terça-feira, 31 de maio de 2022

Daquela tão suja Guerra de Inverno às bestialidades desta Guerra de Primavera.

 



 

Não me querendo atrelar aos muitos quilómetros de escrita sobre este confronto que irá redefinir as relações euro-atlântico-asiáticas para trazer à consideração do leitor episódios daquilo que é seguramente o mais impressionante documento sobre qualquer guerra, Kaputt, escrito por um romancista e jornalista de renome, Curzio Malaparte. Malaparte percorre vários teatros de guerra entre 1941 e 1943, a Polónia, a Ucrânia, a Finlândia, andou nos guetos, viu a morte em direto, as chacinas, conversou com altos dignatários do nazi-fascismo, com Hans Frank, o governador da Polónia, Heinrich Himmler, Ante Pavelic, revisita alguns dos locais onde os finlandeses, indómitos, resistiram até ao limite aos soviéticos na chamada Guerra de Inverno. Não há analogias em História, só surpresas que nos suscitam a reflexão. Em 23 de agosto de 1939, é assinado em Moscovo o Pacto Germano-Soviético, com as suas abomináveis cláusulas secretas, a repartição da Polónia e a possibilidade de Estaline meter mão nos Estados Bálticos, abocanhar a Bessarábia à Roménia, agredir a Finlândia. Como aconteceu. Mas para surpresa de Estaline, a resistência finlandesa foi de um heroísmo sem limites. Em 1941 já não havia Guerra Russo-Finlandesa, a muito custo Estaline fez capitular a Finlândia e a apoderou-se de uma boa percentagem do seu território, queria a Carélia. Agora, os alemães avançavam sobre Leninegrado, e Malaparte foi confrontado com um espetáculo horrível no lago de Ládoga, onde muitos cavalos fugidos a um incêndio perpetrado pela guerrilha finlandesa tinham ficado gelados. E Malaparte dá-nos parágrafos brilhantes, é uma magia da escrita condizente com o asco que a guerra provoca:

“Encaminhamo-nos para o lago. A neve estava encharcada; era uma neve de primavera, que já não era branca, mas ebúrnea, com aquelas manchas verdes e amarelas que têm os marfins velhos. Em certos pontos, onde afloravam as rochas de granito rosado, apresentava-se cor de vinho. E onde as árvores eram menos bastas parecia coberta por um véu de vidro transparente, como uma placa brilhante de cristal de Orefors, sob a qual transpareciam agulhas de pinheiro, folhas, pequenos seixos de cor, bocados de erva, farrapos dessa pele branca que reveste o tronco das bétulas.

O silêncio não era já o silêncio morto do inverno, glacial e transparente como um bloco de cristal, mas um silêncio vivo, percorrido por tépidas correntes de cores, de sons, de cheiros. A tepidez do Sol nascente espalhava-se através da floresta. À medida que o Sol se elevava na linha do horizonte, arrancado à superfície argêntea do lago, um leve nevoeiro rosado, o vento trazia até nós um crepitar longínquo de metralhadora, um tiro solitário, o canto desgarrado de um cuco. No fundo desta paisagem de sons, de cores, de cheiros, numa clareira da floresta, via-se o clarão de qualquer coisa embaciada, de qualquer coisa brilhante como o tremor de um mar irreal: o Ládoga. Finalmente saímos do bosque para a margem do lago e descobrimos os cavalos.

Isto tinha-se passado no ano precedente, no mês de outubro. Depois de atravessar a floresta de Vuoksi, as guardas avançadas finlandesas chegaram à orla da selvagem, da interminável floresta de Raikkola. A floresta estava cheia de tropas russas. Quase toda a artilharia soviética do setor setentrional do istmo da Carélia, para escapar ao cerco dos soldados finlandeses, se lançara em direção ao Ládoga, na esperança de poder embarcar material e cavalos no lago para os pôr a salvo do outro lado. Mas as jangadas e os rebocadores soviéticos demoravam; e cada hora de atraso podia ser fatal. Ao terceiro dia, um imenso incêndio deflagrou na floresta de Raikkola. Fechados num círculo de fogo, os homens, os cavalos e as árvores soltavam gritos terríveis. Loucos de terror, os cavalos da artilharia soviética – eram quase mil – lançando-se na fornalha, quebraram o assalto do fogo e das metralhadoras. Muitos pereceram nas chamas, mas uma grande atingiu a margem do lago e lançou-se à água. O lago, nesse lugar, é pouco profundo: dois metros no máximo, mas a uma centena de passos da margem o fundo cai a pique. Apertados neste espaço reduzido, entre a água profunda e a muralha de fogo, os cavalos agruparam-se, mantendo a cabeça fora de água. Os que tinham ficado mais próximos da margem, acometidos pelas chamas, encavalitavam-se, subiam uns para cima dos outros, tentando abrir passagem à dentada, à patada. No auge da confusão, foram apanhados pelo gelo.

No dia seguinte, quando as primeiras patrulhas avançaram cautelosamente, pela cinza ainda quente, um medonho e maravilhoso espetáculo se lhes ofereceu. O lago era como uma imensa placa de mármore branco, na qual estavam pousadas centenas e centenas cabeças de cavalos. As cabeças pareciam cortadas rentes, à cutelo. Só elas emergiam da crosta de gelo. Todas as cabeças estavam voltadas para a margem. Nos olhos esbugalhados, via-se ainda brilhar o terror, como uma chama branca. Perto da margem, um grupo de cavalos ferozmente curvados emergia da prisão de gelo.”

Aqueles teatros de guerra por onde andou Malaparte envolveram genocídio, morticínios de judeus praticados pelas populações civis, execuções arbitrárias, iremos ser confrontados com chacinas onde não faltará o grotesco daquilo que se procurava fazer uma vida normal, em nome das regras elementares da sobrevivência. O autor nunca perde a oportunidade para, em torno de uma atmosfera de um quase horror, reduzir à diversão a apresentação de um senhor todo-poderoso, no caso vertente Heinrich Himmler, isto numa sauna finlandesa: “Nunca eu vira um ventre tão nu, tão rosado. Tão tenro, que despertava em nós o desejo de o apalpar com um garfo. Grossas gotas de suor deslizavam-lhe ao longo do peito e escorriam pela pele daquele ventre tenro para se juntarem no púbis como o orvalho no silvado. Por debaixo do púbis pendiam, definhados e moles, dois pequenos ovos num saquinho de pele amarrotada, enrugada como um saco de papel: parecia orgulhoso dos seus dois ovos como Hércules da sua virilidade”.

Malaparte irá concluir a sua obra-prima em setembro de 1943, na sua casa em Capri. O retrato que nos deixa da elite fascista italiana é de gente acanalhada, mexeriqueira, pronta a oferecer-se ao vencedor norte-americano. Chega a Nápoles no princípio de agosto de 1943, fugia da guerra, dos massacres, tinha chegado ao termo de uma longa e cruel viagem através da guerra, do sangue, da fome, das aldeias incendiadas, das cidades destruídas. Vem num comboio repleto de pessoas em fuga, de civis e soldados, todos fugiam da guerra, da fome, da pestilência, do terror, da morte, dos alemães, dos bombardeamentos, nisto é mesmo um bombardeamento que lança aquelas multidões em nova fuga. E despede-se com um parágrafo fulgente, irrepetível: “O céu era puro, o mar verde, resplandecia no horizonte como um prado imenso. O mel do Sol deslizava pela fachada das casas enfeitadas com roupa branca estendida entre uma e outra janela para secar. Ao longo da cornija dos telhados, ao longo dos rebordos dentados dos rasgões produzidos pelas bombas nas paredes, nos lábios das feridas abertas no flanco dos palácios, o céu ampliava-se como uma delicada gengiva azul. O mistral trazia o aroma, o sabor do mar, o leve ruído das ondas nos rochedos, o grito solitário indolente dos marinheiros”.

Será que algum outro Malaparte nos irá contar todas as tragédias que se estão a viver nesta abominável Guerra de Primavera, onde a única coisa que sabemos é que tudo vai mudar na ordem económica, política, financeira, e que dores tremendas demorarão a sarar?


Mário Beja Santos








domingo, 29 de maio de 2022

Mário Mesquita (1950-2022).

 






Mário Mesquita – da personagem jornalística singular a uma excursão narrativa da sua exemplar deontologia1 

 

 

O risco de não chegar a tempo de participar no volume de homenagem ao Mário Mesquita é um quase pesadelo que me tem vindo a perseguir nos últimos tempos. Não quero sequer pôr a hipótese de não estar presente em tão merecida celebração, pois conto o homenageado na lista das pessoas que admiro profundamente e de quem sou grande amigo, as duas coisas em simultâneo. 

Dele ouvi primeiro falar quando ainda vivia nos Açores na década de 60. Os nossos universos eram distintos e não se cruzavam. Os meus anos lectivos eram passados na Terceira, no Seminário Episcopal, enquanto os dele, três anos mais novo (o que, quando se é jovem, faz muita diferença) eram vividos no Liceu de Ponta Delgada. Dada a inexistência, nesse tempo, de ensino superior nos Açores, o Seminário de Angra e o Liceu de Ponta Delgada constituiam dois activos focos de aglomeração e intervenção intelectual e cultural no arquipélago. O Liceu Antero de Quental como que fazia jus ao seu nome produzindo uma plêiade de alunos, vários dos quais, para além da sua excelência académica, se notabilizaram pela actividade política naqueles anos. Foi o caso de José Medeiros Ferreira, Eduardo Paz Ferreira, Jaime Gama, João Bosco Mota Amaral, Paulo Jorge Melo2 (se recuarmos um pouquito, chegamos a Sacuntala de Miranda, Bruno da Ponte, Mário Barradas e António Valdemar, por exemplo3). Um dos mais novos dessa ínclita geração foi Mário Mesquita, que emergiu no final dos anos 60, quando os seus predecessores já estavam em Lisboa, ou até no exílio, como acontecera com Medeiros Ferreira que, expulso da universidade portuguesa, se vira forçado a ir estudar para a Suíça. 

Foi quando eu já estava em Lisboa, no início da década de 70, que um dia fui contactado por Mário Mesquita sugerindo um encontro. Não descubro outra explicação para essa ocorrência a não ser aquela força magnética que, em Portugal continental, une os insulares. E deve ter sido ela mesma que, a partir desse momento inicial de aproximação, continuou a alimentar os nossos contactos subsequentes. Na verdade, algum tempo depois eu partia de férias de verão, em visita a meus pais nos Estados Unidos (estávamos em 1972) e Mário Mesquita, que na altura trabalhava na redacção do República, pediu-me para enviar umas crónicas acerca da campanha eleitoral. O Presidente Nixon candidatava-se à reeleição e George McGovern iria ser o candidato do Partido Democrata. Correspondi ao pedido com não me recordo quantas crónicas, porque acabei quedando-me pelas Américas, decidido a não regressar a Portugal por razões que não cabe agora enumerar. 

Entretanto, o 25 de Abril  surpreendeu-nos a todos. Só me lembro de o nosso contacto ter sido reatado quando o Mário Mesquita, já director do Diário de Notícias, provavelmente o mais jovem de sempre dos directores de um diário português, me convidou a colaborar na página “Cultura”, então um espaço de intervenção com influente presença no país. Algum tempo depois, revelando uma consciência preclara para a época, solicitou-me sugestões de nomes para correspondentes do jornal na Costa Leste e na Califórnia, onde residem fortes comunidades portuguesas, maioritariamente açorianas. Recomendei-lhe Eurico Mendes, jornalista do Portuguese Times, de New Bedford, que durante décadas se fez presente no Diário de Notícias com bem informadas crónicas, e Vamberto Freitas, na Califórnia. Sobre este último, acrescentei na altura que dele se poderia esperar colaboração mais alargada, uma vez que estava já fazendo notáveis incursões no campo da crítica literária especialmente dedicada à escrita luso-americana e também à norte-americana. 

Aceites ambas as sugestões, o espaço que lhes foi concedido no Diário de Notícias permitiu uma significativa presença luso-americana no jornal, num momento em que a predisposição dominante em Portugal estava entusiasmadamente voltada para o Leste europeu e, depois, para a Europa Central.  

Nesses idos tempos, os jornais não circulavam com facilidade. Chegavam-me alguns à Biblioteca da Brown – o Expresso, por exemplo – mas os diários eram visita muito esporádica. Só recebida quando um viajante amigo se lembrava de trazer uns quantos exemplares, ou quando o senhor Pedroso do Friends Market, no centro do antigo bairro português de Fox Point onde nasceu a minha avó paterna, conseguia obter alguns, não sei bem por que processos. Mas exibia-os sobre o balcão e disponibilizava-os aos visitantes da sua hoje mítica loja. 

Tenho ideia de ter sido quando Mário Mesquita me ofereceu um exemplar de Deve & Haver4, colectânea de crónicas e notas suas recolhidas da imprensa, que me rendi e transformei em incondicional leitor. Aquela escrita cativou-me de imediato por quatro razões misturadas entre si, sem possibilidade de elenco em qualquer pré-determinada ordem: a perspicácia de observação, a precisão de pensamento, a fina ironia e a escorreiteza de estilo, bebido nos melhores clássicos. Três anos mais tarde, um novo volume – A Regra da Instabilidade5, uma recolha de editoriais – confirmou, definitivamente para mim, uma imagem de marca. Mário Mesquita era atentíssimo e destacado observador da cena nacional, social e política, e senhor de uma prosa que se inseria na melhor tradição jornalística em que o país é notoriamente rico. Se em Deve & Haver havia já ficado mais do que patente estarmos em presença de um notável cronista e comentador político-cultural, A Regra da Instabilidade inscreveu o nome de Mário Mesquita na elite dos cronistas portugueses da actualidade. Por minha parte, não sei já quantas vezes citei desse livro a magistral análise do comportamento do ciclista Joaquim Agostinho, que Mário Mesquita arvorou em modelo prototípico de uma significativa camada do povo português. Não resisto a evocá-la de novo: 

Dos actuais “ídolos” do desporto português, ciclista veterano de uma Nação velha, é o que melhor se identifica com as forças e fraquezas dos seus contemporâneos. Nesta terra onde o desporto, como tudo o resto, é o culto do acaso, Agostinho é o desportista descoberto graças a um compadre que o observava nas corridas da aldeia; é o espelho da tenacidade perseverante que o há-de manter em competição até aos quarenta anos. Para uma nação sem planos e sem projectos, Agostinho é o protótipo da força e do talento desorganizados. 

A imagem de Joaquim Agostinho, ciclista do azar e da sorte, dobrado sobre a bicicleta, a ensaiar a recuperação de mais uma queda inexplicável, será um símbolo deste País de emigrantes e improvisadores – símbolo mais vivo e representativo, para os estudiosos da vida quotidiana dos portugueses no ano de 1980, do que tantos outros que terão direito a estátua na praça pública ou darão nome a ruas de Lisboa.6 

Regresso ao meu percurso de cruzamentos com MM, agora nos anos após a direcção do Diário de Notícias. Os encontros sucederam-se, a admiração e a amizade misturaram-se cada vez mais, sem todavia nunca o meu juízo sobre a superior qualidade do seu trabalho se ter deixado perturbar pelo enviesamento que as cumplicidades criam. Procurei sempre usar de discernimento e separar as águas, quer com ele quer com outros amigos, servindo-me do apoio de critérios vários que me ajudam nesse processo complexo.  

A sua partida para a Universidade de Louvaina com vista a um Mestrado em Comunicação Social acrescentou à vida de Mário Mesquita um elemento que nos uniu ainda um pouco mais: a partilha da experiência diaspórica. Ele talvez não tenha notado esse outro motivo de aproximação entre nós, todavia eu senti-o especialmente. Podíamos em comum olhar Portugal de fora, nunca deixando de continuar a senti-lo a partir de dentro. 

A acutilância do seu espírito analítico-crítico, de acentuada veia irónica, desenvolveu-se numa nova linha, a da reflexão sobre ética da comunciação social, durante o período em que foi Provedor dos Leitores do Diário de Notícias. A acuidade e profundidade das suas análises e do seu criterioso juízo ético está mais do que patente nas páginas do livro O Jornalismo em Análise – A coluna do Provedor dos Leitores (Coimbra, Minerva, 1998). Basta ler alguns textos para nos apercebermos da exemplaridade modelar desta escrita do género. 

A experiência universitária permitiu-lhe, entretanto, catapultar os seus múltiplos talentos para um plano superior. Começaram a surgir ensaios sobre a sua área de especialidade, numa linguagem a primar pela ausência de jargão, pecha quase tão inevitável quanto tomada como intrinsecamente necessária ao progresso na carreira académica. Tais ensaios revelavam algo que sempre prezei: o rigor de pensamento manifestado numa escrita límpida e de cristalina transparência. O traquejo jornalístico, aliado ao seu gosto literário, permitiam-lhe agora elaborar textos densos, revelando aprofundadas leituras em diversas áreas de especialização associadas com o jornalismo e a comunicação social, numa escrita analítica plena de finura e de cativante, embora contida, elegância. O grosso volume de ensaios O quarto equívoco – o poder dos media na sociedade contemporânea7 - constitui uma vigorosa demonstração das afirmações atrás conscientemente expressas. Basta folhear-lhe o índice para nos darmos conta da alargada dimensão da temática abordada, tudo questões intimamente conectadas. Depois, é só ler, quase indiscriminadamente e sem nenhuma ordem especial, os capítulos mais apelativos. Cada um entra por um ângulo particular da problemática nuclear da comunicação social e vai solidamente rasgando horizontes, abrindo constantemente para questões colaterais que são desenvolvidas noutros capítulos. Não se trata de um compêndio, mas de um grosso conjunto de ensaios individuais guiados por um conjunto de preocupações coerentemente interligadas. 

O volume poderia muito bem ter sido dividido em dois e, se a mancha de página não fosse tão densa, poderia efectivamente ter resultado em dois avolumados tomos. Qualquer deles constituiria de per si uma tese de doutoramento. Conhecedor, porém, de uma distintiva marca da sua personalidade, o perfeccionismo, que o impedia eternamente de dar por terminada a tese por, segundo ele, estar ainda muito longe da almejada perfeição, sugeri-lhe que organizasse esse volume em jeito de dissertação de doutoramento e o apresentasse a uma universidade.  

Impossível, porém, convencer o Mário (nesta altura já posso deixar cair o sobrenome pois tenho-o por amigo muito próximo). Para ele, senhor de uma ética absolutamente irrepreensível (ainda não me referi a essa faceta da sua personalidade, mas não posso esquecê-la e prometo lá chegar), a minha sugestão soava a truque imoral ou a saída truculenta, a esquema matreiro ou a esperteza saloia, ou, sei lá, a desenrascanço tipicamente luso roçando a aldrabice.  

Bem que tentei demonstrar-lhe, por escrito, a qualidade dos seus textos sobre o sujeito enunciador da narrativa jornalística, bem como sobre outros aspectos intimamente relacionados com o problema da objectividade. No fundo, ambos os temas eram duas vertentes do mesmo problema, o da envolvência da subjectividade na busca de uma escrita que se pretende objetiva. Questão candente e actualíssima, que aliás me interessava particularmente, pois cedo eu próprio me envolvera e apaixonara mesmo pela questão da objectividade nas ciências sociais, a ponto de me ter lançado na escrita de uma tese sobre a questão da ideologia. Lembro-me perfeitamente de ler esses escritos do Mário numa altura em que me embrenhara a sério nessa probemática então aplicada à História, e sobre a qual até eu dera, no Departamento de Teoria e História das Ideias da Universidade Nova de Lisboa, um seminário precisamente sobre a questão da objectividade, analisando quatro obras na altura muito debatidas nas universidades americanas8. Refiro este pormenor para acentuar o facto de ter sentido, ao contactar em directo com os ensaios de Mário Mesquita, que da sua perspectiva teórica ele estava articulando e aprofundando a longa experiência acumulada na sua própria vida profissional, em perfeita sintonia com a problemática e as abordagens que então dominavam os debates anglo-americanos. Em Lovaina, Mário Mesquita conheceu e studou a fundo a obra de Paul Ricoeur, que se tornou a sua principal referência teórica. Ricoeur foi, no seu tempo, o filósofo da tradição continental europeia mais em diálogo com o pensamento anglo-americano. 

Intromete-se aqui uma magnífica e marcante experiência de vida que me foi proporcionada, graças a uma iniciativa de Mário Mesquita, que de então para cá com muita frequência refiro como constituindo uma das minhas grandes aprendizagens sobre a questão da objectividade.  

Em 1990, MM tinha sido convidado a dirigir o então renovado Diário de Lisboa e, nessa qualidade, organizou um originalíssimo colóquio de revisitação do 25 de Abril visto pela comunicação social. Convidou jornalistas de todo o mundo que tinham feito a cobertura da revolução e dos eventos durante os anos quentes que lhe sucederam.  Pedira-lhes que, em retrospectiva, fizessem uma avaliação do trabalho por eles então realizado. Recordo a presença de representantes de The New York Times, da TVE, do Le Monde, do Izvestia, entre tantos outros. Nesse evento participaram também actores da revolução, como Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e o General Costa Gomes. Foi fascinante verificar como os jornalistas já não viam os acontecimentos como os tinham descrito na altura. Além disso, também os ouvimos desculparem-se confessando que as reportagens enviadas para as redacções nem sempre correspondiam ao que vinha a público. Ainda assim, o mais espantoso para mim foi ouvir os próprios intervenientes no processo revolucionário discordarem entre si sobre o que tinham dito ou feito. Aqueles dias no Forum Picoas constituiram para mim uma fabulosa e inesquecível lição. Dela dei notícia na crónica quinzenal que então publicava no Diário de Notícias9

Durante anos, insisti com  Mário Mesquita que impusesse a si próprio uma curta paragem de um semestre, a fim de se recolher a um ambiente propício à investigação e poder terminar a tese. Sugeri-lhe a Brown University e tratei de oficializar um convite, que lhe foi entregue. A oportunidade dar-lhe-ia a acrescida vantagem do livre acesso à bibliografia anglo-americana que, na verdade não lhe trazia nada de particularmente novo, mas lhe permitiria demonstrar exactamente isso: que o substracto teórico de toda a sua pesquisa estava inteiramente em harmonia, e à la page, com o diálogo internacional em vigor. Numa viagem aos EUA em que fez algumas intervenções em universidades, na Brown University apresentou uma comunicação sobre o sujeito no discurso jornalístico que deu azo a profundo e animado diálogo com o público, professores e alunos de pós-graduação que, em literatura, se ocupavam das mesmas questões. Se dúvidas prévias tivessem havido sobre a qualidade académica do conferencista, elas ter-se-iam dissipado em absoluto para rapidamente darem lugar a um sentimento geral de admiração e apreço. 

Não estou a precisar datas porque estes nossos diálogos arrastaram-se ao longo de anos e confesso que não conseguiria ser muito exacto nos dados, se tivesse de explicitá-los. Todavia um dos factores-chave terá sido a sua nomeação para a Directoria da Fundação Luso-Americana. Esse facto veio proporcionar-me renovado contacto frequente com ele. Nos seus anos de intervenção na criação e desenvolvimento da Escola de Jornalismo da Universidade de Coimbra os nossos encontros tinham-se espaçado, já que as minhas idas a Lisboa frequentemente coincidiam com as suas deslocações a Coimbra. Depois, na qualidade de membro do corpo directivo da FLAD, assumiu o que considero uma acertada visão da relação de Portugal com os Estados Unidos tendo como base de apoio fundamental as comunidades açórica e luso-americana na América do Norte. Por essa razão, vi-me envolvido nalguns dos seus projectos, como por exemplo o da intensificação de intercâmbios universitários de professores e alunos dos dois países, mas também a outros níveis, como o aproveitamento do legado cultural deixado pela Família Dabney nos Açores, e o estabelecimento do Forum Roosevelt. 

Pode não parecer, mas não foi meu propósito vir para aqui escrever a bibliografia de Mário Mesquita. Se fosse esse o caso, muitíssimo mais haveria a dizer. Pretendi tão-só saltitar entre cruzamentos das nossas trajectórias de vida. 

Atrás indiquei a intenção de referir a dimensão ética que atravessa toda a carreira de MM. De resto, quem o conhece de perto dispensa qualquer elaboração nesse domínio. Afirmo-o com base em repetidas experiências de conversas com amigos comuns, com antigos alunos seus e outras pessoas das suas relações profissionais e pessoais. As preocupações éticas de MM levaram-no desde muito cedo a desligar-se de poderosos nexos políticos que o teriam inevitavelmente catapultado aos mais altos cargos na vida pública nacional. Bem conhecedor das facilidades de que poderia ter beneficiado, MM demarcou-se do poder (dos poderes e/ou poderosos) sempre que a sua consciência lhe impôs limites a certas formas de relacionamento e colaboração. Regendo-se por valores e princípios herdados em casa (MM emociona-se, muitas vezes sem o revelar abertamente, quando fala ou lhe referem a figura tutelar de seu pai, que nele teve uma enorme influência). A sua entrada no Diário de Notícias como o mais jovem director de sempre de um diário português, quando aquele jornal ainda estava atolado em turbulentas tempestades políticas, revelou às partes envolvidas nos diversos litígios acumulados ao longo dos anos que podiam confiar no novo timoneiro do jornal, e que a sua idade em nada afectaria a sua performance. O carácter moral de MM impôs-se desde o começo como um nobre aliado das suas inegáveis qualidades de jornalista. Em pouco tempo, o jornal readquiria o seu antigo estatuto de voz autorizada a merecer devida atenção. Em curto tempo também, os jornalistas da casa tornaram-se seus aliados, não poucos deles juntando-se a uma crescente lista de admiradores. 

A sua digna postura ética testemunhei-a eu sempre, tanto nos momentos altos como nos de adversidade que a vida sempre oferece a qualquer. MM manteve sistematicamente altos os padrões morais que o regem, e isso permitiu-lhe equilibrar a justiça devida a todos com a liberdade a que têm direito, usando de uma isenção que, não sendo imparcial pois ninguém o é na medida em que todos somos entes subjectivos e com valores próprios, não se refugiou nunca em alienante neutralidade. Tomou sempre as posições que lhe pareceram as mais equitativas e consentâneas com os seus ideais de respeito pelos outros, por vezes em detrimento dos seus próprios interesses. 

Tenho essa como uma das marcas idiossincráticas da personalidade de Mário Mesquita, pois trata-se não de uma cereja em cima do bolo mas de um elemento estruturante do seu modo de estar e de ser. Pressenti-o de imediato desde o nosso primeiro encontro há cinquenta anos. Meio século de convívio apenas solidificou essa impressão inicial. Convenhamos ser tempo mais do que bastante para reconhecer que nos Deves & Haveres de Mário Mesquita é essa a sua indelével Regra da [Es]tabilidade

 

    Onésimo Teotónio Almeida 

 



 

 


terça-feira, 24 de maio de 2022

Uma memorável recordação da tão enternecedora da literatura de viagens.

 




Fernando António Almeida é nome cimeiro de quem nos convida a andarilhar por lugares apetecíveis, uns ao pé de casa, outros a raiar a fronteira ou a beijar rios ou oceano. Este seu livro intitulado Percursos de Fim-de-Semana, 1992, é uma das suas antologias que quem tem gosto pela viagem deve guardar nas estantes, pelas propostas que faz entre o Minho e o Algarve, são sugestões de alto sabor para Terras de Barroso ou Terras de Miranda ou de Alafões, nos campos do Mondego, até Tavira e seus arredores, depois passar por Lagos e Monchique. Um certo dia, fazendo releitura e à procura de um texto que me deixara vincada impressão, dei comigo a pensar que a descrição que ele faz do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros é texto imorredoiro, se acaso houver um levantamento do que há de melhor na nossa literatura de viagens este texto fatalmente ali terá lugar, possui todo o mérito literário, é digno de qualquer dos nossos grandes prosadores. Dada a sua extensão, aqui ficam alguns extratos expressivos, oxalá o leitor fique acicatado para procurar esta leitura fulgurante em qualquer biblioteca. Intitula-se este percurso “Ao sopro do mar”, vai-se deambular no maciço calcário:

“É um reino de pedra. É o reino da pedra. O reino da secura e da água oculta. O reino do calcário, branco, cinzento – rijo ou brando – seco. Terra de sal, também. Branco. Uma terra que ninguém quis, que ninguém tentou disputar – uma terra ingrata, escassa.

Duas terras principais, Aire e Candeeiros, escudado entre as duas, o planalto de Santo António. À Serra dos Candeeiros, não há ninguém que lhe não reconheça o dorso de pedra, cinza, redondo e alongado, a longa massa de pedra desnudada percorre a nascente da Estrada Nacional 1, entre Rio Maior e a Batalha.

 

Mário Beja Santos





domingo, 22 de maio de 2022

A Europa, entre o Congresso de Viena e a Ata de Helsínquia.

 



 

Dei comigo a pensar em que época na História da Europa ocorrera um fenómeno como este que presentemente vivemos de uma aparente coesão devido a uma agressão de um país a outro, parece que o continente, sem exceção, se quer precatar de novas conquistas, ninguém deseja que se mexa nas fronteiras. Digo aparente coesão porque não há na atualidade nenhum bloco ideológico constituído (nem se prevê tal hipótese) que atravesse todo o continente europeu até às fronteiras da Bielorrússia e da Rússia, não houve qualquer convenção internacional em que a generalidade dos povos europeus tivessem acordado em reagir drasticamente face à invasão da Ucrânia. E dei-me a questionar que turbulências parecidas houve na Europa nos dois últimos séculos. Assim cheguei a uma obra inesquecível na minha formação, saída da pena de um historiador de primeiríssima água, Jean-Baptiste Duroselle, ao tempo imbatível no estudo das relações internacionais e de uma profundidade exemplar no seu conhecimento da História da Europa; terei lido o chamado guia de Duroselle e pela primeira vez em 1976 e sempre o vasculho quando há uma questiúncula entre gregos e macedónios, servos e bósnios, húngaros e romenos, ou pretendo saber um pouco mais quanto ao processo de formação da Alemanha no II Reich, operação prodigiosa de Bismarck. Afinal, embora fora dos acontecimentos tão atuais, o que há de inextinguível neste livro de Duroselle? Quem sabe muito não esconde os seus instrumentos de trabalho nem as fontes consultadas, desvela a bibliografia que lhe pareceu a mais significativa. É impressionante o que ele oferece ao estudioso quanto à pesquisa das fontes, os instrumentos de trabalho, os livros que ele reputa por indispensáveis.

Tudo começa na Europa de 1815, Napoleão foi derrotado, houve que reconstruir a vida política do continente, encontrou-se consenso sobre o que se chamava a legitimidade e o equilíbrio europeu. Formaram-se alianças, Duroselle dá-nos conta da estrutura interna dos Estados e lembra-nos que a Europa de 1815 era legitimista, clerical, reacionária, aristocrática, fundada em desigualdades, mas estava a amadurecer-se para uma longa sucessão de revoluções. E daí, o historiador dá-nos o itinerário de ações e revoluções até 1871, vamos ter insurreições, os pobres agitam-se, desenvolvem-se sociedades republicanas, pululam as crises económicas, o recém-criado Reino Unido (1800), a França e a Prússia preparam-se para os grandes desafios da industrialização, da ascensão burguesa e da conquista imperial. É tempo de nacionalismos também, logo a Bélgica, a Itália, as nações emergentes da desagregação do Império Otomano.

Tema referencial é a diplomacia de Bismarck, ele vai jogar em todos os tabuleiros, da Rússia, passando pela Áustria até à Grã-Bretanha sucedem-se as alianças e as crises, assim chegaremos a uma era de crises entre 1904 e 1914. Em 1871 até aos inícios da I Guerra Mundial, contrariando todos os projetos conservadores, assistimos a um nível de democratização dos Estados, a uma melhor repartição da riqueza, os ministros deixam de ser recrutados na aristocracia, os partidos radicais ou socialistas exigem a educação universal gratuita, é um tempo de reformas, o que nós hoje chamamos Direita e Esquerda é obra deste tempo.

A I Guerra Mundial gera um novo quadro europeu, entramos numa era de democracias e totalitarismos, crescem gradualmente os perigos que irão desembocar na II Guerra Mundial e quando esta finda entramos num sistema bipolar, no equilíbrio do terror, numa alteração radical no sistema de alianças e na descolonização. Duroselle parte noutra direção, quais os novos problemas e como eles aparecem debatidos, a importância que vão ter a opinião pública, o nacionalismo, os grupos de expressão, a personalidade do homem de Estado. E temos as revoluções, os seus diferentes tipos, como se distinguem, quais as suas causas, as que não tiveram seguimento, as que se apresentaram como tal e em que as elites as dinamitaram ou jugularam, sem reação das massas populares. Trilhando caminhos indiscutivelmente ásperos, ele fala-nos da guerra e da paz, causas e falhanços dos vitoriosos, como ao longo deste período se procuraram evitar as guerras. E chegamos à colonização e à descolonização. Os países coloniais eram essencialmente os do Atlântico, mais tardiamente apareceram a Alemanha, a Itália, a Bélgica, os Estados Unidos e o Japão. São passados em revista os problemas do imperialismo colonial e como emergiu, através de elites ditas indígenas formadas nas metrópoles coloniais, a contestação e como se processou o antigo colonialismo na Europa, e como tudo desaguou na descolonização. E depois desta viagem galopante, e de uma síntese que só é possível a um historiador de grande visão e conhecimentos chegou o momento da conclusão: “A História é só uma e é total. Em qualquer processo político nós devemos procurar todas as explicações possíveis, superficiais e profundas. Iremos descobrir rapidamente que não há História Política, nem História Social, nem História Económica, nem História Militar, nem História Religiosa com autonomia. Há factos políticos, sociais, económicos, militares, religiosos, etc. Mas o encadeamento destes factos explica-se pelo todo. Toda uma parte da nossa vida passa à margem das decisões políticas, da intervenção do Estado, da hierarquia das autoridades legítimas. Mas toda uma outra parte da nossa vida é a de um homo políticus, passivo (forças irresistíveis que nos obrigam a pagar impostos, a ser soldados, a obedecer às leis) ou ativo: nós acreditamos que é preciso mudar a situação e nós atuamos, até ao extremo limite, pela via revolucionária. Se, por conseguinte, uma larga parte da nossa existência humana está metida nestas ligações políticas é porque a História Política existe, importante e interessante”.

O historiador tem como missão explicar o desenrolar da História, deve evitar toda a qualquer forma de dogmatismo, deve procurar explicações pluralistas, mesmo que chegue a conclusões diferentes do que foi o alinhamento das suas análises iniciais. Para progredirmos no estudo da História só se pode interpretar depois de fazer a análise dos factos.

Devo a Jean-Baptiste Duroselle este gosto pelo estudo da Europa, a recusa do dogmatismo, o mergulho no caleidoscópio, no pegar nas peças soltas e encontrar uma interpretação que me conduza a uma análise segura, mas nunca definitiva.

 

                                                                                                          Mário Beja Santos









Açores.






Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida







Quando o romance-problema se confrontou com a lógica cerebral de um detetive de génio.

 



 

No final dos anos 1920, uma dupla de primos deu à estampa o primeiro dos romances onde aparecia o detetive Ellery Queen, curiosamente escritor de romances policiais, insinuante e muito cioso da sua lógica dedutiva. A partir daí, apareceu um conjunto de obras que envolviam nomes de cidades ou países, chapéu romano, pó francês, ataúde grego, sapato holandês, cruz egípcia e, no caso vertente, laranja chinesa, este publicado em 1934. A trama destes romances-problema prende-se sempre com um ambiente um tanto claustrofóbico, o número de personagens é relativamente diminuto, há sempre um quadro que contextualiza a chegada à boca de cena de Ellery Queen, quando irrompe o crime vem então a polícia, com o inspetor Richard Queen, pai de Ellery, a capitanear a equipa do departamento de homicídios, e em todas as obras aparece o resmunga sargento Velie, com a sua pontinha de acinte, a tentar desfeitear o raciocínio deste detetive diplomado por Harvard. Estamos numa época gloriosa da literatura de crime e mistério, aqui se desenham quase a pena seca as personagens, há algo de teatral na sua entrada em cena, veja-se a descrição que se oferece do inspetor Queen: “O inspetor Queen assemelhava-se a um pássaro – um passarinho velho, de plumagem cinzenta, olhos estranhos e um bigode grisalho. Possuía também algo das aptidões do pássaro para estacar numa imobilidade de pedra quando as circunstâncias o exigiam, assim como a capacidade de se mover aos saltos, quando se tornava necessário agir com presteza. E nas ocasiões decisivas quase que chegava a pipilar. Era sabido que homenzarrões se encolhiam ao seu piar mais suave, pois, apesar do aspeto de pássaro, havia algo de impressionante naquele velho. E, por esta razão, os detetives sob o seu comando temiam-no e amavam-no.” 

Abre a cena no escritório de um editor de literatura e altamente conceituado colecionador de selos e joias. Um visitante sai do anonimato e pede para ser recebido pelo colecionador, vamos vê-lo encaminhado pelo secretário para uma sala, Donald Kirk andava por fora. Chega, é informado de que alguém o procura, parece que passou uma tempestade pela sala, está tudo do avesso, incluindo esse anónimo visitante, morto. Como foi possível? Ninguém entrou naquele espaço e ninguém dele saiu, assegurou veementemente o secretário. Ellery veio na companhia de Donald Kirk, tinha sido convidado para um evento, deparasse-lhe este insólito cenário onde não faltam duas lanças que ladeiam o cadáver e dá-se pela falta de uma tangerina. Na arquitetura do romance chegou o momento de pôr no palco um velho rabugento, um génio em línguas mortas, que move numa cadeira de rodas e anda para ali a maltratar verbalmente. O secretário, James Osborne, dá todas as explicações sobre a chegada do insólito visitante, aparece uma senhora com elevados conhecimentos da cultura chinesa, descobrir-se-á que há para ali uma elegante dama de sociedade que não passa de uma reles chantagista e ladra, o ignaro sócio de Donald Kirk, incapaz de um lampejo é expressivo nos comentários, e temos o clássico lugar da porta fechada, uma atração que outros autores cultivaram, como Edgar Wallace ou Frank Gruber ou S.S. Van Dine. O leitor fica logo dominado pela descrição daquele homem morto, que ninguém conhece: “Era o corpo rígido do homem corpulento de meia idade, cujo crânio calvo perdera o tom róseo e se tornara branco, respigado de vermelho, com fios gelatinosos que irradiavam de uma depressão escura no alto da cabeça. Tinha o rosto voltado para o soalho, e os seus braços curtos e gordos estavam contorcidos e metidos sob o corpo. Duas coisas estranhíssimas, de ferro, surgiam de dentro do seu casaco por detrás da nuca e, uma de cada lado da cabeça, pareciam como que figurando chifres”. 

Iniciam-se as diligências para entender aquele código de tudo estar às avessas, nada naquela sala deixara de ficar virado ao contrário. É inevitável o parecer do médico forense, terá havido para ali uma zaragata e depois um tiro fatal. Ellery vai perguntando, vai descobrindo que há segredos na vida familiar dos Kirk, parece que ninguém está de fora quanto à hipótese de ter assassinado o insólito visitante, a começar pelo próprio Donald Kirk, que se descobre ter um vulnerável álibi. No meio da tragédia, toda aquela gente janta numa atmosfera fúnebre o que se presumia ter sido um banquete. Fala-se muito da China, o leitor continua desorientado com tanta conversa labiríntica, mas já não pode perder a leitura febril, desaparecem livros hebraicos e nessa altura fala-se de um selo conhecido por Selo de Foochow, talvez uma das maiores raridades da filatelia, de valor incalculável, fazia parte do património do colecionador, aparece agora nas mãos de outra pessoa, lá se vão ouvindo argumentos para a troca de posse, Ellery Queen aproveita para nos dar uma lição pelos chamados selos “locais”, verdadeiros objetos filatélicos, pois a generalidade dos colecionadores interessam-se por selos de emissão nacional. E temos juras de amor, a ladra encostada à parede, tem cadastro internacional, andava a fazer chantagem, sabedora de um casamento tormentoso da irmã de Donald Kirk, conseguiu extorquir-lhe joias, qual Zorro o nosso Ellery Queen consegue arrebatar-lhe essas preciosidades. Nada se passa fora desta atmosfera claustrofóbica, a não ser umas conversas entre o inspetor Queen e o filho, avançamos, na maior das tensões para a revelação do crime, e é nisto que Ellery Queen lança um desafio ao leitor, uma autêntica provocação, pois diz-lhe: “Assegure-lhes que, neste ponto da leitura de O Mistério da Laranja Chinesa, estão na posse dos elementos essenciais à descoberta de uma solução clara do mistério. Devem, nesta altura, estar aptos a resolver o enigma do crime cometido na sala de espera do escritório de Donald Kirk. Serão capazes de os reunir e de, por um processo lógico de raciocínio, chegar à única solução possível?” O tanas, o leitor anda por ali atarantado e vai sorvendo as peripécias do desfecho final, tudo à moda, no próprio ambiente em que se dera o crime desvenda-se o engenho utilizado para a sala fechada, o porquê daquelas lanças, uma história de amor, ainda por cima malsucedido, em que a visada fica aturdida quando Ellery Queen denuncia o crime, quem matou confessa-se e salta pela janela em direção à morte. 

É este o fascínio da ilusão que provoca o romance, ficamos de boca aberta com as explicações dadas quanto à monstruosa tragédia engendrada por alguém que precisava de muito dinheiro. Para Ellery Queen é tudo simples: “Eu procurava um significado em todas as coisas, procurava um falso significado. Daí resultou que me pareceu necessário investigar todas as coisas que estivessem ao contrário, afinal o assassinato tivera fome e comera uma tangerina, trouxera o “Laranja Chinês”, selo valiosíssimo, que lhe custou a vida”. 

De leitura obrigatória, Ellery Queen é o sumo sacerdote da literatura de crime e mistério, de todos os tempos. 

 

  Mário Beja Santos 

 


 

 

 


terça-feira, 3 de maio de 2022

Gente obscura, práticas interditas, uma viagem pelo Estado Novo numa escrita voluptuosa.



  

As Pessoas Invisíveis, por José Carlos Barros, Grupo Leya, 2022, foi galardoado com o Prémio Leya 2021, é indiscutivelmente uma bela narrativa, tem como fio condutor várias décadas do Estado Novo, seremos embrenhados no mundo rural nortenho ao tempo da corrida ao volfrâmio, confrontados com práticas curandeiras e fervor supersticioso por gente supostamente miraculada, agiganta-se uma estranhíssima figura que tem tanto de anjo como de besta, paira por toda esta longa viagem uma atmosfera sobrenatural, onírica, de pesado recolhimento campestre, seremos induzidos até ao centro de um massacre colonial que ocorreu em São Tomé, o massacre de Batepá, 1953, prenúncio de que o colonialismo irá ter os dias contados. E tudo sob uma arquitetura ficcional com laivos de realismo mágico, segredos que aparecem num caderno que nos levam a crer que há ouro em barda por explorar naquelas terras que já conheceram a corrido ao volfrâmio, e bem à portuguesa, com um pendor metafórico, quando tudo leva a crer que se prepara uma corrida ao ouro que iria mudar a face de Portugal matam-se dois homens a tiro como outrora, por causa de um marco de terras desviado se matavam dois homens à sacholada. O júri destacou da obra premiada o trabalho da linguagem, o domínio de uma oralidade telúrica a contrastar com a riqueza do vocabulário – será talvez esta a joia suprema desta obra de pessoas a quem os média não dão visibilidade, não serão figuras de proa de qualquer socialite nem terão lugar no registo das personalidades públicas.

O ponto de partida e o ponto de chegada têm lugar no Alto do Bardo da Pedra, um pouco afastado de Vilarinho, entra em cena Xavier e as suas curas, há por ali um alemão a investigar, fareja o volfrâmio. Mas o mais significativo são as curas, logo Mariazinha Magalhães, a menina parecia um caso perdido, Xavier Sarmiento instalou-se em casa da família Magalhães, emerge o sobrenatural que se vai cruzar com a cura das plantas, mas a moldura do quadro tem muito mais que se diga: “Xavier não tinha dúvidas de que havia uma relação entre o movimento das mãos e o movimento dos astros. E que o rumor das águas subterrâneas se confundia com o de um canto ou de uma música. E que cada coisa fazia parte de um todo e que o todo dependia da mais ínfima coisa. E que tudo se relacionava com tudo. E que a luz e a pele não existiam se uma não existisse na outra. E que uma parte de nós vive na folha de uma árvore ou de um fruto, assim como uma folha de árvore ou um fruto é uma parte de nós”. Talvez seja uma consideração panteísta, mas o Xavier curandeiro lança-se ao trabalho para salvar a Mariazinha, logo uma dieta com base em leguminosas e vísceras, feijão, rim de coelho, coração de cabrito, grão de bico, chícharos, minúsculos bolos de milho untados com azeite e vinho tinto, Xavier anda à roda da doentinha sem descanso, sem uma pausa na vigília, a menina emerge na banheira donde saía o odor forte e acre das folhas secas de urtemige , doze dias de tratamento, a menina começou a reagir, há uma operação de cilindros, a menina está salva. Na vizinhança, é a febre do volfrâmio.

Não distante dali, está montado um pérfido negócio para atrair gente supersticiosa ou desesperada, jaz no seu catre Santa Joaninha Miraculada da Nossa Senhora das Dores de Averboim, negócio explorado por Luciano e Esmeralda, Xavier é também convocado para salvar a Santinha, fala-se em levitação, ou ele sonha que voava, certo e seguro Xavier trata das infeções da menina, talvez uma paixão camiliana, assolapada, tenha nascido entre ambos, escapam àquele lugar do negócio, andam a monte até encontrar refúgio, Luciano e capangas contratados andam-lhes no encalço, Luciano é abatido por aquele que recolheu, lá num ermitério, o terno casal fugitivo. Desenlace trágico, Xavier é preso, a alegada Santinha morre. O doutor Magalhães, sempre agradecido pelo que acontecera a Mariazinha, por portas e travessas, encaminha Xavier para a Ilha da Província (São Tomé), iremos viver em cheio aquele tenebrosos acontecimentos de uma revolta ficcionada que acabou em massacre, mas agora Xavier é um chefe de capangas, um matador, executa o plano dos colonialistas sem dó nem piedade, prende-se, executa-se, metralha-se, inventa-se despudoradamente que está em curso uma tramoia comunista, inventaram-se documentos, mais tarde Salazar será informado por um inspetor da PIDE, Álvaro Lince, de tudo quanto realmente ali se engendrou, demitiu-se e condecorou-se aquele malfadado governador. José Carlos Barros molda aqui uma figura invisível da maior envergadura, Pedro Serrano, um daqueles funcionários que gostam da mansa burocracia e que inopinadamente se revelam heróis, símbolos da resistência.

Xavier desaparece, voltamos a Vilarinho, porque toda esta narrativa parece que tem um fio hegeliano, sente-se uma certa analogia com os labirintos forjados por Jorge Luís Borges e todo aquele organograma que Gabriel García Marquéz montou para uma das suas obras-primas 100 Anos de Solidão, voltamos ao lugar donde tudo principiou, ali vive Manuel Joaquim Sarmiento, estamos no início de dezembro de 1980 e o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro morreu num desastre aéreo ocorrido em Camarate, há quem pense que houve atentado e queira incendiar uma guerra civil. Acontece que aquele alemão que andara por aquelas terras no tempo da corrido pelo volfrâmio escreveu apontamentos num caderno que apareceram em Berlim, assinava Klaus Mahlendorf, a empresa que analisa o caderno pensa que chegou hora da fortuna, há para ali ouro às carradas. Os acontecimentos precipitam-se, querem-se comprar as terras, afinal são do Manuel Joaquim, ele habita a antiga casa da tia Arminda e do pai Xavier, começa a chegar muita gente àquele ponto, desde um cacique da região, o doutor Afonso Pereira, há quem o vigie, o sentimento anticomunista é violento na região de Vilarinho, há quem desconfie que Manuel Joaquim seja comunista, o vigilante do doutor Afonso Pereira interroga-se se este não está envolvido numa conspiração, há mesmo um advogado, o doutor Firmino Neto, contratado por uma importantíssimo escritório de advogados, que recebe instruções para saber tudo, e sigilosamente, de quem é proprietário das terras, António Benites está cada vez mais assarapantado com tanta visita a Manuel Joaquim, imagina que está em curso um golpe comunista, homens engravatados, em situação caricata, dão uns com os outros à porta de Manuel Joaquim, o que os levou ali a todos é deitar mão aos terrenos do Vale das Freitas, é nisto que dois capangas se matam um ao outro, a lenda, o mito daquele Portugal dourado acaba num banho de sangue. É esta a prodigiosa história de As Pessoas Invisíveis que, pode muito bem acontecer, nos cruzamos todos os dias neste país que depois da pimenta da ilha e do ouro do Brasil e das riquezas de África sonha com minérios estrondosos nos mais imperscrutáveis subsolos, o fausto e o sabor da grandeza, acreditem ou não, tomará conta um dia deste nosso Portugal.

De leitura obrigatória.

 

Mário Beja Santos