Saiu há não muito, segundo creio, a
tradução portuguesa de O Planeta Doente,
de Guy Debord. A edição é de 2014 e foi feita pela Letra Livre. Num dos textos
desse livro, Debord diz, a dada altura, que «em si mesmo, o velho oceano é
indiferente à poluição; mas não a história.» E acrescenta: «Esta só pode ser
salva pela abolição do trabalho-mercadoria.»
Concorde-se ou não com as teses de Guy
Debord e dos Situacionistas, aquela frase assenta como uma luva ao
filme-documentário Edificio España,
de Victor Moreno, uma película de 94 minutos de comprido, que há muito ansiava
ver. O filme é de 2012 e foi agora lançado numa colecção do El País. Já é a terceira vez que, depois daqui e daqui, falo
do Edifício España, tantas foram as horas que lá passei defronte, a mirar
quem entrava e saía. Era muita gente circulante. Por dia, entravam no España cerca de
3.500 pessoas, e observá-las era um bom passatempo para uma pausa em
Madrid, enquanto Madrid não voltava à vida, adormecida pelo calor e pela siesta.
Inaugurado em 1953, o España sempre foi
para mim uma espécie de versão laica e urbana do Vale dos Caídos, a catedral
madrilena da arquitectura do franquismo triunfante, numa mistura deslumbrante e
paquidérmica dos arranha-céus de Manhattan, por um lado, e das sete irmãs moscovitas, por outro.
O filme não tem história – ou, melhor,
a história que tem é exactamente aquela de que fala Debord, a do
trabalho-mercadoria. Com 28 andares, ocupados por 200 habitações e 400
escritórios, o España era um colosso. Foi comprado em 2005 por um fundo de
investimento, que logo pensou em remodelá-lo (que bem precisava) e dar-lhe um
uso diferente. O filme de Moreno acompanha a carnificina do España, feita por
centenas de operários das mais diversas nacionalidades. Em certos momentos,
diálogos espantosos entre equatorianos católicos e senegaleses polígamos.
Noutro passo, o mais pungente da película, um viúvo abandona o apartamento que
partilhara durante décadas com a mulher. Logo a seguir, instantes depois, entra
a equipa de demolição. Aquilo que o señorito
de Madrid mostrara às câmaras com tanto desvelo, a casa de banho ampla e
sólida, as divisões solarengas, tudo é devastado à picareta e ao camartelo.
Enquanto no belíssimo Ruínas, de Manuel Mozos,
vemos casas tombadas e o seu silêncio, no filme de Victor Moreno observamos o trabalho-mercadoria em acção furiosa. Enquanto uns devastavam o interior
do España, as promotoras imobiliárias iam mostrando a homens engravatados como
iria ser o novo e promissor edifício. Em 2010, porém, o projecto de remodelação seria
suspenso, e o filme termina aí (notícias do ano passado dão conta da sua aquisição, claro está, por um magnata chinês). Pelo meio do filme, deparamos com seguranças a contarem lendas que o España
tecera, como a dos fantasmas e das vozes estranhas que se ouviam no 14º piso.
Noutra cena, um homem mostra um dos painéis do átrio, com Mercúrio e Victoria,
os deuses do comércio e do lucro, dizendo tratar-se de uma alegoria do capitalismo.
O
que mais impressiona é a sanha do desperdício. Que o España carecia reforma,
disso ninguém duvida. O que se estranha é a necessidade de esventrar um prédio
daquele tamanho, e a imensa quantidade de detritos que a operação provocou. Noutra
das cenas, um camião gigantesco vai depositar o entulho nos arrabaldes de
Madrid. No interior do edifício, bastante desinteressante, talvez não houvesse
muito a aproveitar. E, diga-se, os promotores foram obrigados a salvaguardar
quatro ou cinco apontamentos de maior relevo. Mas havia realmente necessidade
de tamanha destruição? O mínimo que se pode dizer, em abono de Espanha e
dos espanhóis, é que, ao menos, o exterior do edifício lá está, pujante e
esmagador. Em Lisboa, ao invés, a traça delicada da Piscina do Areeiro foi
substituída por um cubo pior que romeno, desconhece-se como ficará a Pastelaria
Mexicana e os seus interiores e, pasme-se, a Barbearia Campos, no Chiado – sim, no trendy Chiado –, fechou, sendo alvejada de morte. Mesmo se reabrir, nunca terá a forma que
teve durante décadas de dandismo. Numa cidade povoada de turistas, de turistas que vêm para
ver coisas como a Barbearia Campos, o que se passou é, pura e simplesmente, uma estupidez irrevogável.
"Em Lisboa, ao invés, a traça delicada da Piscina do Areeiro foi substituída por um cubo pior que romeno." Não posso concordar mais. Quem é o autor?
ResponderEliminarNão é o caso do vereador dos Espaços Verdes, Sá Fernandes: "Gosto imenso do projecto."
EliminarConfesso que não percebi se o autor esta a favor da reestruturação do edificio ou não.Quem pagaria as obras que reconhece necessarias ás novas funções?Se o magnata fosse brasileiro seria diferente?Um edificio com cerca de 68 anos .Não é propriamente um monumento nacional creio.
ResponderEliminarCaro António,
ResponderEliminarUma sucessão de fotos históricas muito interessantes (alguma das quais já passaram por aqui):
http://capitalismisfreedom.com/historical-photos-you-have-to-see-to-believe/
http://capitalismisfreedom.com/rare-historical-photos/
Muito obrigado, vou já ver!
EliminarCordialmente,
António Araújo
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