sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Paula Rego, Belém.

 
 


King Liar.






Este senhor, Charles Lieber, era «só» o chefe do Departamento de Química da Universidade de Harvard. Foi preso há três dias, suspeito de mentir e servir a China, enquanto recebia fundos do governo americano para as suas investigações. O top dos tops da Química na top das tops Universidade de Harvard. Por favor, preocupem-se.
 
 
 
 
 
 

Espalhar quietude.

 
 

Fotografia de António Araújo



 
Há uns anos, intrigado e agastado com o frenesim “fazedor” de um certo governante, e achando que essa agitação permanente não era sadia nem aproveitava a ninguém, o escritor Yann Martel criou uma listopia aí com uma meia centena de livros e empreendeu enviar um de 15 em 15 dias à irrequieta personagem. 
 
Os livros, selecionou-os não tanto pelo valor literário, mas sim por “expandirem quietude”. Daí que na lista tanto conste o Read All About It! de Laura Bush, como as Meditações de Marco Aurélio e A Sonata Kreutzer, de Tolstoi (olha, Tolstoi a escrever sobre Beethoven? Ignorante a dobrar, fui ver à net e fiquei banzada com o que li. E agora que li, já não posso desler).
 
Perguntou-se Martel:
"Who is this man? What makes him tick? No doubt he is busy. No doubt he is deluded by that busyness. No doubt [o cargo] fills his entire consideration and froths his sense of busied importance to the very brim. But he must have moments of stillness. And so this is what I propose to do: not to educate—that would be arrogant, less than that—, to make suggestions to his stillness”.
 
Imbuída do mesmo espírito, e porque diz que até ler à pressa faz mal às pessoas e à sociedade, é minha intenção vir aqui de vez em quando falar à quietude de cada um e de cada uma, mesmo que seja aquela que nos dispõe a dançar – ou vice-versa.
 
Não sendo, ainda assim, uma lírica e conservando o sentido das realidades, não ponho aqui nada que leve mais de 5 minutos a ouvir (em média, digamos; ao fim-de-semana não digo que não me passe uns 3-4 minutos dos limites: sejamos loucos).
 
Ora, 5 minutos é capaz de ser menos do que nos tomam alguns dos magníficos textos do Malomil. Hei-de inspecionar com um cronómetro, levando já em linha de conta que haverá quem leia à pressa – no que faz mal (ver supra). 
Uns auscultadores à mão ajuda à quietude, tanto mais que o fio prende os leitores-ouvintes ao computador, caso não sejam wifi (os auscultadores, não os leitores – ainda, creio).
 
Prometo coisas elevadas e culturais. Fica uma amostra.
 
Pobre Boccherini, as minhas desculpas. Agora é que é: a sério
 
Até ao Carnaval
 
Manuela Ivone Cunha
 
 
 
 
 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Sonhos de Crayencour.

 
 
 
 
 
 
Comprei na FNAC do aeroporto por dois euros (!) um livro da muito querida Yourcenar que não conhecia. Foi reeditado há pouco, já em 2020, para esta edição da Folio e que nos traz a Srª Crayencour? Os seus sonhos. Interessante, assim-assim. Marguerite conta o que dormiu, e o que viu a dormir, mas com esta gente que conta o onírico com tal cópia de pormenores fico sempre intrigado: eu não sou assim. Não lembro de nada ou, do que lembro, nada tem aquela riqueza visual e narrativa. Agora, por causa de um grande amigo que é grande devoto de Mitterrand, pus-me a ler um livro – e grande! – só sobre os últimos dias daquele a quem chamavam «Dieu», nem mais, nem menos. Pouco antes do estertor final, Marie de Henzel (têm cá o livro dela, Diálogo com a Morte, prefaciado pelo Dieu) foi assaltada por um sonho místico, à laia de premonição. O sonho dela, como sempre, era technicolor, com enredo e personagens, uma grande produção hollywoodesca do espírito ou da mente. Nada disso ocorre comigo, tudo série B, a preto e branco e sem legendas. Que tristeza (ou então são os outros que andam a sonhar acordados ou, pior ainda, a aldrabar com quantos dentes têm nas bocas).  
 
 











 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Simplesmente maravilhoso.



O Sol enganador.

 
 




 
 
 
 

Rio, modéstia à parte.

 
 






quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Dos justos.

 
 
Pintura de Celja Stojka
 
O António pediu-me para contar esta história aqui. Eu conto, tal e qual a contei a ele e a uma amiga italiana que acabara de me dizer, horrorizada, que durante a noite de ontem alguém pintou uma estrela de cinco pontas na casa de uma pessoa judia.
 
A minha filha tem um nome com uma combinação improvável, entre outras coisas porque acabou com o nome do avô materno, que não vem a este caso, e o da avó paterna, que vem. A avó Suzanne já morreu, bem como o tio-avô Albert e os bisavós Élie e Marie-Louise de que fala este apontamento-notícia:
 
 Traduzindo resumidamente:
Élie e Marie Louise Richaud (…) tinham acolhido refugiados do Leste da France durante a Primeira Guerra mundial, em 1914-1918. Têm três filhos, Louis e Albert, resistente, e Suzanne. Em 1938, deram abrigo durante uns tempos a republicanos espanhóis. Durante a Segunda Guerra mundial, guiados pelo respeito de outrem, Élie e Marie Louise vão acolher e salvar numerosas pessoas (…). Nesta tarefa são ajudados por I.(…), padeiro e resistente, cujo filho irá buscar a Marselha uma pessoa judia, que tinha escapado in extremis à Gestapo, e a conduziu à casa de Élie e Marie Louise (…). O filho destes, Albert Richaud, agente de ligação entre os vários movimentos da Resistência, encontrará refúgio para as pessoas que transitavam pela casa dos seus pais, enquanto a filha, Suzanne, professora primária, “vinha todos os fins de semana substituir a mãe nas tarefas que se aproximavam das de um hotel benemérito", dirá Louis Richaud quando da atribuição da medalha dos Justos aos seus pais, em 26 de junho de 2009.
Em razão desta história (aqui contada só pela metade, como se verá de seguida), a miúda lá foi receber a tal medalha dos Justos, como símbolo-testemunho para as novas gerações e depois da entrega de um documento ao tio na foto.  
 
O que não vem na notícia é o seguinte, que também merecia ser contado porque entra no rol dos pequenos gestos salvíficos de que pouco se fala: escaparam todos por um triz ao fuzilamento certo que se teria seguido à denúncia anónima de que foram alvo (e, pelas leis da biologia, escapou ela à não-existência futura). Tudo graças à ação de uma senhora funcionária dos correios, que intercetava as cartas dirigidas à Kommandantur da zona, levava-as para casa, abria-as com vapor e avisava os visados. Depois voltava a fechar e só então as fazia seguir. 
 
Agora a outra história, a abjecta. Poderia juntar aqui a tal carta anónima, mas é uma infeção, não aconselho ninguém a ler. Finda a guerra, um amigo influente na polícia deu com a carta e abriu uma investigação bicudinha, metendo perícias grafológicas e tudo. E deu com o autor da dita. Pois bem, o infame era nada mais, nada menos, do que o filho do melhor amigo de Élie. Não só melhores amigos. Tinham estado juntos nas trincheiras de Verdun. Ciúme daquela amizade, ressentimento, mesquinhez, quem sabe? 
 
Grandeza e miséria humana, como sempre. E memória, outros laços, outras vidas: as famílias salvas e seus descendentes lá estão, e foram voltando. Tenho pena de nunca ter calhado cruzar-me com eles. O que também não vem ao caso.
 
Manuela Ivone Cunha
 
(dedicado à Adriana Costa Santos e aos Justos de hoje)
 
 
 
 

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

A porta do Oriente (19).



Em Sídon, pode ser visto e admirado o Castelo do Mar construído durante a 6ª cruzada em 1228.
As muralhas são fortalecidas com colunas dos templos vizinhos. Delas só se vislumbra a base.








Fotografias de 9 de Novembro de 2019

José Liberato


São Cristóvão pela Ásia (3).




 
 
Na divisão do Mundo por continentes, o Líbano pertence ao continente asiático.
No Líbano não encontrei imagens de São Cristóvão. O que é curioso tendo em conta que a figura lendária do Santo nasceu precisamente num território que abrange hoje o país.
A propósito do Líbano, existe contudo uma literatura relacionada com os anos de chumbo da Guerra Civil onde encontrei vestígios do Santo.
 
Alexandre Najjar, escritor libanês nascido em 1967, publicou em 2005 Le roman de Beyrouth (O romance de Beirute) livro em que faz o retrato da capital através das sucessivas gerações de uma família. Um dos personagens que surge no livro é Édouard Saab, redactor-chefe do L’Orient-Le jour, jornal de Beirute e correspondente do Le Monde: Foi morto por um franco-atirador em Maio de 1976 durante a guerra civil.
Edouard Saab conduzia mal. Toda a gente o sabia. Quando ele me propunha uma boleia, eu rezava à Virgem, a São Charbel e a São Cristóvão que me colocassem sob sua protecção. Não que ele andasse depressa, mas tinha o espírito de tal maneira sobrecarregado de pensamentos que se esquecia de se concentrar na condução.
 
Roger Auque (1956-2014), jornalista e diplomata, foi preso pelo Hezbollah em 1987. É o pai da política francesa Marion Maréchal Le Pen. Num livro publicado postumamente confessa ter sido agente israelita. Escreveu em 1989 o livro Un otage à Beyrouth (Um refém em Beirute) em que descreve o seu cativeiro de 10 meses:
…A viatura abranda e pára. Ouço uma porta deslizar. Parece-me que penetramos numa garagem. O condutor desliga o motor, as portas abrem-se, passos ressoam à minha volta. Os raptores sentam-me no banco de trás. “Não te mexas. Sobretudo mantem a tua venda” aconselha-me um deles começando uma revista minuciosa. Esvazia-me a algibeira, fica com o meu relógio, a minha pulseira, uma cruz e uma medalha de São Cristóvão…
A cruz e a medalha são-lhe restituídas mais tarde. Entre os raptores há Christophe que desempenha o papel de polícia-bom:
… Na última vez que Christophe veio no mês de Abril pediu-me para lhe dar o meu cordão com a cruz e a medalha de São Cristóvão. Queria um presente. Recusei, era um presente da minha mulher e da minha mãe…
 
Elie-Pierre Sabbag, arquitecto e escritor libanês, nascido em 1955, escreveu em 1993 o livro L’ombre d’une ville (A sombra de uma cidade) referindo-se a Beirute. Pretendeu com ele abanar a amnésia colectiva que atingiu o Líbano quando terminou a Guerra Civil.
…Viaturas calcinadas, árvores desfeitas, montanhas de areia, montes de ramos de pinheiros, espalhavam-se no chão de uma avenida rectilínea como a lâmina de uma espada. De tempos em tempos, uma viatura aventurava-se sem protecção no eixo vazio, lugar onde a palavra já não tinha valor, que se atravessava impedindo o coração de transbordar. O território do arbitrário. O tiro, seco e tenebroso ressoava, nas profundezas de cada um, como a queda de um anjo. Cada passagem era uma vitória sobre o absurdo, sobre o franco-atirador dormente que tinha falhado o seu alvo. Mas a Beirute de Nabil era indivisível. São Cristóvão do volante, ele levava os seus passageiros de uma margem para outra aumentando o som do seu rádio, fazendo slalom entre os montículos de terra e os contentores com a segurança de um campeão de rallies…
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Estampa francesa de São Cristóvão.
José Liberato
 
 
 
 
 

domingo, 26 de janeiro de 2020

A porta do Oriente (18).

 
 
Um dos sítios mais marcantes de Sídon é o caravançarai
Caravançarai é uma palavra que existe em português (vide dicionário da Porto Editora) e que tem origem persa. Significa o local onde as caravanas e os comerciantes se encontravam para se abrigar e fazer comércio durante as suas longas viagens pelo Médio Oriente. 
O de Sídon é imponente e mostra a importância da cidade no passado. Instalado perto dos souks, foi construído entre os séculos XVI e XVII. É um edifício rectangular com dois andares com galerias cobertas, um grande pátio e quartos.
 
 
 
 

Fotografias de 9 de Novembro de 2019 
José Liberato
 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Não Pai.


 
 
Tinha muito interesse em ler este livro, mas confesso que estava com medo. Não do negrume da temática, pois, sendo um livro de Daniel Blaufuks, a questão do Holocausto era ou é quase inevitável. Receava, isso sim, e o Daniel que me perdoe, que fosse um breviário de fragmentos esparsos ou uma digressão pessoalíssima e tão subjectiva que só o autor a alcançaria. Mas não, pelo contrário. O que surpreende neste livro é a simplicidade, a linearidade e a tranquilidade. E, já agora, uma tremenda originalidade, não tanto da escrita ou do estilo (que são impecáveis, atenção), mas da perspectiva. Aqui não se trata, ou não se trata prima facie, de um ajuste de contas com um pai tirânico, ou assim sentido. A Carta ao Pai, de Kafka, apesar de citada, não é o modelo, longe disso. O tema – e isso é surpreende – não é a presença sufocante de um pai, mas justamente o contrário: a sua ausência. Uma ausência tanto mais dolorosa ou, pelo menos, desconcertante quanto o pai de Daniel vivia não muito longe dele – e um e outro poderiam ter-se encontrado, se acaso quisessem, se acaso os dois quisessem, se acaso um deles, de parte a parte, tivesse tomado a iniciativa. É claro que uma experiência como esta deixa marcas, cicatrizes, detritos na alma, e o Daniel assume-se, ele próprio, como um não pai, já que nunca teve filhos, ainda assim um não pai muito diferente do seu pai ou, se quisermos, do seu não pai. Muitas e muito fundas são ainda as feridas dessa ausência paterna. O pavor obsessivo do abandono, hoje mais moderado, mas muito presente nos primeiros anos – e, obviamente, com sequelas. Sobre isto, além de literatura clínica, e o DSM-V tem o registo dessas coisas, existe um outro livrinho, um livrinho excepcional, saído há anos numa excelente mas esquecida colecção do Público, Síndroma de Abandono, de Germaine Guex. Mas, por ora, o que importa é saudar este livro pungente e tocante e, acima de tudo, imensamente corajoso.
 





 
 
 
 
 
 
 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A porta do Oriente (17).

 
 
 
 
Na antiga Sídon (hoje Saïda) visita ao bispo melkita, Monsenhor Elie Haddad.
Os cristãos melkitas constituem uma comunidade religiosa bem representativa das especificidades do país. Trata-se de uma comunidade grega católica que se separou da Igreja Grega Ortodoxa em 1724. Enquanto esta se manteve fiel a Constantinopla, os melkitas juntaram-se a Roma conservando o seu próprio rito bizantino.
Em 1894, o Papa Leão XIII pela Encíclica Orientalium Dignitas comprometeu-se a respeitar a liturgia melkita que se pratica em árabe. Por estarem em áreas predominantemente xiitas, os melkitas sofreram durante a guerra civil libanesa. Hoje regressaram a Saïda e celebram livremente o seu culto. Constituem a segunda comunidade cristã depois dos maronitas.
 
 
 


A Igreja de São Nicolau era a catedral bizantina do Arcebispado de Antioquia em Sídon. Construída no Século XV num local de culto desde o Século VII. Alguns anos após a cisão dos melkitas relativamente aos Ortodoxos Gregos houve uma decisão muito pragmática: construíram uma parede ao longo da igreja para dividir os cultos!
 
 

 
Na igreja, uma pequena capela marca o local onde São Pedro e São Paulo se teriam encontrado cerca do ano 58.
 

Fotografias de 9 de Novembro de 2019
José Liberato