Henri Cartier-Bresson,
Paris, 1937
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O
mestre Henri Cartier-Bresson (HCB), como é sabido, dizia vezes sem conta que as
fotografias que publicava eram exactamente iguais às que a sua câmara captara.
Não admitia enquadramentos ou manipulações na altura da revelação. Nos Estados
Unidos, perguntaram-lhe um dia como pretendia que as suas imagens fossem
reveladas. Respondeu: «O único que quero é que uma fotografia seja tal como a
vi.» Por diversas vezes, insiste nesse tópico nas entrevistas que concedeu ao
longo dos anos e que agora foram publicadas em França em livro intitulado Voir est un tout. Entretiens et
conversations (1951-1998), Paris, 2013. Existe tradução espanhola feita há
uns meses e editada pela Gustavo Gili de Barcelona. Ambos os livros acompanham
a retrospectiva de HCB que esteve patente no Centro Pompidou e, até ao passado
dia 7 de Setembro, na Fundação Mapfre, em Madrid.
Ao ver a exposição, fiquei intrigado
com esta fotografia. Pareceu-me que, claramente, algo se passara com ela.
Sobretudo, com a imagem da mulher, com o recorte do seu penteado. Perguntei a
pessoas amigas, foram da mesma opinião. A fotografia consta do site da Magnum, aqui, tendo a seguinte
legenda: «França, Paris, 26 de Março de 1937». Surge também no monumental
catálogo da exposição de Paris/Madrid, da autoria de um dos maiores
especialistas na obra de HCB, Clément Chéroux. Na página 179 desse catálogo, na
edição espanhola, aparece com a seguinte legenda: «Funerais das vítimas do tiroteio
de Clichy, Paris, França, 21 de Março de 1937.» A discrepância das datas não é
muito relevante: na Magnum falam em 26 de Março, na exposição antológica falam
em 21 de Março. O que impressiona, insisto, é a fotografia em si mesma.
Surgiu nas páginas do Ce Soir,
jornal da imprensa comunista francesa, dirigido por Louis Aragon. Já aparece desta
forma. O que se terá passado? Um erro na revelação, que escapou ao mestre dos
mestres? Ou, pior ainda, uma manipulação fotográfica? Será possível?
É possível que os aspectos estranhos da fotografia derivem das imagens das pessoas que se encontravam em frente do veículo, refletidas no vidro da janela.
ResponderEliminarSim, ao princípio pensei isso, mas se reparar a tonalidade da imagem feminina nada tem que ver com a das pessoas reflectidas no vidro. Uma hipótese é terem «puxado» a imagem da mulher, possivelmente ensombra, para conferir maior «dramatismo» à imagem. Enfim, fica à considerações dos leitores.
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
Cordialmente,
António Araújo
Poderia ser a superposição accidental de duas ou mais fotos, por esquecimento de adiantar o filme.
EliminarPor acaso acho que é exactamente ao contrário, a face da mulher terá sido menos exposta na ampliação (aplicação de mascara localizada). Digo isto porque, se reparar nas sombras, temos o sol a entrar pela janela directamente na cara da mulher, o que poderia levar a que esta "rebentasse" (sobreexposição) - veja-se a parte da cara do homem exposta ao sol, num branco quase "rebentado". Se juntarmos a isto os reflexos da janela, obtemos este efeito pouco natural.
ResponderEliminarSeja como for, este tipo de manipulações ao negativo não me parece contrariar as ideias de HCB. "O único que quero é que uma fotografia seja tal como a vi". E os negativos saídos da máquina raramente são aquilo que vimos no momento do disparo...
Cumprimentos,
Victor Hertizel
Caro Victor Hertizel,
EliminarSeja o que for que se tenha passado (a hipótese do véu é plausível, mas um véu provocaria um sombreado, não uma «claridade» daquelas), a manipulação ao negativo contraria tudo o que HCB disse ao longo dos anos, em entrevistas que poderá ler no livro «Voir est un tout» (de que existe tradução espanhola)
Cartier-Bresson não autorizava cortes, enquadramentos, etc não fotografias que publicava e, menos ainda, manipulações ao negativo.
Cordialmente, muito grato
António Araújo
Caro António Araújo,
EliminarDo que conheço de HCB, de facto ele de facto opunha-se veementemente a cortes e reenquadramentos ("negativo integral", ou seja, aproveitamento de todo negativo, facilmente reconhecível pela borda negra à volta de todas as suas impressões), mas a manipulação localizada de tonalidades/exposição ("dodge e burn") faz parte do processo de impressão e não desvirtua (antes pelo contrário, potencia) o olhar do fotografo, e muito menos entra na (minha) definição de "manipulação fotográfica".
De ler, a propósito, esta reportagem sobre um dos grandes impressores de, entre outros, HCB, com quem naturalmente trabalhava de perto (http://theonlinephotographer.typepad.com/the_online_photographer/2010/08/voya-mitrovic-part-i.html), onde às tantas se diz " there are several famous images of H.C.-B. which require tremendous burning and dodging—such as the image of the nuns praying in India".
De qualquer maneira, muito obrigado pela sugestão do livro, que desconhecia (e talvez ajude a esclarecer melhor esta questão).
Cumprimentos,
Victor Hertizel
Caro Victor Hertizel,
EliminarMuito obrigado por possibilitar este diálogo, desconhecia essa referência. Devo esclarecer que não domino a técnica de revelação a ponto de falar sobre ela, mas permita-me que cite uma passagem de uma entrevista concedida por HCB a Richard Simon, em 1952. Vou fazer uma tradução muito livre:
«Não podes dar a qualquer um o teu trabalho para que o revele. Mas, dês a quem o deres, o importante desde o início é que te conheçam, que se acostumem ao teu trabalho, que te perguntem do que gostas no revelado e positivado. A partir daí, trabalha-se sempre com os mesmos. Nos Estados Unidos, trabalhava com Leco. A primeira vez que lá fui, Ilsa, que se ocupava do meu trabalho, disse-me: “Negros profundos, clave alta, clave baixa…” Respondi: “Espere, espere! Não sei sequer o que significa toda essa conversa.” Digo-o a sério, O único que quero é que a fotografia seja tal como eu a vi. Esse trabalho de positivado, todo esse blablablablá consiste em reconstruir as coisas tal como era quando as vi. É importante dizer a um laboratório se uma fotografia foi tirada, por exemplo, às seis da tarde. Se não, podem pensar que está subexposta e tentar corrigi-la.»
Estas palavras, naturalmente, não infirmam o que refere no seu comentário. Mas talvez ajudem a compreender a visão de HCB sobre a revelação. Devemos, por outro lado, ter presente o contexto da época, o que era o jornal «Ce Soir», o que foram os incidentes em Clichy, etc.
Não afirmo, de modo algum, que a fotografia tenha sido «manipulada». Coloco apenas em dúvida se ela corresponde exactamente àquilo que HCB vira naquele «instante decisivo», para usar uma expressão consagrada do autor. Essa era a regra que HCB impunha ao trabalho de revelação. Terá sido respeitada? Não sei, mas permito-me lançar a dúvida – e agradecer calorosamente o seu comentário
Cordialmente,
António Araújo
Caro António Araújo,
EliminarEmbora na era do digital se tenha tornado mais falada, até pela facilidade de acesso a poderosas ferramentas técnicas, a questão da "manipulação fotográfica" é quase tão velha como a própria fotografia. Qual é a fronteira entre o "ajuste aceitável" e a falsidade? Tenho a minha própria opinião, nem sempre coerente, mas creio que não vale a pena entrar por ai, pois correria o risco de ser enfadonho e demasiado técnico, pese embora eu seja um mero praticante amador. Deixo contudo três referências recentes, de possíveis manipulações de diferente natureza: a polémica em torno de Edgar Martins (por exemplo aqui: http://www.imediaethics.org/News/494/Why_did_ny_times_photographer__edgar_martins__fake_his_photos_.php), a polémica em torno da "Um funeral em Gaza", vencedora do World Press Photo em 2013 (http://visao.sapo.pt/world-press-photo-conclui-que-foto-vencedora-nao-foi-manipulada=f729764) e a polémica em torno da foto vencedora do vencedor de Wildlife Photographer of the Year em 2009 (http://news.bbc.co.uk/2/hi/8470962.stm).
Tenho para mim que boa parte destas questões se levantam porque ainda se parte do princípio que a fotografia é suposto ser uma representação fiel da realidade, quando na realidade é apenas um fragmento desta, filtrada pelo sujeito subjectivo tomador da imagem e, posteriormente, pelo processo técnico inerente ao meio. Aliás, processos análogos ocorrem relativamente aos conceitos de verdade e de isenção historiográficas. Mas isso seria talvez outra discussão (aliás, nada original).
De resto:
Uma provocação: HCB "via" a preto e branco? Mesmo que fosse vivo, seria possível algum dia sabermos verdadeiramente o que ele viu nesse dia?
Uma sugestão, se me permite: pegue numa máquina de filme e faça um workshop de fotografia argentimétrica (odeio o termo, aliás errado, "fotografia analógica"). Digo-o sem qualquer tipo de soberba, pelo gosto pela fotografia por si demonstrado neste blog, tenho a certeza que irá disfrutar imenso, embora pessoalmente o conceito e a profusão de "workshops" de tudo e mais alguma coisa que existe nos dias que correm me irrite ligeiramente. O ideal era mesmo ter um amigo que percebesse do assunto.
Um agradecimento: por esta troca de ideias, e pelo blog, de que sou um fiel leitor.
Cumprimentos,
Victor Hertizel
Caro Victor Hertizel,
EliminarDe facto, nunca tinha pensado nisso: HCB não «via» a preto e branco...
Muito obrigado pelas suas palavras e pela sugestão que me faz.
Cordialmente,
António Araújo
Será possível que a senhora esteja a usar um véu?
ResponderEliminarNão sou esecialista em fotografia e nos processos de revelação/tratamento mas a minha primeira reação ao contorno linear do cabelo e à imagem do rosto (que parece transplantado para a foto) foi a procura da orla do véu (será aquela sombra em "U" que lhe cruza a boca?)
Ainda para mais, tratando-se de um funeral...
A sugestão do véu parece-me verosímil, até considerando a época da tomada da foto
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