segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

As crianças de Ceaucescu.

 
 
 
 




















































Há já alguns anos, o Paulo e o António ofereceram-me um livro romeno para crianças, dos tempos de Ceaucescu. Maravilhosamente ilustrado, é um livrinho que pretende dar às crianças da Roménia vários conselhos de higiene e saúde: ursos e coelhos a levantarem-se cedo da cama, a fazerem ginástica no bosque, a lavarem o rosto e o corpo, escovando os dentes de manhã e à noite.
 

O livro foi publicado no ano anterior a Ceaucescu chegar ao poder, pela Editora Médica de Bucareste. Mas, segundo sei, teve ampla difusão entre as crianças dos tempos em que Nicolae e Elena governavam a Roménia como uma coutada privada, uma terra onde a raposa era o caçador, para usar o título de um famoso livro de Herta Muller.


Logo em 1966, Ceaucescu iniciou a sua demencial política de natalidade, que visava aumentar a população de 23 milhões para 30 milhões de romenos em 2000. Em 34 anos, a Roménia deveria ter um superávite de 7 milhões de pessoas. “Um feto é propriedade de toda a sociedade”, proclamava Ceaucescu, como se refere aqui, com base num texto da Newsweek. 

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Os métodos contraceptivos e a educação sexual foram banidos, os livros sobre sexualidade eram classificados como segredos de Estado. A taxa de natalidade duplicou ao início, mas a falta de condições sanitárias fez disparar a mortalidade infantil. 83 mortes por cada 1000 nascimentos, em contraste com a taxa 10/1000 que é a média nos países ocidentais. Uma em cada dez crianças nascia com falta de peso. As crianças que nasciam com peso inferior a 1.500 gramas eram consideradas inviáveis, sendo-lhes negado tratamento médico (o que não deixa de ser singular e terrivelmente paradoxal num país que queria aumentar a natalidade). As mulheres com idade inferior a 45 anos eram trimestralmente examinadas por médicos, quase sempre na presença de funcionários governamentais, que os romenos apelidavam de “polícias da menstruação”. As mulheres que não tivessem filhos, mesmo que tal se devesse a uma incapacidade física ou biológica para os gerar, tinham de pagar uma taxa, correspondente a 10% do seu salário mensal. Isto, repita-se, mesmo que fossem inférteis.


Na Roménia de Ceaucescu, a  vida sexual das mulheres era objecto de inquéritos de resposta obrigatória. Como observou Hannah Arendt, o totalitarismo começa quando se esbatem as fronteiras entre o público e o privado.


 
O aborto na Roménia era permitido em condições muito restritivas e a prática do aborto clandestino grassava entre as romenas, fazendo muitas e muitas vítimas. Calcula-se que cerca de 9000 mulheres hajam morrido por abortos clandestinos, entre 1965 e 1989. Todos se lembram do filme Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, de Cristian Mungiu, que em 2007 ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes.
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A desastrosa política de natalidade, aliada à extrema pobreza das condições de vida, acabou por levar milhares de crianças para os orfanatos. Não vou falar disso aqui, daria matéria para várias páginas. Há um livro de Joan Simkins, que aborda o tema, contando as tentativas de resgate das crianças dos orfanatos romenos. Não o li, mas o título é Ceaucescu’s Children. Com um título parecido, surgiu há uns anos um livro chamado Children of Ceaucescu, com fotografias de Kent Klich e um ensaio de Herta Müller, de quem falei acima. Kent Klich nasceu na Suécia em 1952, estudou psicologia na Universidade de Gotemburgo. Depois de se formar, começou a lidar com adolescentes problemáticos. Em 1983, conheceu Beth R., toxicodependente e prostituta, como a Christiane F. de um livro que marcou e marca gerações inteiras. Em 1989, publicou o livro de fotografias The Book of Beth e, desde então, tem explorado mundos que não gostamos de ver – mas que temos o imperativo moral de saber que existem. Nos anos noventa, as crianças de rua da Cidade do México. Também nos anos noventa, começou a fotografar as crianças de Ceaucescu. Kent Klich é actualmente fotógrafo da Magnum e a sua obra pode ser vista aqui. De Herta Müller, galardoada com o Nobel da Literatura em 2009, não é necessário falar.
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Do que devemos falar, isso sim, é das crianças de Ceaucescu. Poucas pessoas conhecem um dos seus legados mais horríveis: a Roménia tem – ou tinha, até há poucos anos – a mais elevada taxa de crianças infectadas com SIDA. A taxa mais elevada do mundo. No final dos anos oitenta e nos inícios dos anos noventa do século XX, os hospitais públicos e os orfanatos foram abastecidos com um “composto” destinado a crianças malnutridas ou anémicas, que existiam aos milhares. Esse “composto” tinha, entre o mais, plasma que não fora  analisado – e que mais tarde se soube que estava infectado pelo HIV. Milhares de crianças morreram. Actualmente, sobrevivem cerca de 10.000. Dez mil. Hoje serão menos, e já terão deixado de ser crianças.


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Sei que este “post” (ou “posta”) é duro e difícil de ver, mas não podemos virar a cara ao mundo. Sei que posso ser acusado de demagogia ou manipulação de sentimentos. Até Kent Klich e Herta Müller podem ser acusados do mesmo delito. Talvez haja uma agravante contra mim: ter colocado imagens de um livro infantil, com conselhos de higiene, ao lado de fotografias devastadoras de crianças com SIDA, sobrevivendo em orfanatos. Mas um livro e outro merecem ser reunidos, pois marcam o início e o fim de uma era. O sonho higienista e saudável, que merece ser louvado, acabou por redundar num pesadelo horrível, captado a preto e branco. Entre os conselhos médicos do livro infantil e a realidade fotografada por Klich existe de permeio um regime e uma pessoa, Nicolae Ceaucescu. Já morreu é certo, em condições que não dignificam ninguém, sobretudo quem o julgou e fuzilou. Já morreu é certo – mas não o devemos esquecer, nem o que significou o seu regime. Aliás, estas crianças – algumas das quais também já mortas, por certo – são mais reais do que os ursinhos e os coelhinhos da propaganda médica. A melhor forma de as respeitar é lembrarmo-nos que existem, ou existiram. Por muito que nos custe olhá-las quando olham para nós.
 
 

António Araújo


























 
 
 
 
 

9 comentários:

  1. Daniel Oliveira o ex-PCP, ex-BE inventou a moda de desenterrar factos dar-lhes outra visão e publicar. Fez isso agora com Mandela e usou Cavaco com a torpeza que lhe é habitual. é a minha vez agora de lembrar que Mário Soares sorridente (ele anda sempre sorridente) apertou a mão deste bárbaro em nome do Governo Português.

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  2. Este era aquele baluarte da liberdade onde o Cunhal se refugiou e operava a Rádio Portugal Livre?
    Excelente exemplo!

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  3. De lamentar. É sempre oportuno lembrar os ditadores de Leste e os seus horrores ... em nome da liberdade (deles).

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  4. E o escândalo do sangue contaminado com HIV que infectou dezenas de hemofílicos Portugueses em 1986-1987? Era primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva e ministra da Saúde Leonor Beleza. Morreram dezenas de pessoas. O processo prescreveu, depois de muitas delongas, entre as quais no Tribunal Constitucional, em 1997. Escreveu a sentença de prescrição um tal Paulo Pinto Albuquerque, então juiz de instrução criminal. Não é preciso ir à Roménia nem falar de Ceaucescu.

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    1. Meu caro, tem toda a razão quanto ao caso que refere. Contudo, comparar alhos com bugalhos é revelar falta de tacto. A conduta de uma pessoa ou grupo de pessoas encontra-se em total desproporção, face a um regime comunista. Não se devem confundir os números, até porque dezenas de mortes não são centenas de mortes!

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    2. Meu caro, tem toda a razão quanto ao caso que refere. Contudo, comparar alhos com bugalhos é revelar falta de tacto. A conduta de uma pessoa ou grupo de pessoas encontra-se em total desproporção, face a um regime comunista. Não se devem confundir os números, até porque dezenas de mortes não são centenas de mortes!

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  5. A minhã mãe que se divorciou do meu pai quando tinha eu 1 ano e estava grávida do meu irmão de 4 meses, foi obrigada a pagar ao ditador Ceausescu e à sua esposa que nem tinha acabado o 8º ano (mas era Doutora) uma taxa mensalmente por ser divorciada. Era obrigada a ter um cartão com um número de identificação em que constava que era divorciada e tinha que o apresentar sempre quando ia às compras (às mercerias do Estado), e ficava sempre a última na fila.
    E nunca se falou na "Casa comunista de correção" que levava todos aqueles alunos que tinham médias baixas classificando-os como atrasados mentais. Não eram admissiveis médias baixas. Vergonha ao PCP, ao Álvaro Cunhal que estava lá e bem sabia como aquilo era, mas integrou-se bem naquilo. E hoje, todos aqueles miseráveis (funcionários) têm cargos importantes e são todos bonzinhos, é como se nada acontecesse. Miséria e humilhação é o que era naquele tempo. Ainda hoje tratam as pessoas como animais, já está no sangue e dificilmente desaparece. Os que conseguiram emigrar naquele tempo, que eram poucos, hoje em dia falam daquel tempo classificando-o com "os tempos de humilação, medo e lavagem cerebral".

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  6. Pergunto-me se Cunhal era humano, pois parece-me que - como muitos comunistas - sempre jogou xadrez durante toda a sua vida.. O PCP é, aliás, a mais alta encarnação da imbecilidade colectiva, onde o indivíduo não tem qualquer tipo de valor. A prova disso está consubstanciada na forma como trata os seu militantes mais críticos.
    Tudo isto neste belo país à beira mar plantado, onde se ilegalizou - e bem - o fascismo na vida política, mas promoveu, tolerou e permitiu que o comunismo e o socialismo tivessem legitimidade legal e parlamentar!

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  7. Pergunto-me se Cunhal era humano, pois parece-me que - como muitos comunistas - sempre jogou xadrez durante toda a sua vida.. O PCP é, aliás, a mais alta encarnação da imbecilidade colectiva, onde o indivíduo não tem qualquer tipo de valor. A prova disso está consubstanciada na forma como trata os seu militantes mais críticos.
    Tudo isto neste belo país à beira mar plantado, onde se ilegalizou - e bem - o fascismo na vida política, mas promoveu, tolerou e permitiu que o comunismo e o socialismo tivessem legitimidade legal e parlamentar!

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