quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O livro verde dos motoristas negros.

 
 
Uma vez já falei aqui de Ruby Bridges. E outra de Black Like Me, o livro. Agora outro livro. Não o Livro Verde do coronel Kadhafi, mas o Livro Verde do Motorista Negro. Em 1936, Victor Hugo Green (daí o nome?) publicou a primeira edição de The Negro Motorist Green-Book. Vende-se agora a edição fac-similada da edição de 1940 e a da edição de 1954. E há também um livro verde pós-racial, resenha de maus-tratos raciais de 2013 a 2016.
 



Isto veio tudo da Wikipédia
 
 
O Negro Motorist Green-Book era um GPS ou Tripadvisor de locais em que os motoristas negros que cruzavam a América, em trabalho ou lazer familiar, poderiam ser bem recebidos, entre outros conselhos e utilidades. Dos (poucos) locais em que não ouviriam um comentário racista ou em que não lhes barrariam a entrada devido à cor da pele. Muito útil. Tão útil que se tornou um best-seller. O seu autor, às tantas, largou a profissão que tinha, funcionário dos correios, para se dedicar a tempo inteiro à edição do livrinho verde, que com o passar dos anos começou a ser lido e consultado não apenas por negros mas também por motoristas brancos que queriam saber onde se comia ou dormia barato, onde se vendiam artigos no mercado negro, coisas assim. O facto de ter sido um sucesso de vendas era a prova provada da sua utilidade, coisa que nem sempre sucede com os sucessos de vendas. Neste caso, porém, era verdade. O livro vendia-se porque as pessoas precisavam dele, e não por acaso as vendas entraram em declínio em meados da década de 1960 (considerou-se que a sua leitura, entre o mais, acabava por perpetuar a discriminação e a segregação). Que hoje seja uma curiosidade vintage é um sinal dos tempos, como é um sinal dos tempos o surgimento de uma edição «pós-racial» desta obra. Também um sinal dos tempos: uma edição original de 1941 foi vendida por mais de vinte mil dólares num leilão. E, como informa a Wikipedia, existem mil e um projectos académicos em torno do livrito verde, que também já gerou literatura infantil, Ruth and the Green Book. Um passado que não quer passar?






 

Mais outra maravilha Taschen: colecção Corrêa do Lago.

 
 


quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Uma pugna milenar.

 
Jean de Brunhoff, A Viagem de Babar, 1932

 
 
         Não sei, juro que não sei, se Jean de Brunhoff foi leitor de Plínio. Ou de Damião de Góis. Mas gosto de pensar que, quando colocou o irritante rinoceronte Rataxés em confronto com o velho elefante Cornélius, em A Viagem de Babar (1932), o criador do celebérrimo paquiderme deu luz e cor a um mito antiquíssimo, o da inimizade entre elefantes e rinocerontes, narrado por Plínio, o Velho. Foi essa história romana que o nosso D. Manuel I pretendeu recriar em Lisboa, logo à chegada à cidade, em 1515, da rinoceronte Ganda, vinda das Índias. 
 

 

        
 
 
       Antes disso, os elefantes (alguns com torrinha no dorso!) encheram os bestiários medievais (uma boa selecção aqui) e não vou maçar os leitores com a história do karkaddan, uma criatura da mitologia persa que é, sem tirar nem pôr, um rinoceronte das Índias.
 
O karkaddan
 
      Só imploro um minuto de atenção para poder dizer – e, isso sim, já me parece digno de interesse – que muitas miniaturas persas figuram lutas entre elefantes e rinocerontes. Se houve tais lutas ou não, não sei. Mas sei que é espantosa coincidência que a inimizade entre os dois mastodontes esteja presente a Ocidente, desde tempos romanos, e a Oriente, em épocas persas e mongóis. Será que esta fake news foi de lá para cá, ou vice-versa? Terá existido, como agora se diz, um «diálogo intercultural»? Não sei. Só registo a invulgar afinidade, quanto a este específico tópico, das crenças vigentes em Roma e na Pérsia.
 
 
       Veja-se esta «Pugnae Ferarum», uma tapeçaria flamenga de c. 1575-1600 da lenda do karkadann, que o mostra à pugna com um elefante. A descrição do antiquário que a vendia (já foi comprada…) é muito, muito completa, vale a pena.   
 
 
Tapeçaria flamenga, c. 1575-1600
 
 
 
         Mais curioso é pensar que a refrega entre elefantes e rinocerontes, vinda de Roma, passando por Lisboa, tem actual e anual prolongamento entre 2 de Julho e 16 de Agosto num lugar chamado Piazza del Campo numa terra chamada Siena. Graças a Nela San e ao Miguel Seixas, descobri o rinoceronte da Contrada della Selva, que lá está na heráldica do bairro desde 1888, mas que fez parte do imaginário da cidade desde 1546, pelo menos, e lá chegou – atenção – por via portuguesa directa, sendo o rinoceronte de Siena uma reconfiguração da Ganda de Modofar, a bicha que D. Manuel enviou ao Papa, que naufragou perto de La Spezia depois de ter sido vista por Francisco I e após ter afugentado um jovem elefantinho, coitadinho, no centro de Lisboa. Já falei aqui do rinoceronte da Contrada della Selva.
 
Catedral de Siena, pavimento
 
         Pois em Siena, como me informou Nela San, há antiga tradição elefantina, que começa logo pelo chão. Espantoso chão, assombroso pavimento, o da Catedral de Siena. Daquelas coisas que só mesmo em Itália, como os mosaicos de Otranto, de que já falei aqui, ou os mosaicos romanos da Villa del Casale, de que falei aqui, sempre na maior e na mais atrevida das ignorâncias.
 


 
Nave central. A loba de Siena e o elefante de Roma



 
O pavimento da Catedral de Siena é uma coisa complexa demais para estarmos para aqui a falar dela em profundidade. (ver aqui, uma descrição ou aqui) Tem tal riqueza que até já se fizeram esquemas explicativos e aproximativos, como este que aqui publicamos. De salientar tão-só que o pavimento da nave central, feito circa 1373 e refeito 1864-1865, tem a loba de Siena e os animais das cidades aliadas, o cavalo de Arezzo, o leão marzocco de Florença (e o que haveria a dizer sobre este! Vide aqui), a pantera de Lucca, a lebre de Pisa, o unicórnio de Viterbo, a cegonha de Perugia, o ganso de Orvieto e… o elefante de Roma. Este nada tem a ver com Portugal, atendendo desde logo à data de feitura – século XVI, autor desconhecido.


 
O mesmo se não dirá do elefante da Contrada della Torre, em Siena, cuja simbologia é explicada aqui em douto pormenor. E, como aí se diz, para escolha do elefante com a torrinha às costas pesaram alguns factores, entre os quais o elefante Hanno, que D. Manuel enviara ao Papa. Mas também a ligação entre San Giacomo e os elefantes, patente na igreja românica de San Giacomo, em Trani (aqui), cujo portal tem um casal de olifantes do século XII. Como a igreja de Trana tem sido tão maltratada, vandalizada, incendiada, vamos mostrá-la a benefício de inventário:



 

A representação mais antiga está num sino no oratório de San Giacomo, da autoria de Antonio da Siena, sino que foi feito a partir do ferro fundido dos canhões tomados aos florentinos em 1526. Aliás, esse elefante foi desenhado por Sigimsondo Tizio (1458-1528) na sua Historiarum Senensium, com o castelinho no dorso.









 

Os emblemas visuais da Contrada della Torre


O mais espantoso?  Há poucos anos, na Biblioteca Vaticana (Chigi C-II-38-fol. 14), Ingrid D. Rowland, da Columbia University, Nova Iorque, descobriu o original de um desenho de autor anónimo, feito à pena, inserido por Sigismondo na Historiarum Senensium, na parte em que, em 1516, conta a história do rinoceronte de Lisboa, do seu naufrágio ao largo de Porto Venere e da história natural do rinoceronte em geral, como refere aqui Hermann Walter. 
 
Desenho de autor anónimo, 1516, na Historiarum senensium
 
 
Quanto ao elefante, em The Pope's Elephant, Silvio Bedini, como me chamou a atenção Nela San, refere que clérigos de Siena foram a Roma, ver a portentosa embaixada de D. Manuel: cf. ob. cit., pág. 44, falando dos cardeais de Siena e Aragão. E haverá ainda a explorar a pista deixada por um leitor do Malomil, a presença em Siena de D. Miguel da Silva (1480-1556), bispo de Viseu, nosso embaixador em Roma de 1514 a 1525. E, com tempo e vagara, ainda darei uma vista de olhos ao livro de Paulo Lopes, Um Agente Português na Roma do Renascimento (Lisboa, 2013). Fica a promessa, ou ameaça.
Portanto, não parece haver dúvidas que dois animais de origem portuguesa marcam presença anual no Pálio de Siena: o rinoceronte, da Contrada della Selva, e o elefante, da Contrada della Torre.




 
 
 
Ao competirem anualmente na Piazza del Campo, o elefante della Torre e o rinoceronte della Selva recriam uma disputa antiquíssima de  que já falava Plínio,  disputa que também está em miniaturas persas e mongóis, disputa que foi reconstituída por D. Manuel no coração de Lisboa e disputa que até as aventuras de Babar acabam por retratar. Dois animais de origem portuguesa, dois, no Pálio de Siena! Já agora, em 1775 apareceu outro elefante em Siena, durante 16 dias, história que podeis acompanhar aqui.


Siena, 1775

Não é tudo maravilhoso? Não percebo, palavra que não percebo, como anda tanta gente deprimida, ou deveras aborrecida, quando há tanta e tão bela coisa para ver e aprender!
 
 
António Araújo








 

Casebre de um emigrante açoriano na Pensilvânia.

 
 





Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida