quarta-feira, 26 de maio de 2021

A Janela Alta, de Raymond Chandler.

 




Raymond Chandler, 

provavelmente um dos maiores escritores norte-americanos de sempre


 


Vida movimentada, nasce em Chicago, educa-se em Inglaterra, onde não se deu bem, regressa aos Estados Unidos, é combatente no exército canadiano, fixa-se em Los Angeles, chega a administrador em empresas petrolíferas. Aos 44 anos, desempregado após a Grande Depressão, começa a escrever histórias policiais, ganha notoriedade, parece atraído pelo chamado “romance negro”. O seu primeiro romance intitula-se À beira do abismo, Chandler passa a ser visto com outros olhos até porque criou um detetive privado que passará a fazer parte da galeria das grandes lendas da literatura de crime e mistério, Philip Marlowe, o herói que o acompanhará noutras histórias de grande sucesso. Este detetive Marlowe é o espelho de Chandler e o seu oposto: bebe desalmadamente, vive dentro das normas, numa grande sobriedade, é desafetado e romântico, investiga em todas as direções e haverá um momento em que pespega a verdade dos acontecimentos na cara dos seus autores e volta à sua doce rotina, vai para casa, veste as suas roupas velhas e joga partidas de xadrez sozinho. É provável que o leitor iniciado se surpreenda com tantas referências a judeus e a certos preconceitos raciais, é fruto da época.

Que versa este espantoso romance intitulado A Janela Alta, Livros do Brasil/Porto Editora, 2021? O nosso detetive é contratado por uma ricaça para resgatar uma moeda rara. De imediato vamos ser envolvidos na definição de perfis e numa atmosfera de extravagâncias, bizantinices. Logo o local em que vive a ricaça, esta sempre com uma garrafa de Vinho do Porto na mão: “A sala era grande, quadrada, sombria e fresca e tinha a atmosfera sossegada de uma capela funerária. Tapeçarias nas paredes grosseiramente rebocadas, grades de ferro a imitar varandas por fora das janelas de sacada laterais, cadeiras pesadamente entalhadas com almofadas de veludo, costas de brocado e borlas de um dourado baço caído dos lados. Ao fundo, um vitral, quase do tamanho de um campo de ténis”. Daqui parte para a entrevista após dar referências à secretária Mrs. Elizabeth Bright Murdock, esta é premiada com a seguinte água-forte: “Tinha uma cara e um queixo enormes. O cabelo cinzento, cor de estanho, estava arranjado numa permanente rígida, o nariz duro tinha a forma de um bico e os olhos grandes e húmidos tinham a expressão compassiva das pedras molhadas. Tinha rendas à volta do pescoço, mas era um pescoço que ficaria melhor numa camisola de futebol. Vestia um vestido de seda acinzentada. Os braços nus eram grossos e eram sardentos. Ao lado dela estava uma mesa baixa com tampo de vidro e uma garrafa de vinho do Porto”. A ricaça quer saber os honorários, informa que tem um filho completamente idiota que fez um casamento estúpido sem o consentimento da mãe. Terá sido ela que levou o “Dobrão Brasher”. A moeda vale um dinheirão, é um exemplar fora de circulação. A senhora está inquieta porque um numismata telefonou-lhe para saber se lhe podia comprar a moeda, à cautela descobriu que a moeda levara sumiço. Tem início a investigação, encontrar uma amiga da esposa desaparecida, entretanto Marlowe apercebe-se que anda a ser seguido. Visita ao numismata, multiplicam-se as andanças. Marlowe descobre que o filho da sua cliente tem dívidas e que não são pequenas, acontece que o credor tem uma relação íntima com a amiga da esposa desaparecida, o credor pretende os serviços de Marlowe, são negados. Todos estes encontros são alvo de retratos poderosos, diálogos sóbrios, há muito humor cáustico, piadas e cinismo nas respostas. Em dado momento é como se estivéssemos a ler Steinbeck ou Faulkner, veja-se este primor: “Bunker Hill é cidade velha, cidade perdida, cidade miserável e cidade criminosa. Outrora, há muito tempo, era o bairro residencial mais seleto da cidade, e ainda estão de pé algumas das mansões góticas recortadas com pórticos amplos e paredes cobertas de telhas de madeira com as extremidades arredondadas e varandas envidraçadas de canto com torreões em agulha. Agora são todas pensões com os soalhos de parquê riscados, o brilhante polimento inicial gasto e as largas e vastas escadarias escurecidas pelo tempo e pelo verniz barato aplicado sobre gerações de sujidade. Nos quartos altos, as megeras das senhorias implicam com os inquilinos esquivos. Nos pórticos amplos e frescos, com os sapatos esburacados estendidos ao sol e a olhar para o nada, sentam-se os velhos com caras que lembram batalhas perdidas”.

Começam os crimes, irá ser baleado um jovem com pretensões a detetive que seguira Marlowe e lhe propusera parceria, na revelação do crime aparece um casal embebedado com a singularidade de a arma do crime estar debaixo da almofada da cama. É preciso talento a rodos para estar sempre a desenhar protagonistas, agora o Inspetor da Polícia, Jesse Breeze: “Era um homem grande, bastante barrigudo, com sapatos castanhos e brancos, meias descaídas, calças brancas com riscas pretas finas, camisa de colarinho aberto que deixava ver alguns pelos ruivos no cimo do peito, um casaco desportivo azul celeste que não tinha mais largura nos ombros do que uma garagem para dois carros”. O imbróglio ganha volume, vai ser assassinado o numismata, Marlowe recebe uma encomenda, alguém lhe envia o Dobrão Brasher. Aparentemente, a ricaça dá por findos os serviços de Marlowe, reaparecera a moeda, ela mal sabe que Marlowe também recebeu outra. No meio desta densa neblina, o detetive apercebe-se que há uma história de chantagem, há mesmo quem lhe proponha dinheiro generoso para estar calado. E Marlowe conhece a nora da ricaça, conversa esclarecedora, mais um perfil: “Tinha a boca larga e fria, o nariz pequeno, os grandes olhos frios, o cabelo escuro dividido ao meio por um risco largo e branco. Trazia um casaco branco por cima do vestido, com gola voltada para cima. Parecia mais velha, os olhos eram mais duros, os lábios pareciam ter-se esquecido de como é que se sorria”.

De novo reunido com a ricaça, aparece-lhe o filho que conta uma história da carochinha sobre a dívida, o desvio do Dobrão e como o recuperou. A polícia quer inteirar-se dos movimentos do detetive, este ajuda, vai dando pistas. Nestas movimentações, Marlowe descobre um falsário, ocorre uma nova morte e aproxima-se a hora da dedução final, há um velho segredo do passado, de uma janela alta alguém fotografou um abominável crime que origina chantagem e o uso de uma jovem inocente que leva regularmente dinheiro ao chantagista. Estamos em 1942 quando foi publicada A Janela Alta, ainda não era escandaloso escrever o que Chandler escreve: “O Dr. Carl Moss era um judeu grande e corpulento, com bigode à Hitler, olhos salientes e a calma de um glaciar”. Marlowe descobre a fotografia que é um móbil da chantagem bem como as razões de um suicídio, tudo vai contar à sua cliente e ao inspetor Breeze, há o final romântico de uma menina que volta para casa dos pais, a ricaça continua imperturbável a beber vinho do Porto, cada um parece seguir o seu destino, Marlowe veste as velhas roupas de trazer por casa e joga xadrez sozinho. O uísque nunca falta, ajuda a alta tensão entre os disparos. A Janela Alta é uma perfeição, digno dos aficionados da literatura de crime e mistério e de todos os outros que gostam de livros poderosos, inesquecíveis. 


Mário Beja Santos 




 

 

 



terça-feira, 25 de maio de 2021

O mais belo parágrafo da Literatura da Guerra da Guiné.

 



O Capitão Nemo e Eu, Crónica das horas aparentes, por Álvaro Guerra, Editorial Estampa, 1973, representa a despedida do escritor das temáticas da guerra da Guiné, território onde combateu e foi ferido. É uma obra injustamente esquecida, muito provavelmente porque ainda está marcada pela corrente do Noveau Roman, que tanto seduziu o escritor na primeira fase da sua carreira, hoje atrai mais os estudiosos, desorienta profundamente o leigo que nela mergulha. Álvaro Guerra despede-se e sai pela porta grande, vamos encontrar neste seu romance páginas admiráveis, logo a abertura:

“Que perdi a memória – dizem. E logo dão o nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro paredes brancas e no teto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos retângulos da porta e da janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas das rochas...”.

É o ferido que retoma consciência em ambiente hospitalar, e acrescenta: “Devo sujeitar-me aos horários dos remédios, às injeções, a ser colocado sob as placas de vidro dos aparelhos de radiografia e ao emaranhado de fios presos à cabeça, através dos quais é possível ler o meu cérebro…”. E vemo-lo na Guiné, fala na língua Fula, há por ali crianças acocoradas à nossa frente, ventres inchados entre pernas cruzadas, isto passava-se sobre o cheiro adocicado da terra da Guiné, e tudo se articula com outras histórias, num cosmopolitismo parisiense, que Álvaro Guerra conheceu, pois ali estudou e trabalhou antes de vir professar o jornalismo em Lisboa, no jornal República. Há reminiscências da infância, um pouco à semelhança do que o escritor praticou em obras anteriores, um carrossel de imagens que podem meter cenas taurinas, vida agrícola, a imensidão da lezíria. A memória anda à solta naquele hospital onde o ferido se trata, e o autor lembra um capelão militar que lhes procura incutir denodo e lançar para o bom combate: “Irmãos, longe dos vossos lares, das vossas famílias, das vossas noivas, de todos os entes-queridos, tendes por consolo e por razão o amor da Pátria e a fé em Cristo que aqui vos trouxeram para defender a terra dos vossos antepassados que vieram oferecer ao gentio selvagem, com suor e sangue, a verdade, a justiça e a fé em Deus Nosso Senhor. Vós sois os soldados de Cristo que combatem os infiéis, os ímpios. Vencereis, tal como São Jorge venceu o dragão. Que Deus seja convosco, meus bem-amados irmãos”. Depois, suportando mal os 47ºC à sombra, inundado num suor incrivelmente espesso, almoçava carne de vaca com molho picante, na messe. Aplicado, ruidoso, tasquinhando o bife, sem se distrair do apetite, lutava com a mão sapuda contra o permanente ataque dos mosquitos”.

O doente já se passeia de muleta, no jardim, à sombra de castanheiros e chorões, volta ao Forreá, a Contabane, de novo conversa na língua Fula, o espírito anda num vaivém, as feridas se hão de curar, há talvez feridas que nunca passem, e de novo o passado entremeado com tudo o que se passou naquele Sul da Guiné que levou Álvaro Guerra ao hospital, por ali ciranda um anjo branco que serve de ponte entre o passado e aquele encaracolado presente.

Estamos a caminho do parágrafo mais admirável de toda a literatura da guerra da Guiné. O alferes recorda a viagem de avião, tudo começou com uma manhã fustigada por vento gelado. “De tudo o que espreitei lá de cima, nas longas horas desse voo, se devem referir três pontos cruciais: a linha de espuma branca que separava o deserto do mar, uma ilha cor de ferrugem, sem vegetação nem água, onde o avião pousou e levantou; e o pântano onde o verde escuro do mato alternava com o quadriculado dos arrozais e os minúsculos círculos das moranças. Foi no meio desse pântano que o avião desceu e me deixou. Durante dois anos, por mais de uma vez, amaldiçoei os fidelíssimos enviados do infante que se aventuraram até à foz do Geba.

Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e a meio como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.

Aquele hospital ele sabe que a tudo o que se passou foi arrancado, entre a vida e a morte e confessa a alguém: “Ao princípio tinha medo de adormecer, porque chegavam os fantasmas, as explosões, os tiros, o sangue, o sorriso de Safi, uma aldeia a arder e os gritos das pessoas. Por fim, consegui olhar para a cicatriz, sem me lembrar de muitos pormenores. Pois é. Tudo passa. Por fim, pensei que tinha perdido definitivamente qualquer coisa que só agora julgo saber o que é”.

E segue-se a viagem a bordo do Nautilus, com o capitão Nemo. Nem tudo ficou para trás esquecido, como o autor adiantará: “Desmontar uma pistola metralhadora foi a tarefa mais complexa e inquietante que até hoje executei, talvez apenas superada pelo trabalho de a montar com correção. Experimentava depois uma falsa sensação de consciência em paz, ao verificar que a culatra oleada deslizava impecavelmente. Até ao último momento nunca me convenci que teria de puxar o gatilho, visando um homem, porque nunca o instinto foi tão ferozmente como quando tudo isso aconteceu, ao cair sobre mim uma chuva de balas. Se nenhuma delas me matou, alguma coisa ficou liquidada para sempre, e nunca mais um dever cumprido trouxe paz à minha consciência”. E o Nautilus prossegue viagem, mas o poder da memória é mais forte, e de novo se regressa à Guiné por uma outra viagem que até pode ser de caravela, e onde se guardam aspetos que maravilharam os primeiros descobridores ou aventureiros, como o voo fulvo do faisão, os grus emigrantes sobre as bolanhas, a gesticulação do macaco cão, e cruza-se com Mariama, à cabeça a roupa de lavar – Tanaala? No pindá? E como se estivesse profundamente angustiado, como criatura de Shakespeare, Álvaro Guerra interroga-se: “Se não é esta a minha terra, para que me fizeram aqui vir? Aqui se fecha o livro da memória guineense, ou quase, porque somos forçados a interpelar o que ali se passou, como ele o faz e descaradamente naquele ano de 1973 em que pontificava a censura:

“Perguntando nós que guerra era aquela, sempre ouvimos como resposta grandes palavras ocas e, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao Jardim Zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda lá estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento”. E tanto quanto me é dado saber, para meu pesar, este escritor vila-franquense a quem a sua terra natal lhe dedicou uma bela escultura perto da nova biblioteca à beira-rio, como se contrariasse as recordações dessa guerra feroz e persistente, não voltou à Guiné, pelo menos em literatura, ficou aquele parágrafo que é ímpar e tudo leva a crer que jamais será ultrapassado. 


Mário Beja Santos 

 






quinta-feira, 20 de maio de 2021

Último dos inocentes, protector de Portugal, inimigo dos jesuítas.

 

 


Uma “comemoração” da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, de Maio de 2021

 


A 18 de Maio de 1721, a família Carillo foi quase dizimada pela Inquisição Espanhola. No auto-de-fé que se celebrou no Convento de São Domingos em Madrid foram queimadas duas gerações e um troço de madeira, representando uma terceira. Entre os supliciados estava a mais velha das relaxadas ao braço secular na infame história daquela instituição: Maria Barbara Carillo, 95 anos, “relapsa, convicta, y pertinazmente negativa en sus errores1

 

Além de Maria Barbara, morreram o seu filho Antonio e a nora Ana Maria de Morales. Foi ainda queimada a estátua da filha destes, Ana Carillo, já morta mas que, à imagem dos pais e da avó, foi representada com o sambenito e coroça dos penitentes.

 

Auto de fe de la Inquisición, Francisco de Goya

 

Escapou da fogueira Gaspar Carillo, irmão de Ana, 36 anos, solteiro e sem profissão. De sambenito, abjurou a sua fé judaica e, sem bens, condenado a prisão perpétua, foi 7 anos para os remos das “galeras de su Majestad”, sem salário, para ser mais tarde restituído à prisão.

 

Trezentos anos depois, serve-nos de pouco consolo, aos cristãos do século XXI, saber que em determinados momentos foram os monarcas, mais papistas do que os papas, a perseguir os judeus ou os cristãos-novos sob a bandeira da Inquisição.

 

Exemplo disso foi o que se passou cinquenta anos antes desse auto-de-fé quando, noutro Maio, o de 1671, outra feroz perseguição antijudaica se seguiu ao roubo do Senhor da Igreja de Odivelas. Tal impacto – até internacional – teve no seu tempo que até nome de localidade veio a dar: o Senhor Roubado.

 

Tendo sido os judeus acusados do roubo das hóstias consagradas, em abstracta presunção de culpa, e perante a pressão popular, D. Pedro, Príncipe Regente desde 1667 em vez do seu incapaz irmão D. Afonso VI, proibiu aos cristãos-novos o exercício de cargos públicos e ainda de andarem de coche e a cavalo, de vestirem seda e usarem adornos com metais ou pedras preciosos.

 

Mesmo depois de se ter provado que a “nação hebraica” estava inocente e que tinha sido “um rústico, um jovem sem cultura e sem doutrina”2, um vulgar ladrão, possivelmente bêbado, que roubara a igreja sem perceber a gravidade do que fazia, as perseguições aos cristãos-novos, que estavam até então bastante integrados na sociedade, continuaram.

 

Veio a ser o Papa a apelar, sem sucesso, ao perdão geral dos conversos. A Inquisição acabou suspensa por Roma por causa dos abusos locais e a perseguição a judeus e a cristãos-novos foi um foco de tensão permanente entre Roma e a corte de Lisboa de então.

 

* * *

 

Nos últimos anos do seu longo reinado (quase 39 anos, dos quais 16 de regência e 23 em seu próprio nome), D. Pedro II contou com a imponente presença em Lisboa da sua irmã, D. Catarina de Bragança, a única portuguesa a sentar-se até hoje no trono de Inglaterra.

 

Por romântica que seja a ideia de que foi por sua influência que o chá, a mais britânica das tradições, se tornou popular, D. Catarina foi na realidade profundamente impopular no país onde lhe coube reinar.

 

Charles II and Catherine of Braganza c.1662, gravura comemorativa do casamento de Carlos II de Inglaterra com a Infanta D. Catarina, P STENT, Royal Collection Trust

 

 

Mal-amada pelos ingleses, traída compulsivamente pelo marido, perseguida por ser católica, foi, para cúmulo, incapaz de dar um herdeiro legítimo a um rei que tinha uma dúzia de filhos bastardos e precisava de consolidar uma dinastia acabada de restaurar após a breve experiência republicana de Cromwell.

 

E se em Portugal e em Espanha, por aquele tempo, se perseguiam os judeus, em Inglaterra eram os católicos o alvo da caça.

 

A questão religiosa está entranhada no ADN institucional inglês de forma quase imorredoira, tendo permitido, nos últimos 500 anos, os mais espantosos assomos de catolicismo e de anti-papismo. Basta pensar que há 500 anos, em 1521, Henrique VIII publicava o seu Assertio Septem Sacramentorum, uma apaixonada defesa dos Sete Sacramentos contra os ataques de Martinho Lutero.

 

Por esta prosa o Papa Leão X lhe deu o título de Defensor da Fé, que os monarcas ingleses usam orgulhosamente até hoje, embora já não sob a alçada papal. Claro que o mesmo Henrique VIII, para se divorciar de Catarina de Aragão, renegou o Papa e a Igreja daí a poucos anos. Os reinados que se seguiram foram de guerra, morte e tensão social em abundância. A questão religiosa tampouco se resolveu com o longo e glorioso reinado anglicano de Isabel I.

 

O sucessor da Rainha “Virgem”, o jovem Rei da Escócia, Jaime VI, parecia ser o sonho do ecumenismo: baptizado católico, crescido presbiteriano escocês e finalmente convenientemente atraído pelo anglicanismo que lhe garantiria o trono inglês onde reinaria como Jaime I.

 

Nos anos seguintes, o catolicismo perseguiu os reis ingleses com ferocidade prosélita. Jaime casara com uma princesa dinamarquesa e  luterana, mas Ana da Dinamarca acabaria por se converter à fé de Roma. O filho de ambos, Carlos I, casou com uma princesa francesa e católica – o que foi em si mesmo um dos condimentos da Guerra Civil que se travou no seu reinado e lhe custou a cabeça.

 

Já depois da Restauração, o neto de Jaime I, Carlos II, casou com D. Catarina de Bragança, infanta portuguesa e católica, tendo o Tratado de Casamento estipulado expressamente que a noiva poderia reter a religião católica – em troca de uma fortuna em dinheiro e ainda de Bombaim e de Tânger...

 

The Apotheosis of Catherine of Braganza 1675-c.1684, Pintura de Antonio Verrio (c. 1639-1707) no tecto da Câmara da Rainha no Castelo de Windsor, descrição completa no site da Royal Collection Trust

 

 

Perante esta sucessão de casamentos com católicas, era quase inevitável que o passo seguinte se desse: o irmão e herdeiro do Rei, Jaime, Duque de York, reconciliou-se com Roma. Viúvo e pai de duas filhas, Jaime casou com Maria de Modena, uma princesa italiana e católica e jovem. Furioso com a conversão do irmão e ciente da resistência que ia gerar em Londres, Carlos II orquestrou o casamento da sua sobrinha Maria, filha mais velha de Jaime, com o seu sobrinho Guilherme, Príncipe de Orange e soberano dos Países Baixos, filho de uma outra irmã sua e, sobretudo, protestantíssimo.

 

Contudo, a corte sentiu como os papistas ganhavam terreno. O Parlamento ameaçou retirar o Duque de York da linha sucessória e a Rainha D. Catarina foi falsamente implicada numa Conspiração Papista em 1678, acusada de tentar envenenar e matar o marido. O Parlamento chegou a decidir levá-la a julgamento, o que motivou protestos veementes do Regente de Portugal e o envio de uma embaixada a Londres.

 

As ordens religiosas e em especial a Companhia de Jesus, braço armado de Roma, voltaram a sofrer na pele. Nos quatro anos que demorou a demonstrar a total falsidade da denúncia da Conspiração, pelo menos 35 inocentes foram executados, a maioria dos quais jesuítas, com vários outros a morrer na prisão. Tudo acompanhado pelos incentivos de uma multidão sedenta de sangue católico, ainda que inocente.

 

Carlos II, pessoalmente responsável por desmascarar o autor da falsa acusação, nunca duvidou da lealdade da Rainha D. Catarina. Ter-se-á convertido ao catolicismo no leito de morte, apesar de ter sempre apoiado a facção anglicana do Parlamento e o endurecimento das leis contra os católicos.

 

The solemn mock procession of the Pope Cardinalls Jesuits fryers &c: through the citty of London November the 17th. 1679. Panfleto satírico anti-católico, 1680. EB65 A100 680s4, Houghton Library, Harvard University


 

A True Narrative of the Horrid Plot and Conspiracy of the Popish Party (1679). Panfleto satírico sobre a Conspiração Papista, procurando ridicularizar a denúncia, Royal Collection Trust

 

Foi o irmão e sucessor de Carlos, Jaime II de Inglaterra e VII da Escócia, a sofrer as consequências desta genética atracção fatal pelo catolicismo. Foi coroado com Maria de Modena em 1685 numa cerimónia anglicana, ainda que ambos fossem católicos. D. Catarina de Bragança, agora Rainha-Viúva, continuou em Inglaterra, onde o novo Rei foi amolecendo as leis contra os católicos e perseguindo anglicanos, o que havia de se revelar fatal.

 

Em Junho de 1688, ao fim de três anos de reinado e dez de casamento, a Rainha Maria deu à luz um príncipe saudável. Jaime, herdeiro do trono desde o seu nascimento foi alvo, naturalmente, de insistentes rumores: de que não era filho do Rei e de que o bebé da Rainha era nado-morto e um impostor tinha sido posto na cama dentro de uma escalfeta.

 

O rumor da escalfeta foi tal forma sério de que o Rei teve de publicar testemunhos de dezenas de pessoas que haviam assistido ao parto para o desmentir. Entre as pessoas dadas como presentes no parto, a Rainha-Viúva Catarina3, que havia de ser madrinha no baptismo, em Outubro, sendo padrinho o Papa, representado pelo Núncio4.

 

Em Novembro do mesmo ano, Guilherme de Orange, genro do Rei, invadiu a Inglaterra para garantir que o Protestantismo não era suplantado e para verificar os rumores sobre o Príncipe de Gales. Com pouca resistência e ajudado pela notícia da fuga da Rainha e do pequeno Príncipe para França e da tentativa de fuga do Rei, Guilherme chegou a Londres a poder dizer que não queria ser rei. No ano seguinte, o Parlamento legitimou a invasão estrangeira e o golpe.

 

Os ingleses adjectivaram-na, romanticamente, como Gloriosa: a revolução que substituiu os herdeiros legítimos do trono por um soberano estrangeiro, por motivos religiosos. 

 

* * *

 

D. Catarina continuou a viver em Londres mesmo depois da Revolução Gloriosa, nos primeiros anos do curto reinado conjunto (uma originalidade inglesa) dos Reis Guilherme III e Maria II, ambos reis por direito próprio. As tensões por causa do seu catolicismo não cessaram e a Rainha-Viúva partiu de Londres em 30 de Março 1692, sem aparato e não deixando saudades5.

 

A corte de Lisboa recebeu-a de braços abertos em 20 de Janeiro de 1693 e quando D. Pedro II ficou viúvo pela segunda vez e doente ou ausente, foi a sua irmã a assumir a regência. Fê-lo em dois períodos: em 1704 e 1705. Ao lado da antiga soberana, os seus sempre fiéis jesuítas.


 

Katharine Queen Dowager c.1685-1705, Mezzotint de D. Catarina de Bragança como Rainha-Viúva, ISAAC BECKETT (1653-1719), Royal Collection Trust

 

 

As relações entre Portugal e a Santa Sé eram especialmente importantes para o Rei D. Pedro II, que procurava uma estabilização depois do reconhecimento da independência pelo Papa, o que aconteceu apenas depois da assinatura do tratado de paz com Espanha.

 

O vil metal haveria, contudo, de esfriar as relações. Os quindénios eram pagamentos devidos à Santa Sé a cada 15 anos pelas congregações religiosas. Num braço de ferro que havia de se estender até bem entrado o reinado do Magnânimo D. João V, Roma foi exigindo o pagamento de dívidas em atraso do tempo dos Filipes e a regularização dos pagamentos de todos os colégios jesuítas, incluindo os que se tinham associado ao padroado real. O Rei recusava que os colégios sob a sua alçada tivessem de pagar tributos a Roma, fiando-se porventura nas palavras de Cristo e vendo-se como César.

 

Em 1698 chegou a Portugal um novo Núncio Apostólico, o Arcebispo Michelangelo Conti, que haveria de presidir ao clímax desta contenda. Conti tentou pressionar o novo Provincial dos Jesuítas ameaçando-o com a remoção do cargo caso não pagasse os quindénios, ao que o padre Domingos Nunes terá respondido que seria um favor que lhe fazia, como a qualquer outro a quem aliviassem de tarefa que “lhe rendia tão pouco”.

 

Perante a humilhação continuada, Roma passou a medidas mais severas e decretou a proibição da admissão de noviços pela Companhia, que entrou em vigor em Setembro de 1704. Pela mesma altura, D. Catarina estava Regente por ausência do irmão, envolvido na Guerra da Sucessão Espanhola. O Núncio Conti, entendendo a regência como eventual momento de fraqueza da posição real, terá exigido com maior veemência ao Provincial o pagamento devido.

 

À Rainha D. Catarina, sempre rodeada de jesuítas, não lhe escapou a afronta. Inspirada quiçá pelo anti-papismo que a perseguira em Inglaterra, proibiu o Núncio de entrar no Paço, restringiu-lhe privilégios diplomáticos e escreveu ao Papa protestando pelo que considerou ser “injúria à sua pessoa e à do rei, como um desprezo do seu sexo e menoscabo das ordens reais”6. O momento de maior tensão entre Portugal e a Santa Sé do reinado teve por protagonista um argumento de discriminação sexual por parte de uma rainha vítima de persistente discriminação religiosa.

 

D. Pedro II retirou as ordens da irmã contra Conti assim que reassumiu o poder. D. Catarina morreu no fim de 1705 mas os jesuítas não pagaram os quindénios. Conti foi nomeado Cardeal em meados de 1706 e foi chamado ao Paço, em finais do mesmo ano, para dar a extrema-unção ao Rei, o que fez, absolvendo-o dos seus pecados. Foi já D. João V a impor-lhe o barrete cardinalício e o Núncio foi designado, ao regressar a Roma, Cardeal-Protector de Portugal.

 

Bartomoleu de Gusmão apresentando o seu protótipo ao Rei, à Rainha e ao Cardeal Conti, Bernardino de Souza Pereira, Museu Paulista

 

No anos que por cá permaneceu até regressar aos Estados Papais, o Cardeal Conti assistiu deleitado aos ensaios da famosíssima passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão7, sacerdote de formação jesuíta que mais tarde havia de cair nas malhas insidiosas da lusa Inquisição. O termo do “longo e deplorável litígio” dos quindénios, como lhe chama a História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, só aconteceria em 1716. Como sabemos, para os jesuítas o pior estava ainda para vir.

 

* * *

 

No preciso dia 18 de Maio de 1721 em que a judia Maria Barbara Carillo era barbaramente queimada aos 95 anos de idade, um novo Papa era coroado na Basílica de São Pedro: Michelangelo Conti, Cardeal-Protector de Portugal8.

 

Tinha sido escolhido 10 dias antes pelo Conclave dos cardeais eleitores por unanimidade – descontado o seu próprio voto noutro cardeal. Escolheu para seu nome pontifício um nome que até hoje não voltou a ser usado por qualquer Vigário de Cristo: Innocentius, no latim papal; Inocêncio, no nosso vernáculo.

 

A inocência,

 

1. Qualidade ou estado de inocente.

2. Ignorância do mal; pureza; simplicidade, ingenuidade.

3. Isenção de culpa.9

 

é uma qualidade que, pelos padrões contemporâneos, dificilmente alguém negaria a Maria Barbara Carillo, condenada por seguir a sua fé, como continuam a ser tantas pessoas até aos dias de hoje, cristãos, judeus e muçulmanos pelo mundo fora.

 

Se à partida dificilmente se poderia dizer que Michelangelo Conti era culpado ou indigno do nome que escolheu, a verdade é que a autoproclamação da inocência, seja enquanto ignorância do mal ou enquanto pureza ou simplicidade, dificilmente será pelo menos compatível com a humildade que se exige a qualquer seguidor de Cristo. Ingénuo, depois do que vira em Portugal, também já não era.

 

Innocentius XIII P.M., Gravura do Papa Inocente XIII, Jacob Frey, British Museum

 

A escolha de nome papal pelo Cardeal Conti teve em conta raízes familiares profundas. Foi o quarto – e último – Papa da poderosa família Conti di Segni. O primeiro pontífice da família, Lotario dei conti di Segni (1161-1216), tinha escolhido reinar como Inocêncio III, ao já então longínquo tempo dos nossos D. Sancho I e D. Afonso II.

 

A solene cerimónia de coroação na Basílica de São Pedro foi descrita em pormenor para as cortes europeias e a Gazette francesa publicou o relato a 14 de Junho, detalhando cada passo, cada ornamento e paramento, cada gentilhomem e cardeal, o sic transit gloria mundi repetido três vezes, a coroação com a tiara e a primeira saída do Vaticano sob grandes aclamações10.

 

Para os que esperavam candura ou inocência do Papa Inocêncio XIII, o curto pontificado terá sido uma desilusão. Apesar da sua educação num Colégio da Companhia de Jesus em Roma, Conti tinha ficado mal impressionado com a atitude dos jesuítas em Lisboa. Considerava-os, muito provavelmente, relapsos, convictos e pertinazmente negativos nos seus erros, para parafrasear a sentença de Maria Barbara.

 

Na condenação que reiterou do uso do rito chinês, em que os missionários jesuítas misturavam práticas confucianas para melhor evangelização dos povos da Grande China, Inocêncio aplicou de forma radical o único remédio que vira funcionar em Portugal: proibiu a admissão de noviços até que ficasse provado que não continuavam a celebrar no rito chinês.

 

Provando-se pelos seus actos ainda menos inocente, no sentido de puro, dos três cardeais que Inocêncio nomeou, um era seu irmão. E dos três beatos que proclamou, um era da sua família.

 

Neste emaranhado de histórias cruzadas, importa referir que Inocêncio XIII confirmou o apoio de Roma ao deserdado Jaime Stuart, que teria nascido para a realeza numa escalfeta e então se proclamava, desde a morte do pai em 1701,  Jaime III de Inglaterra e VIII da Escócia. A Igreja apoiaria aliás a pretensão dos católicos Stuart e as suas tentativas de retomar a coroa até à morte de Jaime, em 1766, só então reconhecendo a dinastia dos protestantes Hanover, que ainda hoje reinam sob o nome de Windsor.

 

* * *

 

O que resta, nos nossos dias, deste infindável romance?

 

A Basílica de São Pedro conserva um monumento aos Três Stuart – Jaime III e os seus dois filhos: Carlos, o Bonnie Prince Charlie que invadiu a Escócia em 1745 e quase chegou a Londres, e o Cardeal Henrique Stuart. Os jacobitas (seguidores de Jacobus, Jaime em latim) – mas já não o Papa – reconheceram-nos como Carlos III e Henrique IX de Inglaterra, respectivamente.

 

Surpreenderá, contudo, que mais de 300 anos depois haja ainda fiéis da causa jacobita, ou seja, pessoas que acreditam que o legítimo soberano inglês e escocês não é a veneranda senhora que ali se senta há quase 70 anos, mas antes o actual Duque da Baviera, Chefe da Casa Real bávara, descendente de Carlos I de Inglaterra. E, por mais insólito que possa parecer, será provavelmente um futuro Príncipe reinante do Liechtenstein a herdar a pretensão jacobita.

 

As mais duras leis anti-católicos foram removidas por iniciativa do Duque de Wellington em 1829, durante o reinado de Jorge IV, apesar da oposição do Rei. A partir de então os católicos voltaram a poder ser eleitos para o Parlamento. Porém, só muito recentemente, em 2013, se alterou uma cláusula do Act of Settlement de 1701, que retirava da linha de sucessão ao trono quem casasse com um católico. O trono, esse, continua interdito a papistas.

 

Os jesuítas, por sua vez, depois de verem a sua ordem extinta e perseguida, continuam a ser peculiares em muitas das suas abordagens e não raro envoltos em polémica. Pertinazmente pouco dados à ortodoxia e à rigidez litúrgica, cumprem à risca a premonição de uma das testemunhas da Conspiração Papista: “The Jesuits fear neither death nor danger, hang as many as you will, others are ready to take their places”.

 

Em 2013 um jesuíta foi pela primeira vez eleito Papa: Jorge Mario Bergoglio, antigo Provincial dos Jesuítas na Argentina, escolheu como nome Francisco, em honra do santo do despojamento. Às voltas com a atracção humana e curial pelo vil metal desde o início do Pontificado, o último motu proprio que assinou impede os membros da Cúria, cardeais incluídos, de receber presentes que valham mais de €40, o que em Roma não deve dar para um ramo de flores silvestres.

 

A Inquisição foi gradualmente reconhecida como contrária às leis de Deus e dos Homens e extinta nos diferentes países ao longo do século XIX. Mas os seus métodos vieram a ser amplificados de forma trágica pelos regimes totalitários e ditatoriais do século XX. Até os Familiares do Santo Ofício encontram eco nos informadores das polícias políticas. As mais recentes notícias sobre as perseguições no seio da Academia pelo mundo fora, procurando coarctar a liberdade de expressão e levando não raro à exposição e tentativa de humilhação pública de quem se desvia da linha de pensamento autorizada pela nova bitola de consciência, são exemplo de que o espírito inquisitório sobreviveu nos mais inusitados fóruns.

 

Também as perseguições religiosas seguem pelo mundo fora. O anti-judaísmo transformou-se em anti-semitismo e continua a brotar nos sítios mais inesperados. As perseguições aos católicos seguem o curso dos séculos anunciado por Cristo no Seu tempo: “Se Me perseguiram a Mim, também vos perseguirão a vós.” (Jo 15, 20)

 

Os autos-de-fé, por sua vez, continuam hoje numa rede social perto de si – não já passíveis de descrições eloquentes como a de Voltaire, a de Dostoevsky ou a mais completa, de Saramago no seu Memorial do Convento.

 

Chamam-lhe nos nossos tempos cyberbullying e, como acontecia com os autos-de-fé originais, dispensam prova e os assistentes pouco se importam com a culpa. Turbas sedentas de sangue digital, humilham, caluniam, desprezam e riem, gozam, fazem justiça pelo insulto em verdadeiras caças às bruxas – com os mais variados pretextos e com um fervor próprio dos assistentes às fogueiras dos séculos idos.

 

Porventura tão inocentes quanto as perseguidas pela Inquisição, nas veias das vítimas do cyberbullying corre sangue real (no sentido de verdadeiro) e não digital, e não raro sofrem consequências físicas do abuso digital.

 

Perante essa realidade, em Portugal aprovou-se recente a pomposamente designada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, no essencial um corpo proclamatório inútil e vago de lugares comuns para fazer manchetes nos jornais e provar, segundo o preâmbulo do projecto de lei, que estamos na vanguarda dos Direitos Humanos.

 

Trata-se, no essencial, de uma inconsequente proclamação dos referidos direitos – sem definição de regras para os garantir ou para evitar o abuso dos mesmos, apesar das leituras que encontram no diploma a promessa do regresso da censura, agora na era digital.

 

O corpo normativo concreto que permita a acção das autoridades e que eficazmente puna o abuso, o cyberbullying, ficou por fazer. Como falta, naturalmente, um incentivo palpável a uma literacia digital que eduque e dessa forma possa prevenir o abuso – ou sequer transmita às pessoas a consciência desse abuso que, por ser difuso e digital, passa por vezes despercebido.

 

Muito mais fez por esta causa Cristina Ferreira, rainha dos media, quando há tempos lançou um livro com um provocador título, a alertar para essa realidade. Não tendo lido além da sinopse, creio que é um contributo importante. São já demasiado longas as listas de pessoas que, tendo sido vítimas de bullying, puseram termo à vida.

 

Olhando à História, percebemos que cada uma dessas vítimas não foi a primeira cujo sangue inocente foi derramado. O mundo que hoje nos rodeia, exacerbado na dissensão, na violência e na intolerância, permite-nos perceber, também e infelizmente, que não será a última.

 

Ademar Vala Marques

Maio 2021

 

 

 

1 RELACION DE LOS REOS QUE salieron en el Auto particular de Fè, que el Santo Oficio celebrò en la Iglesia de el Convento de Santo Domingo el Real de esta Corte, el Domingo diez y ocho de este presente mes de Mayo de 1721. 1721

 

2 Lourenço, Maria Paulo Marçal, D. Pedro II, 2007.

 

3 Gazette du 3 Juillet 1688.

 

4 Gazette du 6 Novembre 1688.

 

5 Uma referência diminuta na London Gazette noticiou o seu próximo embarque para Calais, para começar o seu regresso a Lisboa, viajando pelos reinos católicos de França e Espanha.

 

6 Rodrigues, Francisco, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Volume 3, Capítulo VI, Porto 1944.

 

7 Tirapicos, Luís Artur Marques, Ciência e diplomacia na corte de D. João V: a acção de João Baptista Carbone, 1722-1750, Lisboa, 2017.

 

8 Na London Gazette de 10 de Junho houve referência ao facto de a corte portuguesa estar “very pleased” com a eleição do Papa, antigo Núncio em Lisboa.

 

9 "inocência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021.

 

10 Gazette du 14 Juin 1721.

 








Cristo com carabina ao ombro.

 







Cristo com carabina ao ombro, por Ryszard Kapuściński

 

Mário Beja Santos

 

Reconhecido por vozes autorizadas como um dos grandes mestres do jornalismo moderno, repórter empolgante e dotado de um poder descritivo fractal que agarra o leitor do princípio ao fim, em Cristo com Carabina ao Ombro, Livros do Brasil, 2021, de Ryszard Kapuściński pode ser agora apreciado de um trabalho que teve a sua primeira edição polaca em 1975 e que nos leva a três cenários distintos, marcantes na época e que desgraçadamente continuam atuais: o conflito israelo-palestiniano, as ditaduras da América Latina e a luta de libertação em Moçambique.

O repórter viaja acompanhado por três feddayin (combatentes da liberdade), muitos jovens, trajam fardas de cotim e empunham metralhadoras, chegam a Rashidyia, esta cheira a laranjas e a sangue. “Um dos explosivos atingiu um camião que transportava laranjas; assim, líquidos dourados e aromáticos jorram pela rua principal. Perto, ao pé de um casebre, está sentado um velho árabe que parece petrificado no seu silêncio. Daquilo que ainda ontem era a sua casa, não restou mais do que o chão e um pedaço do muro. Da família não sobreviveu ninguém”. Rashidyia é um dos campos palestinos no Líbano. Percorrem-se ruínas e o jornalista interroga a luta destes palestinos, é um conflito com muita história, arredondando números, em 1930, escreve o autor, o governo britânico conclui que a Palestina era demasiado pequena e que, consequentemente, não podia acolher mais judeus porque não havia terras livres. Mas estamos a falar de 200 mil judeus, e nos anos 1970 eram quase 3 milhões. Há naturalmente um problema de espaço e as vitórias militares sobre os Árabes geraram a ambição de um grande império. A opinião pública mundial desconhece que a imigração judaica para a Palestina não se realizou só à custa dos Palestinos, mas também à custa dos judeus da Palestina. “Os judeus locais lembravam-se de que outrora a Palestina era uma terra próspera onde conviviam Árabes, judeus e cristãos e onde não passava pela cabeça de ninguém disparar nas costas do vizinho. Outrora, cada comunidade guardava os seus templos e havia espaço para todos os deuses. Um milhão de palestinos teve de abandonar a sua Pátria”. E descrevem-se os campos de refugiados e a vontade indómita do retorno à sua terra. Viaja-se pela História de um conflito, lembra-se o exército clandestino judaico, o Haganah e a sua organização terrorista Palmach e uma outra mais terrorista, a Irgun, geraram matanças na população árabe e não pouparam os britânicos, era necessário expulsar os Palestinos. E vem uma observação que tem premente atualidade: “Se o mundo não interferir, nenhuma das partes vai terminar esta guerra. Há demasiado ódio, demasiada morte, demasiada desgraça, e a memória está demasiado viva. Trata-se de um pequeno pedaço de terra, difícil de encontrar no mapa-mundo”. E viaja-se pela complexidade das alianças entre árabes, a Jordânia fora cruel com os Palestinos, sonharam incluir a Palestina dentro do seu reino. A reportagem continua por todo este calvário, fala-se da Batalha dos Montes Golã e questiona-se porque é que os árabes perderam a guerra em 1967, procura-se uma explicação: “Em Israel todos participam na guerra, nos países árabes é só o Exército. Em Israel, quando começar a guerra, todos vão para a frente de combate e a guerra civil para. Na Síria, ao contrário, muitos ficaram a saber da guerra de 1967 só quando acabou, ainda que a Síria tenha perdido uma zona tão estrategicamente importante como os Montes Golã. A Síria estava a perder os Montes Golã, e no mesmo dia, à mesma hora, a vinte quilómetros de distância, os cafés em Damasco estavam cheios de clientes, havendo gente a deambular, apenas preocupada em encontrar uma mesa livre”. Um repórter que nos faz compreender a germinação do imperialismo israelita que ninguém parece estar em condições de travar.

Já estamos na América Latina e o repórter justifica o título da sua obra: “Pouco depois da morte de Che Guevara, o pintor revolucionário argentino Carlos Alonso pintou um quadro que imediatamente se tornou famoso em toda a América Latina: a figura de um Cristo de carabina ao ombro. O quadro de Alonso converteu-se desde então num símbolo artístico do guerrilheiro, do homem que combate a violência e a arbitrariedade na sua luta por um mundo diferente, justo e bom para todos os seres humanos”. É uma reportagem que pode ser vista como uma parada de horrores, primeiro na Bolívia, com a sua instabilidade, prisões, execuções, golpes de Estado, os militares a derrubarem-se uns aos outros, uma degenerescência que lembra o fim do Império Romano. Passamos para outra atmosfera ditatorial, a ilha de S. Domingos, dois ditadores e dois monstros onde 90% da população vive na mais profunda miséria e ignorância. Depois El Salvador e a seguir os crimes abomináveis da Guatemala onde os EUA sempre tiveram o descaro de perseguir quem contraria o império bananeiro da United Fruit. Se ainda houvesse dúvidas sobre a abjeta interferência norte-americana nos assuntos internos da América Latina é só estudar o que se passa na Guatemala, ainda recentemente o romancista Vargas Llosa lhe dedicou um pungente romance ficcional Tempos Duros. Uma pequena água-forte do autor: “A Guatemala é um país governado por uma camarilha de coronéis, já que durante a revolução anularam o grau de general. No Exército, há um coronel por trinta soldados. A Embaixadas dos Estados Unidos ocupa o lugar supremo do poder, depois vem o Conselho de Coronéis, e o governo ocupa o terceiro lugar. Qualquer coronel gostava de ser presidente, devido ao prestígio e ao salário alto. O ordenado anual do Presidente da Guatemala é de um milhão e 94 mil dólares, sem contar com outras regalias, mais ou menos oficiais, e um enorme subsídio de representação (no mesmo país, os rendimentos de um camponês rondam entre os 50 e 80 dólares anuais”. E observa o que espera um jovem revolucionário neste canto do mundo: “Uma pessoa jovem, na América Latina, cresce rodeada de um mundo corrupto. É o mundo da política exercida pelo dinheiro e para o dinheiro, um mundo de demagogia desenfreada, um mundo de assassínios e de terror policial, um mundo da plutocracia prolixa e despiedada, de uma burguesia ávida de tudo, de exploradores cínicos, novos ricos depravados e vazios. Um jovem revolucionário rejeita tudo isto, pretende destruir esse mundo, mas antes de o conseguir quer contrapor-lhe um mundo diferente, limpo e honesto, e arrisca a sua própria vida”.

Estamos agora em Dar es Salaam, 1962, o repórter encontra-se com Joaquim Chissano e Eduardo Mondlane, fala-se da independência de Moçambique, das diferentes fações ligadas à libertação, faz-se o historial do início da guerra e das batalhas da FRELIMO. E assim se despede, Moçambique já é independente: “Revi as fotografias de Lourenço Marques. Numa delas, dois inimigos de ontem, um soldado português e um guerrilheiro da FRELIMO, patrulham juntos a cidade. Examino os dois rapazes e vejo que o soldado tem botas e o guerrilheiro também já usa botas. E, de repente, pensei que há no mundo coisas grandes, e que é magnífico que, depois de anos de se andar descalço, chega afinal o dia em que se já se pode calçar sapatos e caminhar pela terra sem medo de deixar rasto”.

De leitura obrigatória.