Europa).
Militares portugueses numa trincheira na Flandres. Foto de Arnaldo Garcês, 1917/18, colecção do AHM. |
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A documentação relacionada com Angola e Moçambique. A este propósito convém
dizer que a documentação essencial destas frentes da campanha da Grande Guerra
se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino, pois as expedições militares para
as colónias eram organizadas pelo Ministério das Colónias, sendo os militares
mobilizados transferidos de Ministério. Mas existe ainda documentação
significativa referente a cada um destes territórios nas Secções 2ª (Angola) e
7ª (Moçambique) da 2ª Divisão (Ultramar/Colónias).
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Os três fundos especiais (Mapoteca, Fototeca e Iconografia), que incluem
espécies e colecções com referência à Grande Guerra. Só me pronunciarei aqui
sobre a Mapoteca, que teria toda a vantagem em usar os instrumentos de
descrição e de divulgação que estiveram na base do tratamento do património
cartográfico do Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar,
actualmente na dependência da Direcção do Serviço de Infra-Estruturas do
Exército (acessível on-line).
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A colecção de boletins individuais dos militares que fizeram parte do C.E.P.
(Secção 35A da 1ª Divisão).
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A Secção 36ª da 1ª Divisão referente ao período da Guerra, mas sem relação
directa com as operações militares.
Toda
esta documentação tem estado acessível ao público, sem quaisquer restrições,
desde muito antes da minha passagem pelo Arquivo Histórico Militar e, que eu
conheça, não existe nenhuma documentação especialmente classificada e retirada
do acesso público, pelo que é completamente infundada a ideia de que existem
baús ou segredos na documentação que agora vai ser arquivisticamente tratada.
Existem mesmo alguns especialistas que conhecem a documentação a fundo, devendo
eu destacar, entre todos, o único que efectuou um estudo sistemático desta
documentação, ao longo dos muitos anos que tem dedicado ao seu estudo - o
coronel (e professor universitário) Luís Alves de Fraga, a quem me ligam laços
de amizade e de muita admiração pelo seu trabalho de investigação e de
seriedade científica.
Oficiais portugueses do C.E.P. na frente europeia. Foto de Arnaldo Garcês, 1917/18, colecção do AHM.
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Finalizando este meu apontamento, que já vai longo, diria:
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Que se torna necessário estabelecer prioridades para este enorme projecto, que
tenham em conta algumas das condicionantes (e outras) que apontei;
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Que seria importante tornar acessível, logo que possível, os boletins
individuais dos militares do C.E.P. (Secção 35A/1ª Divisão), devidamente
digitalizados. De uma forma geral os países participantes na Grande Guerra já
disponibilizam on-line acesso a estes boletins;
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Que seria de elementar bom senso consultar investigadores, arquivistas e
conhecedores da documentação concreta em apreço;
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Que existisse sensibilidade e prudência na abordagem e planeamento da
intervenção, minimizando as consequências para as investigações em curso e para
a crescente procura a que os fundos vão ser sujeitos neste período de
aproximação das comemorações centenárias.
Finalmente,
o meu contributo tem um carácter positivo, dou-o através deste testemunho
pessoal, mas tenho estado, estou e sempre estarei disponível para colaborar,
dentro das minhas capacidades e limitações, com o Exército e os seus
responsáveis. Sem outro interesse que não seja o bem público e o funcionamento
das instituições.
Lisboa,
27 de Dezembro de 2012
Aniceto
Afonso
Boas achegas camarada e amigo.
ResponderEliminarMuito bem este parecer do coronel, licenciado em História, Aniceto Afonso pela oportunidade e profundidade. Na sequência de algumas conversas anteriores recordo a conveniência em tb se trabalhar a preparação da entrada de Portugal na Guerra de 1914/18 com base no que se passou na Embaixada de Londres com protagonismo do, na altura Ministro (hoje seria Embaixador), Manuel Teixeira Gomes, antigo Presidente da República.
ResponderEliminarUm abraço de parabéns,
António Pena.
António Pena.
Uma vez mais todo o seu reconhecido e reputado saber nesta matéria está aqui evidenciado.
ResponderEliminarEspero e desejo, seja lido e "ouvido" porque não falta quem só "ouça" aquilo que pensa "ensurdecendo" em relação ao que outros dizem.
José Faustino
MAis uma vez um esclarecido trabalho da Camarada Aniceto Afonso.
ResponderEliminarParabens pela oportunidade e pelo conteúdo.
Uma Baraço
Cruz Fernandes
Mais uma vez vens levantar as tampas de sepultura com que as Instituições Nacionais, e nomeadamente as FFAA, costumam selar os arquivos documentais da história portuguesa. Sempre me doeu que os arquivos e as bibliotecas portuguesas fossem sempre preteridas nos orçamentos quando na maior parte dos nações o investimento orçamentado para estas fontes de conhecimento é sempre classificado como o mais rentável.
ResponderEliminarCom este valioso testemunho o Cor Aniceto Afonso volta, mais uma vez, a mostrar a sua qualidade de cidadão e de militar oferecendo o seu saber e produto de muito trabalho sem reclamar mais valias ou reconhecimento.
Espero bem que os responsáveis das Instituições envolvidas tenham a inteligência e a cultura suficientes para reconhecer a mais valia, económica e social, de um bom e persistente sistema dos arquivos nacionais.
Aproveitar as comemorações do centenário da GG 14-18 para retirar as tampas de sepultura dos nossos arquivos é uma esperança e uma exigência cidadã.
Cor Aniceto Afonso
ResponderEliminara sua abordagem ao projecto da Grande Guerra é sem dúvida a forma mais correta e esclarecida de avançar para um projecto desta dimensão, demonstra que continua a ser uma das pessoa que mais conhece e sabe sobre o património arquivístico do Exército e que tem a noção exata do que é necessário para garantir o tratamento e a disponibilização desta documentação tão importante para a Instituição castrense, para as Universidades, para investigadores portugueses e estrangeiros e para o cidadão em geral...
Mas infelizmente não é nada disso que se está a fazer...está a passar-se uma informação incorrecta à comunicação social e ao público em geral.
Foi apresentado um projecto à comissão que apontava para a execução dos objectivos que abordou no seu apontamento mas esse foi descartado por implicar um investimento dedicado para a realização do projecto...e mais não é necessário dizer!
Cunha Roberto
Também era importante que uma simples fotocópia custasse menos de 0,30€
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