quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Do pequeno nazi ao pequeno comunista: do Le Téméraire ao Vaillant.




 



 
Nos anos de chumbo da ocupação alemã de Paris (1943-1944)  circulou uma única revista de banda desenhada,  o  Le Téméraire, subintitulada "O jornal para a juventude moderna".  Sem qualquer concorrência − numa área editorial onde a competição era tradicionalmente grande − o seu sucesso não se fez esperar: cerca de 150.000 exemplares de tiragem quando interrompeu a circulação em Agosto de 1944. Mas as interrogações são muitas: como explicar que em tempos de penúria de papel pudesse circular uma publicação periódica, para mais com excelente aspecto gráfico, sem que para tal existisse uma expressa  autorização (no mínimo) do ocupante alemão?  E para que tal acontecesse não teria a revista de divulgar as mensagens  nazis e anti-semitas do ocupante? E era a referida publicação de origem alemã, se bem que formalmente dirigida por franceses e com desenhadores também franceses,  ou  pelo contrário tratava-se de uma iniciativa gaulesa com proprietários e capital francês?  E, finalmente, como explicar a transferência, finda a guerra, de  quase todos os desenhadores do nazi-fascista  Le Téméraire para o comunista Vaillant?
 
 
 
As questões têm ocupado os historiadores desde que  Pascal Ory ressuscitou dos arquivos a publicação e escreveu   Le Témérarie ou le petit nazi ilustré (1979, com 2ª edição em 2002).  Nem todas as perguntas têm tido resposta segura.
Se  bem que inicialmente Pascal Ory  apontasse na direcção germânica, ou seja, o jornal seria uma espécie de órgão de propaganda semi-oficial das autoridades militares e civis alemães tendo como destinatários os jovens franceses (à semelhança da revista para adultos Signal e de outras...), tal tese não parece hoje colher. Um artigo mais recente, publicado por Gilles Ragache em 2000  na Revue de Histoire Moderne et Contemporain e disponível onlinehttp://www.cairn.info/revue-d-histoire-moderne-et-contemporaine-2000-4-page-747.htm   − que investigou os processos judiciais do tempo da Libertação trouxe nova luz ao assunto.
Parece que o jornal terá sido  uma iniciativa de uma sociedade  comercial com capital inteiramente francês, as Éditions Coloniales et Métropolitaines , alimentada por um  grupo de homens da imprensa e da ilustração próximos do Governo de Vichy, com destaque para  Jaques Bousquet, chefe de Gabinete do Ministro da Educação Abel Bonnard  e impulsionador de movimentos de juventude fascizantes. Bousquet   foi chefe de redacção do Le Témeraire, que tinha  como secretário de redacção o jornalista André Ramon , conhecido colaboracionista,  que editará na mesma altura (1944) o jornal satírico Le Merinos (igualmente de tom ultra-colaboracionista).
Os ilustradores chamados a colaborar com o jornal − no total de 18,  a que se somaram 24 redactores − vêm quase todos do semanário Gravoche,  que se publicou em Paris até Fevereiro de 1942. Por essa altura a penúria de papel e certamente o agravamento da situação política e militar levou os alemães a impor severas condicionantes, que tiveram como resultado o desaparecimento de quase toda a imprensa juvenil em Paris (boa parte dela continuou a publicar-se em Vichy e outras cidades da apelidada «zona livre»). Em rigor, a política germânica na matéria visou no essencial proteger as publicações marcadamente colaboracionistas.
Assim, algumas aventuras iniciadas no Gavroche têm continuidade no Le Téméraire. Por exemplo o "Le Professeur Globule contre le Docteur Virus", ilustrada por Erik (André René Jolly, 1912-1974) continua com outro nome: "Le Docteur Fulminate et le Professeur Vorax".  Contudo, essa continuidade não será inócua. Pelo contrário, como veremos, ela será bem reveladora do conteúdo ideológico do novo jornal...continuidade no Le Té " Le Professeur Globule contre le Doctuer Virus" continua com outro nome : " Le Docteur Fulimate et le Pro
À pergunta se seria possível a circulação de um jornal (ainda que para jovens) em plena Paris ocupada,  sem que os alemães o autorizassem e sem que o seu conteúdo os não incomodasse... a resposta só pode ser negativa. Os estudos recentes comprovam essa autorização e as facilidades dadas quanto ao papel  para a impressão.
Acontece que a chamativa revista não se limitou ao papel de passivo  parceiro do ocupante alemão . Assumiu-se como um activíssimo veículo de colaboração naquilo que foi o mais radical registo anti-semita, pagão e imperial do nacional-socialismo.
Entre os ilustradores do Le Téméraire reconhecemos Vica, Mat, Josse,  Erik,  Poivet,  Liquois, Gire ou Rallic.  A simples enunciação destes nomes remete-nos para o Journal du Tintin e para muitas outras séries, aventuras e  publicações pós II Guerra Mundial.   Ragache, no estudo atrás citado, revela que  alguns desses ilustradores, quando interrogados no âmbito  dos inquéritos  judiciais após a Libertação,   declararam ter aceite colaborar dada  a escassez de trabalho,  remetendo a responsabilidade das mensagens e enredos  "nazis"  para os argumentistas.
A verdade é que − e tal não necessita de qualquer indagação histórica, basta ler os vários números do Téméraire − o seu conteúdo é marcadamente nazi/fascista.
Alguns exemplos: 
 
a)     a aventura "Vers les mondes inconnus", desenhada por Auguste Liquois (1902-1969), ocupava a ultima página do jornal e num registo de ficção científica, relatando a odisseia do Professor Arnoux e do seu sobrinho Norbert que num foguetão por eles concebido procuravam reconhecer a face escondida da Lua; aí Norbert encarregar-se-á de salvar  a bela Aulia das garras do usurpador Vénine (cuja pronúncia se confunde com Lénine) que se alia a um misterioso povo Gloul; se Norbert corresponde ao tipo físico ariano, os seus inimigos, designadamente o povo Gloul, são  representados de forma similar à norma caricatural do anti-semitismo  da época;
 
b) isso mesmo acontece na representação gráfica do Professeur Vorax da série que antes referimos ter sido uma continuação do  jornal Gravoche: e aí a comparação é muito óbvia, o sucessor do Docteur Virus ganha uma fisionomia caricatural do tipo semita...
 
 
 
 
 
c) alguns dos relatos e ilustrações do Le Téméraire são marcadamente anti-semitas ou, num registo diverso, exploram o isolamento da Europa "alemã" perante os ataques dos soviéticos, dos  americanos e dos ingleses. 
 
Mas o mais interessante  nesta história ocorre na transição entre o fim da ocupação alemã e a libertação de Paris. Se consultarmos o jornal Vaillant  de Junho de 1945, encontraremos de novo o traço inconfundível de Erik, Poivet, Liquois ou Jean Ache. Mais ainda: algumas das aventuras publicadas no Téméraire  têm continuação no Vaillant. Por exemplo, a aventura "Biceps costaud sentimental", de Jean Ache (Vaillant, do nº 133 ao 146)  dá continuidade à história com o  mesmo nome publicado no Téméraire (nºs 34 a 38).
 
 
 
 
 
 
 
Acontece porém que o jornal  Vaillant − que referenciava  como editor a Union de la jeunesse républicaine de France −   era propriedade  do  Partido Comunista Francês. Tratou-se de uma publicação nascida no ambiente da Libertação, substituindo o mal sucedido Jeune Patriote em 1945 e com o objectivo de conquistar um público mais amplo do que o militantes das  juventudes comunistas.
Esta  transição dos autores de BD suscita as maiores interrogações sobretudo quando sabemos do destino, por exemplo,  de Brasillach, de  Spinasse ou  Luchaire, após a libertação de Paris: os colaboracionistas da imprensa para jovens teriam escapado por completo ao processo de épuration  que ocorreu em 1944/1945 ?
Ora, a  verdade  parece ter sido um pouco mais complexa... mas mais surpreendente ainda!
É claro que os  períodos de transição política (monarquia/ república ou fascismo / democracia) têm destas particularidades: mudanças bruscas de 360º nas convicções políticas, quer por convicção quer por conveniência, radicalismos e exacerbamentos dos que de um dia para o outro passaram política e ideologicamente de um extremo a outro. 
O caso aqui relatado ultrapassa, contudo, esse lugar-comum das transições sociais e políticas.
Em boa verdade alguns dos desenhadores, como Auguste Liquois, por exemplo,  que durante a Ocupação ilustrava um relato de degradação e miséria moral dos combatentes da Resistência francesa (os maquisards) na série  "Zoubinette" publicada no jornal para adultos Le Mérinos dirigido por André Ramon ,  passaram, meses depois, no Vaillant, a desenhar um  relato exactamente oposto  de  suprema heroicidade desses mesmos maquisards (como foi o caso da série de grande sucesso "Fifi, Gars du maqui"...)
Dir-se-á que todos esses desenhadores passaram imunes ao processo de épuration. Em certo sentido, é verdade. Embora as autoridades da França Livre (onde os comunistas disputavam com os gaulistas a supremacia) tivessem aberto um processo de inquérito contra os colaboradores do Téméraire, o certo é que só um deles será condenado.
         Trata-se Vica, de seu nome verdadeiro Vincent Krassousky, nascido em 1902 em Kiev e cujo percurso se perde após a II Guerra Mundial. Mas, curiosamente, Vica será condenado não por ter desenhado para o Téméraire mas sim por ter ilustrado três álbuns violentamente xenófobos, anticomunistas, antiamericanos e antibritânicos (entre 1942 e 1943), a saber "Vica au Paradis de l´URSS", "Vica contre le Services Secrets Anglais" e "Vica défie Oncle Sam" (hoje verdadeiras preciosidades no mercado alfarrabista). Um trabalho de encomenda nazi, com textos de colaboradores alemães, sabe-se hoje. Vica foi condenado a um ano de prisão, 1000 francos de indemnização e à  indignidade nacional. Que saibamos, foi o único autor de BD condenado em tribunal por colaboração com o ocupante alemão (o caso de Hergé não é similar, até porque nunca será formalmente condenado).
Todos os outros passaram incólumes, com a justificação provável de que os argumentos não eram da sua autoria. Limitaram-se a desenhar... e os desenhadores nessa época pouca  ou nenhuma importância mereciam! 
Mas acresce um outro aspecto que ajuda a confundir ainda mais  toda esta história.
À medida que se percebia qual o destino da Alemanha na II Guerra,  alguns dos colaboradores do Téméraire, a começar pelo seu chefe de redacção, Jacques Bousquet − sim,  o mesmíssimo chefe de gabinete do ultra-colaboracionista Bonnard −,  e a terminar no  secretário de redacção,  André Ramon ,  terão aderido à Resistência. A tal ponto, a fazer fé no depoimento do próprio Bousquet em 1945, a redacção do Téméraire  "tornou-se um centro da Resistência".
A verdade é que Bousquet, "oficial das F.F.I",  terá participado nas barricadas de Paris, armas na mão,  contra os nazis,  em Agosto de 1944... justamente ao mesmo tempo que  o jornal nazi de que era chefe de redacção  se publicava  pela última vez!
Outros, como André Liquois, chegaram mesmo a aderir ao Partido Comunista ...
O caso de André Liquois merece ser sucintamente relatado. Quando os responsáveis comunistas de Vaillant descobriram o seu passado, o que ocorreu em Julho de 1946, afastaram-no do jornal. O que não impediu de ser imediatamente contratado por outra revista juvenil saída também dos meios da Resistência, a  Coq Hardi. Esta última, dirigida por Marijac,  um resistente de passado impoluto (e um autor de referência na BD francesa), só terá ganho  consciência do passado de  quem estava a contratar um ano depois ,  em Julho de 1947. Entretanto já Liquois havia fundado, com Alain Saint Ogan,  o Sindicato dos Desenhadores de Imprensa, Secção Infantil, de inspiração filo-comunista.  E,  para coroar tão extraordinário percurso, o órgão oficial do Partido Comunista, o L´Humanité,  adquirirá  e publicará  em 1955 uma série intitulada "Fra Diavolo", concebida e desenhada pelo mesmíssimo Liquois.  
Casos similares aos de Liquois multiplicaram-se;  nem todos, é claro,  da extrema-direita para extrema esquerda...
E há mesmo quem fale de  uma espécie de itinerário colectivo dos autores de banda desenhada saídos da ocupação alemã...
É provável. Mas  em todo este novelo há muita História (e histórias) por contar... e revelar!
 
 
Ricardo Leite Pinto   o naquilo que foi o registo anti-semita e inicularidade que adianta de destacarcom outro nome : " Le Docteur Fulimate et le Pro
 
 
 

7 comentários:

  1. O caso de Hergé é bem conhecido, mas "L'Étoile Mystérieuse", na sua primeira versão, é claramente pró-nazi: um Fundo Europeu de Investigação Científica (FERS), integrado por um cientista alemão e outros três de países neutros (Portugal, Espanha e Suécia), conduzido por Tintin e Haddock, combate o pérfido judeu americano Samuel Blumenstein e a expedição do "Peary", navio com pavilhão dos Estados Unidos…

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    1. Permita-me acrescentar outro possível sinal da simpatia nazi de Hergé: Tintin descobre gelo na lua (talvez lá tenha ido para isso) e tal corresponde a uma teoria, polémica na época, do cientista pró-nazi Hoerbiger... pelos vistos ainda não confirmada.

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    2. Eu outra vez. Para especificar que Horbiger foi, sim, adotado pelos doutrinadores nazis.

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  2. A grafia correcta do título do semanário é "Gavroche".

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  3. Onde se lê "mudanças bruscas de 360º", talvez se queira dizer "mudanças bruscas de 180º"... Se não, ficava-se no mesmo...
    Por outro lado "360º" até pode estar correcto, dado que mantiveram a adesão a um totalitarismos desumano.
    Parabéns por mais esta pérola.

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  4. Só para "desconversar" : enquanto escrevia o artigo, ter-lhe-á ocorrido um nome , Sartre?
    Não, òbviamente, em relação ás revistas, mas sim ao contexto ?...
    Nas suas "Memórias", Raymond Aron chega a ser estridente...por omissão.
    E o prometido segundo volume das "Antimémoires" , de Malraux, mantém-se isso mesmo - uma promessa...

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