terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Agarre seu homem!

 
 
 
 







 
 
 

 
Há pouco tempo rebentou uma polémica danada no Brasil sobre biografias, mais precisamente sobre biografias não-autorizadas, feitas à revelia dos biografados e, quase sempre, revelando episódios pícaros e detalhes íntimos que quem os viveu desejava ver esquecidos – ou pelo menos, não falados e, menos ainda, eternamente publicados em papel impresso. O Brasil produz, desde há muito, vidas extraordinárias. A questão está toda na arte de saber contá-las. E no Brasil existe essa arte, em grande medida. Ruy Castro, por exemplo, é um mestre – e di-lo quem só agora, como eu, anda mergulhado na vida de Garrincha, Estrela Solitária, trazida de além-Atlântico graças à generosidade amiga do José Sobral.
 
 
Nelson Rodrigues (1912-1980)
 
 
Ruy Castro contou a vida de outro brasileiro fascinante, Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico. O que é que isto tem a ver com Hold Your Man!, de Veronica Dengel? O livro é maravilhoso, nos conselhos que dá às mulheres, antes e após o casamento. Foi publicado no Brasil em 1949, pelas Edições O Cruzeiro. Logo na capa, o nome da tradutora, Suzana Flag. Estranha-se, não é? Acontece que Suzana Flag era muitíssimo mais conhecida do que a autora americana, Veronica Dengel. Sob o pseudónimo de Suzana Flag, Nelson Rodrigues escrevia fantásticos folhetins diários. A convite de Frederico («Freddy») Chateaubriand, trocou Roberto Marinho por O Cruzeiro (literalmente falando), após o sucesso da peça Vestido de noiva. N’O Cruzeiro, além de um melhor salário, encontrou uma equipa de luxo, que mais tarde compararia aos portugueses Vencidos da Vida. Na redacção, David Nasser publicava um folhetim-thriller diário, intitulado «Gisele, a espiã nua que abalou Paris». A personagem central era uma sensualíssima francesa, da Resistência, que dormia com um oficial nazi a troco de informações secretíssimas. Quando o folhetim estava no clímax, com a espia descoberta e frente a um pelotão de fuzilamento, Nasser também encostou à parede Assis Chateaubriand. Ou lhe pagavam o que deviam ou Gisele seria morta pelos alemães no dia seguinte. A série era o maior sucesso do jornal, Chatô vociferou, como sempre, mas passou o cheque.  Nasser ainda insistiu na morte de Gisele (para todos os efeitos, estava frente a um pelotão de fuzilamento), mas aí todo o génio – bom e mau – de Assis Chateaubriand tomou conta da cena: «– Se Gisele aparecer morta amanhã, o senhor acorda desempregado depois de amanhã. O senhor trate de avisar a esse oficial nazista que acaba de chegar uma ordem de Goering, diretamente de Berlim, mandando suspender o fuzilamento.» A história é contada noutra biografia extraordinária, da autoria de Fernando Morais, Chatô. O Rei do Brasil, 1994, pp. 426-427.
         Era nesse ambiente e tensão febril que Nelson Rodrigues deu vida a Suzana Flag, aparecida nas páginas de O Jornal. Nelson não queria assinar a coluna, folhetinesca e rocambolesca, e a equipa editorial achava que um nome estrangeiro teria mais impacto. Mais do que impacto, causou estrondo. A certa altura, o folhetim de Suzana era publicado em todos os jornais do grupo Diários Associados. Travestido de Suzana, Nelson reuniria as crónicas em livros, com títulos que falam por si: Meu destino é pecar, Escravas do amor, Minha vida, Núpcias de fogo, O homem proibido e A mentira. Um deles é mesmo uma autobiografia da mulher inexistente, mas que todo o Brasil seguia avidamente. Minha vida, de 1946, tem um começo arrasador: «Eu posso começar a história dizendo que me chamo Suzana Flag. E acrescentando: sou filha de canadense e francesa; os homens me acham bonita e se viram, na rua, fatalmente, quando passo. Uns olham, apenas; outros me sopram galanteios horríveis, mas já estou acostumada, graças a Deus». Suzana Flag era a mulher idealizada por Verónica Dengel. A tradutora perfeita.
         A história de Suzana começara anos antes, em 1944, na coluna intitulada «Meu destino é pecar». Como não assinava aquilo, Nelson deu azo às maiores fantasias, sem cuidar sequer que outros mexessem na sua prosa. Os primeiros capítulos eram um plágio descarado de Rebecca, que Nelson vira na tela, filmada por Hitchcock. Sentava-se na redacção (não numa cadeira, num balde de lixo virado do avesso), escrevia a metro, só se levantando para ir buscar café. De chorar as pedras da calçada portuguesa, hoje em vias de extinção: uma jovem feia e ingénua casara com um viúvo dominador que não consegue esquecer a primeira mulher, uma versão tropical de Daphne du Maurier. Mas logo Nelson Rodrigues impôs o seu génio, baralhando o enredo. O sucesso de Suzana Flag foi meteórico, a ponto de Assis Chateaubriand ter viajado de São Paulo até ao Rio para se certificar do fenómeno junto dos distribuidores: O Jornal passou de três mil para seis mil, daí para doze mil, até atingir os trinta mil exemplares vendidos diariamente. Num dia em que a gráfica saltou um episódio, por engano, publicando o do dia seguinte, dezenas de velhinhas invadiram a redacção de O Jornal, exigindo saber o que se passara entretanto na novela. Quando saiu em livro, foi um sucesso estrondoso, vendendo mais de 300 mil exemplares até as Edições O Cruzeiro o passarem para a Martins, de São Paulo, em 1946. Mesmo recebendo 10% do preço de capa, o escritor não conseguia enriquecer, vivendo nos limites. Nelson era o mais facilmente roubável de todos os escritores, como diz Ruy Castro em O Anjo Pornográfico, 1992, p. 188.
 
 
Veronica Dengel
 
 
         Não é descabido supor que tenha sido outro, que não Nelson Rodrigues, a traduzir Veronica Dengel. Nelson não se importava muito com a autoria. Afinal, não era ele, mas Suzana, que existia. As pessoas acreditavam que Suzana existia, Nelson não iria desmentir. O que interessava era o dinheiro, nada mais. E talvez a alegria de tanta gente sofrida. Um dia, até um preso escreveu uma carta a Suzana Flag – Nelson respondeu por ela, dizendo ser mulher casada, de respeito.  Às tantas, porém, sentiu-se tragado pela sua personagem. Sabia que poderia escrever como Suzana anos a fio, sempre com sucesso, mas agora só apreciava uma coisa: o correio dos leitores, que lhe traziam o Brasil vivido e sofrido, as angústias e dramas que sempre o fascinaram e fizeram a matéria-prima da sua obra. O sucesso de Suzana era tal que Nelson só tinha tempo para ser o que queria – i.e., Nelson Rodrigues, dramaturgo sério, autor de si mesmo – lá no final das noites. Em 1950, abandonou Freddy Chateaubriand e os Diários Associados. Ficaria um ano no desemprego.
         Enquanto isso, Veronica Dengel, uma dona de casa quarentona que em 1937 decidiu libertar-se como escritora de auto-ajuda feminina, continuava carreira, e hoje dá nome a um império dacosmética e de produtos de beleza cremosa. Não falei de Agarre seu Homem! como devia. O livro tem pérolas atrás de pérolas, com desenhos de Alajálov que lembram os de Cândido Costa Pinto. Não se pense que é uma obra tolinha e oca. Pelo contrário, percorre com humor finíssimo os mínimos olímpicos da mulher sedutora, que se cuida com cuidado, dá atenção às gengivas e ao cabelo (há mesmo um teste hilariante e uma tabela do «Espelho Imparcial»). Parece-nos, por vezes, que Veronica está a brincar connosco. Mas não está. Da mesma forma que Suzana não brincava em serviço: servia o objectivo do seu criador, que era ganhar dinheiro.
         Se Nelson Rodrigues acabou por ficar desempregado, se Suzana Flag acabou por morrer às suas mãos (e não por um pelotão de fuzilamento nazi), Veronica Dengel continuaria a batalhar pelas mulheres que querem Hold your Man! Simplesmente, se o empório subsiste, o seu nome já poucos o recordam. Na Internet, inesgotável memória do mundo, escasseiam as referências. Em contrapartida, Suzana Flag tem até direito a ser tratada como Nelson sempre a tratou: com total independência e sem qualquer confusão entre ambos, criatura que não se mistura com o criador. Há mesmo teses sobre Nelson Rodrigues enquanto autor de folhetins.
         Biografias imaginadas, as da Gisele resistente ou da Suzana dramalhona. Vidas femininas também mais imaginadas do que reais, as que saíram da pena de Veronica Dengel. Porventura, a sua maior glória foi ter sido traduzida por Nelson Rodrigues, que nem sequer nessa tarefa se dignou assinar com o seu próprio nome.
 
         Ao Francisco José Viegas, que do Brasil me trouxe o livro, maravilhoso, 
um grande abraço,
 
António Araújo
 
 
 
 

3 comentários:

  1. É pena que não se conheça por cá Nelson Rodrigues. O Casamento, por exemplo, é uma obra-prima que merecia divulgação e edições sucessivas e, no entanto, quase ninguém conhece e não existe em lado nenhum.
    A própria biografia é muito boa, conseguindo até aproximar-se em estilo de escrita do biografado e, lida, percebemos pela vida do homem e vários episódios familiares, com os irmãos e o filho à cabeça, que sempre é verdade que a realidade ultrapassa a ficção (por mais delirante que esta seja - e a de Nelson Rodrigues era).

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  2. Discordo da ideia de que a biografia escrita pelo Ruy Castro é boa. Lendo as memórias do próprio Nelson Rodrigues em A Menina sem Estrela (talvez o meu livro favorito do autor) percebe-se que Castro reproduz histórias fantasiadas por NR como se fossem factualmente verdadeiras. Em qualquer caso, Castro também diz que NR não falava nenhuma língua a não ser português, e que portanto as traduções que assinava não podiam ter sido feitas por ele.

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