sábado, 19 de março de 2016

Questões de (in)segurança no Lesley College.

 
 
 
 
 
 
Em memória de José Veiga Simão (1929-2014)
 
 
         No dia 23 de Maio do ano de 1981 o Lesley College (Lesley University, desde 2001, a partir da fusão com The Art Institute of Boston), localizado em Cambridge, Massachusetts, galardoou o Professor Veiga Simão com um doutoramento honoris causa, em virtude do seu currículo excepcional, como Doutor em Física Nuclear pela Universidade de Cambridge, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, Fundador e Reitor dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, Ministro da Educação de Portugal, Embaixador de Portugal nas Nações Unidas, Presidente do Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial (LNETI), Director da Portuguese Heritage Foundation da Nova Inglaterra, e em reconhecimento do brilhantismo com que orientara o National Assessment and Dissemination Center do Lesley College, durante o seu auto-exílio de uns três anos nos Estados Unidos da América, entre 1975 e 1978.
Devido à longa e estreita amizade que me ligava ao Professor Veiga Simão e família, decidi, à última hora, participar na cerimónia de doutoramento honoris causa que, por sinal, coincidiu com a outorga do doutoramento honoris causa ao Professor Terrel Bell, antigo Ministro da Educacão dos Estados Unidos, e com o encerramento do ano lectivo no Lesley College. E como ainda tinha comigo os trajes doutorais que, dias antes, havia usado nas cerimónias de colação de grau realizadas na minha Universidade (University of Connecticut), resolvi tomar parte nessa homenagem ao Professor Veiga Simão, vestido com esses mesmos trajes doutorais, e, portanto, integrado no grupo selecto dos doutores e professores universitários, sentados no palco.   
De maneira que foi para nos associarmos, à última hora, a mais esse triunfo académico do Professor Veiga Simão, nosso amigo comum e compatriota da diáspora, que num sábado de calor intenso, com os minutos contados, a D. Rita Veiga e o Dr. Adriano Seabra Veiga, cirurgião torácico e cônsul honorário de Portugal em Waterbury, Connecticut, e o Cirurgião, nos dirigimos de carro, em velocidade um pouco acima do normal, à Walter Brown Arena da Boston University, utilizada nesse ano pelo Lesley College para a realização do Commencement, que em português poderíamos traduzir por Encerramento do Ano Lectivo.
Sabendo de antemão que íamos chegar com uns bons minutos de atraso, eu, a fim de economizar tempo, vesti os trajes doutorais dentro do Cadillac do Dr. Seabra Veiga. No momento em que estacionámos o carro, estava o cortejo académico a acabar de entrar para o pavilhão de desportos  da Boston University. Enquanto a D. Rita e o Dr. Seabra Veiga se dirigiram à entrada principal, eu, a conselho de um dos porteiros, entrei pelas portas traseiras, o que quer dizer que me vi de repente a caminhar por uma espécie de labirinto que levava directamente ao palco, onde já se encontravam sentados todos os dignitários, em trajes doutorais, desde o reitor da universidade, os decanos e os chefes de departamentos aos doutorandos honoris causa, passando por altas dignidades de outras universidades, convidadas para esse solene acto académico.
Como todas as cadeiras do palco estavam ocupadas, recordo-me de ver uma professora levantar-se imediatamente e oferecer-me a cadeira dela; como outrossim me recordo de ela reaparecer quase logo a seguir com uma outra cadeira, e sentar-se ao meu lado.
Como em todas as cerimónias de encerramento do ano lectivo em universidades americanas, houve, após o cortejo, a rescender a pompa e circunstância, houve uma prece ecuménica feita pelo ministro de uma denominação religiosa cujo nome ignoro; houve umas breves palavras de abertura, proferidas pelo mestre de cerimónias; houve o discurso da salutatória, a segunda melhor aluna do curso; houve a apresentação de cada um dos dois candidatos a doutoramentos honoris causa, por parte de cada um dos respectivos padrinhos, seguida do discurso de cada um dos doutorandos; houve a oração de sapiência pronunciada por um orador especial (keynote speaker), dirigido especificamente às candidatas aos diplomas de bacharelato e de mestrado; houve a distribuição dos diplomas às alunas, feita pelos respectivos decanos; e houve, por fim, o discurso de despedida da valedictória, a melhor aluna do curso.
Naturalmente que esta sucinta descrição da cerimónia ficaria incompleta, se o cronista não acrescentasse que, para matizar e amenizar a “pompa e a circunstância”, houve também superabundância de bocejos e de cochilos.     
         Terminada a longa cerimónia de colação de grau, teve lugar uma recepção solene num salão contíguo ao pavilhão dos desportos. Para surpresa minha, notei que, um após outro, quase todos os participantes que tinham estado sentados no palco se voltavam para mim e esboçavam um ligeiro sorriso. Que teria acontecido? – perguntava-me eu, meio intrigado. Não foi preciso esperar muito tempo pela resposta. É que, primeiro o Dr. Peter Calvet de Magalhães, ao tempo Director da Portuguese Heritage Foundation, e depois o Professor Veiga Simão e o Reitor da Universidade e vários decanos, me disseram que a minha entrada no palco tinha causado uma espécie de pânico geral entre os responsáveis pela segurança, e, naturalmente, entre os administradores da universidade. Como eu não era conhecido dos encarregados da segurança nem o meu nome constava da lista dos convidados, apenas me viram entrar no palco ficaram justamente apreensivos e preocupados. É que essa cerimónia de encerramento do ano lectivo do Lesley College ocorria pouco tempo depois do atentado de assassinato contra o Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e entre os participantes nesse acto solene encontravam-se o ex-ministro da Educação desse mesmo Presidente, o Doutor Terrel Bell, também galardoado, como o Professor Veiga Simão, com um doutoramento honoris causa. E presentes também nessa cerimónia estavam o Senador Federal pelo estado de Massachussets, Ted Kennedy, e todos os seus filhos, em virtude de a ex-esposa do senador, Joan Kennedy, célebre pianista e celebérrima “socialite”, ter recebido nesse dia o diploma de Mestre em Música.
Perante essas explicações, foi então que eu compreendi a razão de ser da olhadela que o Professor Veiga Simão me deitou, quase logo após eu me haver sentado no palco, e do aceno de cabeça que ele fez para um dos dignitários que estava sentado ao lado dele e do aceno de cabeça que este fez para o colega ao lado, e assim ad infinitum.
É que a coisa se havia passado mais ou menos nestes termos: perante esse desconhecido que, entrando por portas travessas, se sentara no meio de altas figuras nacionais e estrangeiras, os responsáveis pela segurança sentiram-se na obrigação de saber imediatamente de quem se tratava. E foi assim que a providencial presença nessa cerimónia do meu conhecido Peter Calvet de Magalhães, na sua qualidade de coordenador assistente da cerimónia, foi crucial: ao dar-se conta do momentoso problema que os responsáveis pela segurança tinham pela frente, apressou-se a informá-los que o presumível intruso era uma pessoa pacífica e de bem, tratando-se de um professor da University of Connecticut, velho e bom amigo do Professor Veiga Simão, um dos homenageados e distinguidos com o doutoramento honoris causa.
         Quando, passados dias, durante um jantar, contei este episódio ao meu saudoso colega e amigo na University of Connecticut, Professor de Alemão George Reinhardt, e à esposa dele Jane, encheram-se de rir e apressaram-se a comentar que se tratava de um cenário estupendamente apropriado para o crime da década: a infiltração de um professor universitário, com uma pistola ou com um punhal, ocultos sob os trajes doutorais, num palco em que se encontrava um ex-ministro da Educação dos Estados Unidos e outro de Portugal, e num pavilhão de desportos em que se encontrava o Senador Federal Edward Kennedy, irmão de dois irmãos assassinados – o Presidente dos Estados Unidos da América, John F. Kennedy, e o Senador Federal Robert Kennedy. Que um dia tinha de escrever este episódio para a posteridade, para diverti-la e edificá-la, como preceitua Mestre Horácio – acrescentaram eles a rir. E é para obedecer a essa simpática sugestão longínqua que neste dia 13 de Maio do Ano do Senhor de 2014 o dito episódio é posto em acta.
 
António Cirurgião
                             

1 comentário:

  1. Caro António Cirurgião, parabéns pelos seus textos! Belíssima aquisição por parte d'O Malomil!

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