O urso Wojtek
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Ursos, este
é o tema que aqui trazemos hoje. Temos falado algumas vezes de leões e de
estátuas de leões, pelo que poderiam alguns pensar que lhes atribuímos um lugar
especial nos nossos corações. Nada disso. O afecto maior vai para os
rinocerontes indianos e os bisontes polacos mas, nesse caso, a devoção é tanta
que nem sequer ousamos maçar a paciência dos nossos leitores com o muito,
muitíssimo, que haveria a dizer.
Também não nos move a convicção
monárquica de que o leão é o rei dos animais. Nessa matéria, recomendamos
vivamente a leitura de um livro de Michel Pastoureau, outro amante de cores e
de bichos, intitulado L’ours. Histoire d’un roi déchu (Paris, Seuil, 2007). Laurae
ursorum amicae omnium, a frase latina que serve de intróito ao maravilhoso
escrito de Pastoureau, onde se demonstra, sem margem para dúvida, que o urso,
durante séculos, foi considerado o monarca absoluto do reino animal.
Simplesmente, ao colocar no subtítulo «história de um rei destronado»,
Pastoureau está a entregar os pontos e a reconhecer o final de uma dinastia
régia que – pelo contrário – tem mais do que legítimos direitos a reclamar o
trono. Sem querer entrar em questões íntimas, do foro privado de cada bicho,
importa notar, por exemplo, que ainda recentemente foi cientificamente
comprovado o seguinte: a população de ursos dos Pirinéus estava em risco, mas
foi salva da extinção devido à abnegada e frenética actividade sexual de um só macho, «Pyros». Gostava de saber – entre os humanos, por exemplo – qual seria o
macho capaz de, por si só, resolver o problema demográfico que atinge Portugal.
E, já agora, poderíamos ver se um leão, todo ufano de ser o rei da selva, seria
capaz de salvar da extinção os ursos pirenaicos. Não seria. Para os que acharem
que me aventuro por caminhos ínvios e ímpios, relembro a existência de uma
piedosa Bíblia do Urso, publicada em
1569 e recentemente reeditada. La obra maestra escondida, assim lhe chamou Antonio Muñoz Molina.
Mas do que queria falar era mesmo de
Wojtek (ou Voytek), um bravo soldado. Ao longo da História, sempre existiu a
tendência para incorporar animais nas forças armadas, acompanhando os exércitos
a caminho da matança. Nuns casos ajudam à arte da guerra, noutros vão apenas
como adereço, servindo de mascotes. Há situações mais graduadas. Por exemplo,
desde 1775 que o 1ª Batalhão do Royal Welsh, do Exército Britânico, tem ao
serviço um bode, ou cabra. Ainda recentemente, ocorreu uma situação muito
desagradável, uma espécie de affaire
Dreyfuss caprino, passada no regimento galês. O cabo William Windsor,
familiarmente conhecido por «Billy», que apresentava uma impecável folha de
serviços a Sua Majestade, foi alvo de um processo disciplinar. A justiça
castrense, sempre severa, ordenou que fosse temporariamente rebaixado ao posto
de fuzileiro. Ao que se sabe, o bode Billy não recorreu da pena, mas devia. O
que se passou para justificar tão grave punição? E, 16 de Junho de 2006,
organizou-se uma aparatosa parada militar numa base militar próxima de chifre,
digo, de Chipre. Comemorava-se o 80º aniversário da Rainha Isabel, a ocasião
era solene. Perante altos dignitários estrangeiros – entre os quais os
embaixadores de Espanha, dos Países Baixos e da Suécia, e o comandante
argentino das forças das Nações Unidas em Chipre – o bode não obedeceu à voz de
comando. Dir-se-á mesmo até que desobedeceu, e em público. Saiu da fila, como
qualquer português na Loja do Cidadão, desrespeitou as ordens superiores do
oficial que o comandava (o cabo Dai Davies) e teve até o atrevimento de tentar
dar umas marradas num tocador de tambor. Em síntese, estragou a festa.
Aberto o competente processo, foi o
bode William Windsor (que, pelo apelido, ainda deve ser parente da rainha
octogenária) acusado de várias infracções aos códigos disciplinares. O auto era
extenso: «comportamento inaceitável», «falta de decoro», «desobediência de uma
ordem directa». Levaram-no à presença do oficial-comandante, o tenente-coronel
Huw James. Na audiência disciplinar, foi-lhe comunicado que seria rebaixado ao
posto de fuzileiro. O bode não tugiu nem mugiu, certamente por estar bem
convicto – quiçá, arrependido – do mal que tinha causado ao prestígio do
Exército Britânico. A sanção transitou em julgado e teve uma consequência
humilhante: doravante, os fuzileiros do regimento não estavam obrigados a
prestar continência a William Windsor, sempre que passassem diante da sua
imponente cornadura.
Obviamente, as coisas não poderiam
ficar por aqui. Um grupo canadiano de defesa dos direitos dos animais
protestou. E com veemência. Afirmou, com inteira razão, de que se tratava de um
bode e que se comportara como tal; mas, do mesmo passo, sustentou que deveria
ser restituído ao posto de cabo. Quer dizer, os canadianos dos animal rights não contestaram a
incorporação nas fileiras de animais de tiro ou de recreação periódica.
Solicitaram tão-só a revogação da pena disciplinar. Mas fizeram-no com firmeza
e argumentos válidos, de que se destaca o seguinte: um bode é um bode é um
bode. O Exército Britânico, geralmente tão garboso e nariz no ar, recuou na
decisão tomada – e que, de facto, era uma vergonha terrível para o militar
castigado. Nestas coisas da tropa, nunca se recua verdadeiramente. Faz-se uma
retirada estratégica, jamais se assumindo que se cometera um erro, neste caso
grosseiro. A injustiça, em todo o caso, foi reparada. Três meses depois, Billy
Windsor reconquistou o posto antigo, apresentando no desfile castrense que
celebrou a vitória na Guerra da Crimeia a sua sedosa aparência (estamos a falar
de um bode revestido a caxemira, atençãozinha). Em declarações aos jornalistas,
o capitão Simon Clarke teve ensejo de explicitar: «Billy comportou-se
extremamente bem, teve todo o Verão para reflectir sobre a sua atitude no
Aniversário da Rainha e conquistou indubitavelmente o posto que merece». Por
conseguinte, os cabos do 1st Batallion do Royal Welsh passaram de novo a ter de
prestar continência sempre que passassem pelo bode de caxemira. Mais
importante, este voltou a poder frequentar a messe dos oficiais.
Não foi o primeiro incidente com gado
caprino nas forças armadas britânicas. Uma cabra real foi «prostituída» há
muitos anos, sendo disponibilizada pelo oficial que dela cuidava a um criador
caprino de Wrexham, no País de Gales. Deu processo na caserna, obviamente. O
oficial ainda alegou que actuara «por compaixão» pela cabra solitária, mas o
tribunal marcial não foi na conversa e desgraduou a cabra por desrespeito aos
seus superiores hierárquicos. Noutra ocasião, de maior gravidade, um bode
conquistou a alcunha de «rebelde» por ter marrado nas traseiras de um coronel
enquanto este se curvava para vestir as calças do uniforme. O acto foi descrito
à época como um «acto vergonhoso de insubordinação».
Em Maio de 2009, após oito anos ao
serviço de Sua Majestade, o cabo William Windsor reformou-se, por razões de
idade, sendo-lhe prestadas as honrarias que bem mereceu ao longo de uma
distinta carreira militar. Foi levado para merecido repouso no zoo de
Berdfordshire e, segundo consta, não sofreu quaisquer cortes na pensão de
aposentação. Enquanto isso, Camilla Parker-Bowles mantém-se no activo.
Com esta história desviámo-nos do
essencial, o urso Wotjek. Fica para amanhã. Antes do nos despedirmos talvez
convenha referir que chegámos aqui no âmbito de um estudo mais amplo que vimos
realizando, o qual tem por objecto uma realidade pouco estudada pelos
historiadores portugueses: o papel higiénico soviético. Importa notar que uma
das mais importantes acções de espionagem da Guerra Fria esteve relacionada com
o papel higiénico soviético. O cenário desta guerra suja foi a BRIXMIS,
acrónimo sobejamente conhecido para a missão militar de ligação entre o Oeste e
a URSS na Alemanha de Leste. A BRIXMIS (pronto: The British Commanders’-in-Chief Mission to the Soviet Forces in
Germany) esteve em funções durante toda a Guerra Fria. Dezenas de anos, de
1946 a 1990. A dada altura, um oficial mais arguto teve a ideia de lançar a
Operação Tamarisk. Explicada em breves linhas, até porque se trata de assunto
que não queremos esmiuçar, o plano consistia em acabar com o abastecimento de
papel higiénico às forças soviéticas estacionadas na Alemanha, que ali se
sentaram anos, de armas e bagagens. À falta de papel higiénico, os russos
limpar-se-iam a documentos e relatórios secretos, deitando-os no caixote do
lixo. Uma brigada de espiões, numa operação digna de um romance de John Le
Carré, todas as noites recolhia e examinava a papelada utilizada. Os espiões
destacados, vá-se lá saber porquê, queixaram-se aos seus superiores, com
reivindicações absurdas, típicas do mais abusivo sindicalismo. Tiveram o
desplante de afirmar que lhes custava andarem a meio da noite a recolher os
cestos dos papéis das latrinas russas. Desconheceriam, por certo, o que, anos
depois, tiveram de fazer os seus colegas da espionagem francesa para obter a
sensacional descoberta de que Brejnev padecia de um cancro no aparelho digestivo.
Não vou contar essa história, provavelmente lendária, mas a informação da doença do líder soviético
mudou o curso da História. A Operação Tamarisk foi igualmente um êxito. De
acordo com alguns historiadores ou protagonistas, tratou-se de uma das mais bem-sucedidas operações de espionagem de toda a Guerra Fria.
Moscovo, 1990
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O que é que isto tem a ver com um urso?
É simples: visitem o riquíssimo e interessantíssimo Museu Virtual Kresy Siberia, patrocinado pelas mais altas entidades oficiais polacas. Lá
encontrarão, em formato PDF, o livro «Na União Soviética sem Papel Higiénico»,
escrito por Roman V. Skulski. Aos 21 anos, foi incorporado à força no Exército
Vermelho, como soldado nos batalhões de exércitos e morteiros que tiveram de
percorrer mais de 500 quilómetros até Estalinegrado, durante um dos mais frios
e rigorosos invernos de que há memória. Com ele, outros 300.000 jovens polacos
foram incorporados à força nas forças armadas russas. Roman V. Skulski
conseguiu escapar de um campo de trabalho, percorrendo milhares de quilómetros
através do deserto de Kara Kum. Com ele, transportava apenas um mapa
rudimentar, um saco com cebolas e outros três companheiros. Entre centenas de outras fontes, é no livro de
Skulski que se conta a história do urso Wojtek.
Quer
o urso polaco, quer o bode britânico foram muito mais bem tratados do que milhares
de jovens polacos. Por muito imoral que seja, esta é a moral da fábula, que amanhã continuaremos.
António Araújo
Em que ano foi incorporado o jovem polaco?Tem muita importancia dado que nessa altura (40-45?)eventualmente a opção seria a guerrilha,deserção ou a colaboração com o exercito alemão.A Polonia como estado não existia.Enfim...ha alturas em que as opções não abundam .Antes do fim da guerra colonial as nossas opções tambem não eram famosas...
ResponderEliminarTem aqui as memórias dele:
Eliminarhttp://kresy-siberia.org/hom/element/jenny-skulski/in-the-soviet-union-without-toilet-paper-by-roman-v-skulski/
Muito obrigado, cordialmente,
António Araújo