Nos
anos de chumbo da ocupação alemã de Paris (1943-1944) circulou uma única revista de banda desenhada, o Le Téméraire, subintitulada "O
jornal para a juventude moderna". Sem
qualquer concorrência − numa área editorial onde a competição era
tradicionalmente grande − o seu sucesso não se fez esperar: cerca de 150.000
exemplares de tiragem quando interrompeu a circulação em Agosto de 1944. Mas as
interrogações são muitas: como explicar que em tempos de penúria de papel
pudesse circular uma publicação periódica, para mais com excelente aspecto
gráfico, sem que para tal existisse uma expressa autorização (no mínimo) do ocupante
alemão? E para que tal acontecesse não
teria a revista de divulgar as mensagens
nazis e anti-semitas do ocupante? E era a referida publicação de origem
alemã, se bem que formalmente dirigida por franceses e com desenhadores também
franceses, ou pelo contrário tratava-se de uma iniciativa
gaulesa com proprietários e capital francês?
E, finalmente, como explicar a transferência, finda a guerra, de quase todos os desenhadores do nazi-fascista Le
Téméraire para o comunista Vaillant?
As
questões têm ocupado os historiadores desde que
Pascal Ory ressuscitou dos arquivos a publicação e escreveu Le Témérarie ou le petit nazi ilustré
(1979, com 2ª edição em 2002). Nem
todas as perguntas têm tido resposta segura.
Se bem que inicialmente Pascal Ory apontasse na direcção germânica, ou seja, o
jornal seria uma espécie de órgão de propaganda semi-oficial das autoridades
militares e civis alemães tendo como destinatários os jovens franceses (à
semelhança da revista para adultos Signal e de outras...), tal tese não parece
hoje colher. Um artigo mais recente, publicado por Gilles Ragache em 2000 na Revue
de Histoire Moderne et Contemporain e disponível online − http://www.cairn.info/revue-d-histoire-moderne-et-contemporaine-2000-4-page-747.htm − que investigou os processos judiciais do
tempo da Libertação trouxe nova luz ao assunto.
Parece
que o jornal terá sido uma iniciativa de
uma sociedade comercial com capital
inteiramente francês, as Éditions Coloniales et Métropolitaines , alimentada
por um grupo de homens da imprensa e da
ilustração próximos do Governo de Vichy, com destaque para Jaques Bousquet, chefe de Gabinete do
Ministro da Educação Abel Bonnard e
impulsionador de movimentos de juventude fascizantes. Bousquet foi chefe de redacção do Le Témeraire, que tinha como secretário de redacção o jornalista André
Ramon , conhecido colaboracionista, que
editará na mesma altura (1944) o jornal satírico Le Merinos (igualmente de tom ultra-colaboracionista).
Os
ilustradores chamados a colaborar com o jornal − no total de 18, a que se somaram 24 redactores − vêm quase
todos do semanário Gravoche, que
se publicou em Paris até Fevereiro de 1942. Por essa altura a penúria de papel
e certamente o agravamento da situação política e militar levou os alemães a
impor severas condicionantes, que tiveram como resultado o desaparecimento de
quase toda a imprensa juvenil em Paris (boa parte dela continuou a publicar-se
em Vichy e outras cidades da apelidada «zona livre»). Em rigor, a política
germânica na matéria visou no essencial proteger as publicações marcadamente
colaboracionistas.
Assim,
algumas aventuras iniciadas no Gavroche
têm continuidade no Le Téméraire. Por
exemplo o "Le Professeur Globule contre le Docteur Virus", ilustrada
por Erik (André René Jolly, 1912-1974) continua com outro nome: "Le Docteur
Fulminate et le Professeur Vorax".
Contudo, essa continuidade não será inócua. Pelo contrário, como
veremos, ela será bem reveladora do conteúdo ideológico do novo jornal...
À
pergunta se seria possível a circulação de um jornal (ainda que para jovens) em
plena Paris ocupada, sem que os alemães
o autorizassem e sem que o seu conteúdo os não incomodasse... a resposta só pode
ser negativa. Os estudos recentes comprovam essa autorização e as facilidades
dadas quanto ao papel para a impressão.
Acontece
que a chamativa revista não se limitou ao papel de passivo parceiro do ocupante alemão . Assumiu-se como
um activíssimo veículo de colaboração naquilo que foi o mais radical registo
anti-semita, pagão e imperial do nacional-socialismo.
Entre
os ilustradores do Le Téméraire reconhecemos
Vica, Mat, Josse, Erik, Poivet,
Liquois, Gire ou Rallic. A
simples enunciação destes nomes remete-nos para o Journal du Tintin e para muitas outras séries, aventuras e publicações pós II Guerra Mundial. Ragache, no estudo atrás citado, revela
que alguns desses ilustradores, quando
interrogados no âmbito dos
inquéritos judiciais após a Libertação, declararam ter aceite colaborar dada a escassez de trabalho, remetendo a responsabilidade das mensagens e
enredos "nazis" para os argumentistas.
A
verdade é que − e tal não necessita de qualquer indagação histórica, basta ler
os vários números do Téméraire − o
seu conteúdo é marcadamente nazi/fascista.
Alguns
exemplos:
a) a
aventura "Vers les mondes inconnus", desenhada por Auguste Liquois (1902-1969),
ocupava a ultima página do jornal e num registo de ficção científica, relatando
a odisseia do Professor Arnoux e do seu sobrinho Norbert que num foguetão por
eles concebido procuravam reconhecer a face escondida da Lua; aí Norbert
encarregar-se-á de salvar a bela Aulia das
garras do usurpador Vénine (cuja pronúncia se confunde com Lénine) que se alia
a um misterioso povo Gloul; se Norbert corresponde ao tipo físico ariano, os
seus inimigos, designadamente o povo Gloul, são
representados de forma similar à norma caricatural do
anti-semitismo da época;
b) isso mesmo acontece na representação
gráfica do Professeur Vorax da série que antes referimos ter sido uma
continuação do jornal Gravoche: e aí a comparação é muito
óbvia, o sucessor do Docteur Virus ganha uma fisionomia caricatural do tipo
semita...
c) alguns dos relatos e ilustrações do Le Téméraire são marcadamente
anti-semitas ou, num registo diverso, exploram o isolamento da Europa "alemã"
perante os ataques dos soviéticos, dos
americanos e dos ingleses.
Mas
o mais interessante nesta história
ocorre na transição entre o fim da ocupação alemã e a libertação de Paris. Se
consultarmos o jornal Vaillant de Junho de 1945, encontraremos de novo o
traço inconfundível de Erik, Poivet, Liquois ou Jean Ache. Mais ainda: algumas
das aventuras publicadas no Téméraire
têm continuação no Vaillant. Por exemplo, a aventura "Biceps costaud
sentimental", de Jean Ache (Vaillant,
do nº 133 ao 146) dá continuidade à
história com o mesmo nome publicado no Téméraire (nºs 34 a 38).
Acontece
porém que o jornal Vaillant − que referenciava
como editor a Union de la jeunesse républicaine de France − era propriedade do
Partido Comunista Francês. Tratou-se de uma publicação nascida no
ambiente da Libertação, substituindo o mal sucedido Jeune Patriote em 1945 e com o objectivo de conquistar um público
mais amplo do que o militantes das
juventudes comunistas.
Esta transição dos autores de BD suscita as
maiores interrogações sobretudo quando sabemos do destino, por exemplo, de Brasillach, de Spinasse ou
Luchaire, após a libertação de Paris: os colaboracionistas da imprensa para jovens
teriam escapado por completo ao processo de épuration que ocorreu em 1944/1945 ?
Ora,
a verdade parece ter sido um pouco mais complexa... mas
mais surpreendente ainda!
É
claro que os períodos de transição
política (monarquia/ república ou fascismo / democracia) têm destas
particularidades: mudanças bruscas de 360º nas convicções políticas, quer por convicção
quer por conveniência, radicalismos e exacerbamentos dos que de um dia para o
outro passaram política e ideologicamente de um extremo a outro.
O
caso aqui relatado ultrapassa, contudo, esse lugar-comum das transições sociais
e políticas.
Em
boa verdade alguns dos desenhadores, como Auguste Liquois, por exemplo, que durante a Ocupação ilustrava um relato de
degradação e miséria moral dos combatentes da Resistência francesa (os maquisards) na série "Zoubinette" publicada no jornal
para adultos Le Mérinos dirigido por
André Ramon , passaram, meses depois, no
Vaillant, a desenhar um relato exactamente oposto de
suprema heroicidade desses mesmos maquisards
(como foi o caso da série de grande sucesso "Fifi, Gars du maqui"...)
Dir-se-á
que todos esses desenhadores passaram imunes ao processo de épuration. Em certo sentido, é verdade.
Embora as autoridades da França Livre (onde os comunistas disputavam com os
gaulistas a supremacia) tivessem aberto um processo de inquérito contra os
colaboradores do Téméraire, o certo é
que só um deles será condenado.
Trata-se
Vica, de seu nome verdadeiro Vincent Krassousky, nascido em 1902 em Kiev e cujo
percurso se perde após a II Guerra Mundial. Mas, curiosamente, Vica será
condenado não por ter desenhado para o Téméraire
mas sim por ter ilustrado três álbuns violentamente xenófobos, anticomunistas,
antiamericanos e antibritânicos (entre 1942 e 1943), a saber "Vica au
Paradis de l´URSS", "Vica contre le Services Secrets Anglais" e
"Vica défie Oncle Sam" (hoje verdadeiras preciosidades no mercado
alfarrabista). Um trabalho de encomenda nazi, com textos de colaboradores
alemães, sabe-se hoje. Vica foi condenado a um ano de prisão, 1000 francos de indemnização
e à indignidade nacional. Que saibamos,
foi o único autor de BD condenado em tribunal por colaboração com o ocupante
alemão (o caso de Hergé não é similar, até porque nunca será formalmente
condenado).
Todos
os outros passaram incólumes, com a justificação provável de que os argumentos
não eram da sua autoria. Limitaram-se a desenhar... e os desenhadores nessa
época pouca ou nenhuma importância
mereciam!
Mas
acresce um outro aspecto que ajuda a confundir ainda mais toda esta história.
À
medida que se percebia qual o destino da Alemanha na II Guerra, alguns dos colaboradores do Téméraire, a começar pelo seu chefe de redacção,
Jacques Bousquet − sim, o mesmíssimo
chefe de gabinete do ultra-colaboracionista Bonnard −, e a terminar no secretário de redacção, André Ramon ,
terão aderido à Resistência. A tal ponto, a fazer fé no depoimento do
próprio Bousquet em 1945, a redacção do Téméraire
"tornou-se um centro da Resistência".
A
verdade é que Bousquet, "oficial das F.F.I", terá participado nas barricadas de Paris,
armas na mão, contra os nazis, em Agosto de 1944... justamente ao mesmo
tempo que o jornal nazi de que era chefe
de redacção se publicava pela última vez!
Outros,
como André Liquois, chegaram mesmo a aderir ao Partido Comunista ...
O
caso de André Liquois merece ser sucintamente relatado. Quando os responsáveis
comunistas de Vaillant descobriram o
seu passado, o que ocorreu em Julho de 1946, afastaram-no do jornal. O que não
impediu de ser imediatamente contratado por outra revista juvenil saída também
dos meios da Resistência, a Coq Hardi. Esta última, dirigida por
Marijac, um resistente de passado
impoluto (e um autor de referência na BD francesa), só terá ganho consciência do passado de quem estava a contratar um ano depois , em Julho de 1947. Entretanto já Liquois havia
fundado, com Alain Saint Ogan, o
Sindicato dos Desenhadores de Imprensa, Secção Infantil, de inspiração
filo-comunista. E, para coroar tão extraordinário percurso, o
órgão oficial do Partido Comunista, o L´Humanité, adquirirá
e publicará em 1955 uma série
intitulada "Fra Diavolo", concebida e desenhada pelo mesmíssimo
Liquois.
Casos
similares aos de Liquois multiplicaram-se;
nem todos, é claro, da
extrema-direita para extrema esquerda...
E
há mesmo quem fale de uma espécie de
itinerário colectivo dos autores de banda desenhada saídos da ocupação alemã...
É
provável. Mas em todo este novelo há
muita História (e histórias) por contar... e revelar!
Ricardo Leite Pinto
O caso de Hergé é bem conhecido, mas "L'Étoile Mystérieuse", na sua primeira versão, é claramente pró-nazi: um Fundo Europeu de Investigação Científica (FERS), integrado por um cientista alemão e outros três de países neutros (Portugal, Espanha e Suécia), conduzido por Tintin e Haddock, combate o pérfido judeu americano Samuel Blumenstein e a expedição do "Peary", navio com pavilhão dos Estados Unidos…
ResponderEliminarPermita-me acrescentar outro possível sinal da simpatia nazi de Hergé: Tintin descobre gelo na lua (talvez lá tenha ido para isso) e tal corresponde a uma teoria, polémica na época, do cientista pró-nazi Hoerbiger... pelos vistos ainda não confirmada.
EliminarEu outra vez. Para especificar que Horbiger foi, sim, adotado pelos doutrinadores nazis.
EliminarA grafia correcta do título do semanário é "Gavroche".
ResponderEliminarJá foi corrigido. Muito obrigado!
EliminarOnde se lê "mudanças bruscas de 360º", talvez se queira dizer "mudanças bruscas de 180º"... Se não, ficava-se no mesmo...
ResponderEliminarPor outro lado "360º" até pode estar correcto, dado que mantiveram a adesão a um totalitarismos desumano.
Parabéns por mais esta pérola.
Só para "desconversar" : enquanto escrevia o artigo, ter-lhe-á ocorrido um nome , Sartre?
ResponderEliminarNão, òbviamente, em relação ás revistas, mas sim ao contexto ?...
Nas suas "Memórias", Raymond Aron chega a ser estridente...por omissão.
E o prometido segundo volume das "Antimémoires" , de Malraux, mantém-se isso mesmo - uma promessa...