A porta do federalismo colonial (II)
Em 22 de Setembro de 1962
uma comunicação de Adriano Moreira convocava o plenário do Conselho Ultramarino
para, a partir de 15 de Outubro, o aconselhar na revisão da Lei Orgânica do
Ultramar. Além de consultiva, a competência do Conselho Ultramarino era
meramente administrativa, embora relevante no caso: aperfeiçoar as instituições
de modo a torná-las mais aptas para enfrentar a evolução da conjuntura nacional
e corresponder à gravidade e urgência dos problemas. Deveria também, sublinhava,
assegurar «uma permanente autenticidade da Administração e uma equilibrada distribuição
de responsabilidades». O Ministro recordava, a finalizar, que o título VII da
Constituição sobre o Ultramar estava praticamente derrogado, a autonomia e as
competências provinciais eram irreversíveis e tinham de ser reforçadas, sendo
natural que viessem a ser criados novos órgãos. Tratava-se de um programa
bastante ambicioso e lato, aparentemente conforme as sugestões do ofício de
Sarmento Rodrigues donde provinha, embora também pouco definido e delimitado,
sobretudo quanto ao alcance constitucional das alterações.
A convocatória foi muito
criticada. Em Angola – onde era grande a efervescência política, com sugestões
de proclamação unilateral da independência por parte dos colonos – agravou o
descontentamento provocado pela exoneração do Governador-Geral Venâncio
Deslandes e levou as associações económicas a exigirem não só o envio prévio do
anteprojecto de reforma como a participação dos seus representantes nos
trabalhos do Conselho Ultramarino e, mesmo, a consagração da «mais ampla
autonomia legislativa e executiva». Porém as intervenções dos delegados foram
controladas e, por exemplo, só em 1998 foi revelado que Lourenço Mendes da
Conceição, vogal negro do Conselho Legislativo de Angola eleito pelo distrito
de Cabinda, não pôde intervir, no Plenário, com a proposta “Autonomia e
integração – Duas soluções antagónicas da política portuguesa”, onde
preconizava, a médio prazo, a independência de Angola.
Por sua vez, o programa
da delegação moçambicana, embora não contendo pretensões federalistas ou independentistas,
fora concertado entre o Governador-Geral, Sarmento Rodrigues, e os elementos do
Conselho Legislativo. Concretamente, além do alargamento da descentralização
administrativa e do aumento de deputados a eleger para a Assembleia Nacional, a
delegação moçambicana fazia as seguintes propostas: a)- reforço dos poderes do
Governador-Geral que também teria lugar nos Conselhos de Ministros; b)- aumento
dos vogais eleitos do Conselho Legislativo; c)- criação de um Conselho
Económico e Social, de carácter consultivo e corporativo; d)- reforço do número
dos secretários provinciais.
As sessões (de trabalho)
do Conselho Ultramarino extraordinário, bem como todo o material distribuído,
foram secretas. Posteriormente, Adriano Moreira denunciou campanhas insidiosas
e o desaparecimento de vários textos; já segundo Franco Nogueira, «por não ser
conhecida uma clara e firme directriz do governo», teve de ser o
Vice-Presidente Raúl Ventura (que presidia aos trabalhos, na ausência do
Ministro) a evitar que fossem «aprovadas algumas propostas ou sugestões mais
extremistas».
Silva Cunha queixou-se da
inexistência de qualquer trabalho preparatório, pois os únicos documentos que
existiam eram «a carta do Almirante Sarmento Rodrigues, os pareceres emitidos
pelos antigos membros do Governo e o relatório de uma comissão que tinha
analisado o problema da aplicação a Cabo Verde de um estatuto semelhante ao das
Ilhas Adjacentes». O primeiro acto foi a organização de um “processo de
consulta”. Nele, após descrição das linhas gerais da história da legislação
reguladora do governo e administração ultramarinos, definia-se o quadro em que
deveriam decorrer os trabalhos do Conselho Ultramarino, levantando as seguintes
interrogações, em três grupos (embora desdobradas em várias alíneas):
i)-
grau de descentralização administrativa e legislativa;
ii)-
sistema de governo das províncias ultramarinas;
iii)-
representação nos órgãos de soberania e fiscalização da constitucionalidade.
A sessão inaugural
realizou-se a 15 de Outubro. Após os discursos da praxe, foi marcada a ordem de
trabalhos, explicada a “resposta ao processo de consulta” e indicado o método
de trabalho das sessões. As sessões de 15, 17 e 18 de Outubro constaram de
exposições e debates a cargo, sucessivamente, de José Manuel Fragoso, do
Ministério dos Negócios Estrangeiros (sobre política internacional), do
Ministro de Estado, Correia de Oliveira (sobre os problemas da integração
económica) e do Ministro das Finanças, Pinto Barbosa. O debate sobre a revisão
da Lei Orgânica do Ultramar, na generalidade, realizou-se na sessão de 22 de
Outubro e, na especialidade, nas sessões de 24 e 25 de Outubro. Em 31 de
Outubro fez-se a sessão de encerramento.
No debate na generalidade
(com dezoito inscritos), as Actas só
contêm as intervenções de um delegado de Cabo Verde e alguns de Angola e de
Moçambique. Não houve diálogo nem discussão. Após terem sido, entretanto,
elaboradas e aprovadas as “Bases Gerais e respostas ao questionário
apresentadas pelo relator geral”, com intervenções escrita dos vogais e demais
convidados, logo a abrir a sessão de 24 de Outubro, e mesmo antes da discussão
na especialidade (além do mais, «para evitar perda de tempo») foi lido o resumo
da opinião do Conselho, constante de cinco pontos, aprovados na generalidade. Nas
duas sessões de debate na especialidade (em 24 e 25 de Outubro) houve algumas
referências, embora escassas e de sentido contrário, ao caso do Brasil, como
exemplo de evolução da política colonial portuguesa. Um vogal, José Vaz Álvares
de Carvalho (Angola), invocou mesmo, mas só de passagem, «um critério de
federalismo que por si implica a existência duma lei fundamental que tem de ser
respeitada pelas entidades superiores».
Em síntese, os princípios
fundamentais que, segundo o Parecer, deveriam orientar a reforma da Lei
Orgânica eram os seguintes:
i)- aumento da representação das províncias ultramarinas nos
órgãos nacionais;
ii)- transferência de serviços públicos, só devendo manter-se
serviços nacionais quando não fossem possíveis serviços provinciais;
iii)- criação de um Conselho Corporativo junto das assembleias e
conselhos legislativos;
iv)- alargamento da competência dos órgãos legislativos das
províncias ultramarinas;
v)- criação de um Conselho de Ministros para o Ultramar formado
pelos Governadores das províncias de governo-geral;
vi)- criação de secretarias provinciais, especializados em
função da matéria, sob a coordenação e superintendência do governador;
vii)- descentralização administrativa provincial e fomento do
municipalismo.
Na sessão de
encerramento, discursaram o vogal do Conselho Legislativo de Angola, Aníbal de
Oliveira, o governador-geral de Moçambique, Sarmento Rodrigues, e o Ministro do
Ultramar, Adriano Moreira. O ambiente e tom revelavam decepção pelos resultados
do Plenário. Embora todas as deliberações tenham sido tomadas por unanimidade,
a política de “evolução progressiva e irreversível na unidade” conseguira
poucos êxitos quanto à alteração dos sistemas de governo das províncias
ultramarinas, à autonomia, ao alargamento do sufrágio, à representação política
e, sobretudo, à “africanização”. Adriano Moreira concluía o seu discurso com um
ambíguo compromisso perante a geração que se aproximava das responsabilidades
de que não seria «uma geração traída como foi a nossa». O estranho deste
compromisso advém de o “assimilacionismo”, propugnado por Sarmento Rodrigues e
Adriano Moreira e ideologicamente predominante na convocação do plenário, se
restringir a uma questão administrativa, ao passo que a reforma das
instituições políticas ficara bloqueada.
Manuel de Lucena é de
opinião que o Parecer saiu «relativamente moderado e adornado de juras pela
unidade nacional que, não parecendo insinceras, também não eram inteiramente
verdadeiras», surgindo como «uma espécie de compromisso dilatório», que no entanto
veio pôr ponto final nas pretensões da política reformista. Segundo testemunho
de Franco Nogueira, Salazar limitou-se a acompanhar o processo à distância,
criticou Adriano Moreira por ter convocado a reunião «sem ter qualquer ideia
sobre a melhor orientação a seguir na condução dos trabalhos» e foi vendo «com
muita preocupação o caminho por que o Dr. Adriano enveredara». Na opinião de
Marcelo Rebelo de Sousa, se, quanto à situação internacional, Salazar começara
«a descolar da realidade» e a deixar de percebê-la, já, internamente, embora
não conhecendo África e tendo perdido «a capacidade tacticista de resposta aos
acontecimentos, para os absorver ou neutralizar» ainda era suficientemente
rápido para «perceber que tem de parar a ascensão notória de Adriano Moreira,
manter as Forças Armadas sob seu controlo directo, travar os marcelistas e
alargar, um pouco à direita e à esquerda, o campo de gestão do Governo».
A solução federal
sugerida por Marcelo Caetano ficara proibida e escondida. Adriano Moreira deixou
o governo em 4 de Dezembro de 1962. Salazar terá decidido mudar de política por
considerar perigosa a descentralização ensaiada. Franco Nogueira atribui a
mudança de Ministro do Ultramar a uma necessidade de apaziguamento das Forças
Armadas.
A Lei Orgânica do
Ultramar foi revista em 1963. As novidades respeitavam a quatro aspectos
fundamentais: i) Governo e legislação (alargamento da representação na Câmara
Corporativa e na Assembleia Nacional e eleição da maioria dos membros dos
Conselhos Legislativos); ii) Administração (institucionalizando as Secretarias
Provinciais); iii) Finanças (alargando a autonomia financeira); e iv)
Desenvolvimento Económico e Social (criação de vários órgãos consultivos e
previsão da criação de Escolas universitárias). Também ficou decidido o
estatuto de Cabo Verde (pendente desde 1953): manteve-se como província
ultramarina, sob jurisdição do Ministério do Ultramar.
Em resumo, o poder
legislativo metropolitano apoiou o Governo, uniu-se à volta de Salazar e também,
nesta matéria, a reforma da política ultramarina posterior a 1961 fracassou. O
próprio Adriano Moreira aponta para a correlação de forças [“integracionistas”
(Correia de Oliveira), “federalistas” (Marcelo Caetano) e “realistas” (Franco
Nogueira)] que dominava o Estado e conclui que ficara definitivamente firmada a
política que privilegiava a frente internacional, que Salazar manterá até ao
fim da sua vida activa. A tese “unitarista” e a estratégia da vitória militar
na questão colonial consolidaram-se e irão durar uma década.
António
Duarte Silva
Simto-me sempre surpreendido, por ainda existirem pessoas que se dão ao trabalho de partilhar o muito que sabem. Descobri este blog ao ler o Ferreira Fernandes no DN. Belas histórias, todas. Leio com particular gozo, e "epifânica" ignorância, as crónicas de jazz. Bem haja e mande novas por muitos anos. Obrigado.
ResponderEliminarLeia-se, "Sinto-me".
EliminarLeia-se, "Sinto-me".
EliminarEnquanto «editor» do Malomil, muito obrigado.
EliminarAntónio Araújo
Muito interessante. Mas as "fontes" e a "bibliografia" são?
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