quarta-feira, 26 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (13).







 

 

25-VIII                                                                                     
O alfarrabista de Apt

 

Todos os alfarrabistas que conheci, tanto na América do Norte, como em França, no Brasil e até em Portugal, são seres neuróticos, como se ter telha fosse a condição técnica indispensável para lidar com livros velhos. O alfarrabista de Apt, por exemplo, com livros interessantes a um euro cada, postos às três pancadas numa padiola desconjuntada à frente da porta da sua loja, muito enigmaticamente chamada, Les Soleils de Philippe, é um exemplo dessa incurável tendência para a veneta de quem vende livro em segunda mão. Lá dentro, as obras oscilam entre 5 e 8 euros, o que, dada a careira região em que estamos, não se pode considerar caro. Nas estantes, em contrapartida, os livros sobem de qualidade e de preço, estando até arrumados por temas muito franceses (História da Revolução Francesa, Napoleão, De Gaulle e Pétain, Literatura provençal, História romana, etc.).

Não consegui saber o nome deste homem macambúzio e bizarro, parco em palavras, nada interessado em cativar o cliente ou, pelo menos, conhecer os seus gostos, antes mostrando um olímpica indiferença pelos meus interesses manifestados na primeira vez que o visitei. Mas O mais seguro para evitar o contacto com este Dragão de Guttenberg é uma pessoa afoitar-se a levantar as pilhas de livros que se acumulam em cima de mesas extensas nas duas salas da livraria. Hoje, por exemplo, encontrei um estudo raro sobre o Barão Hirsch, promotor da imigração judaica para as Américas, uma pilha de obras de Eliade, uma bela edição ilustrada e encadernada das Lettres de mon Moulin, uma autobiografia de Jean Marais e até uma raridade, uma antologia dos oradores girondinos, esta por 10 euros. Numa passagem da sala de entrada para a interior da baiúca, há umas prateleiras que também me parecem, promissoras, com Saint-Just, Robespierre, a guilhotina e toda a procissão da Revolução Francesa, em fila. No entanto, renuncio a subir a um pequeno escadote, porque intuo que o alfarrabista taciturno não gosta de auxiliar quem busca livros em locais inacessíveis. Recolho, en passant, um estudo de Benassar sobre o Século de Oiro espanhol, os oradores girondinos e outros títulos que me interessam, como o referido barão Hirsch. E levo-os ao dono da loja, que me faz a soma sem um comentário e me apresenta o total escrito a lápis. [1] Pago, digo adeus e saio dali com a ideia. Uma vez mais confirmada, desde Baltimore a Apt, de que, de facto, os alfarrabistas são todos da mesma família genética e espiritual, uma espécie de doidos condenados a vivem no meio de obras envelhecidas, papel amarelado e lombadas gastas.
 
 
João Medina





[1] Veja-se uma história semelhante passada com uma alfarrabista norte-americana. em Providence, relatada no nosso livro  A minha América, 2012, pp. 378-80.

 

2 comentários:

  1. Discordo da generalização. Se encontrei alguns alfarrabistas desse tipo, foram exceção. Em vários países por ande andei, encontrei-os em sua maioria simpáticos e comunicativos, e houve até quem me confiasse a chave de seu armazém para eu mexer à vontade. Com alguns fiz mesmo boas amizades.

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  2. Há trinta anos havia em Lisboa dois ou três alfarrabistas trombudos, entre as dezenas que tinham porta aberta. Um deles era meu vizinho, mas nem esse facto o impedia de me responder sistematicamente a qualquer pergunta com o antipático monossílabo que indica negação. Nunca ergueu o traseiro da cadeira para me mostrar alguma coisa ou para confirmar se tinha ou não tinha o que eu procurava. E não me deixava entrar na 'sala de dentro', aonde tinham livre acesso, ao fim do dia, os seus compinchas de tertúlia.

    Outro alfarrabista lisboeta, um senhor todo bem-posto e altaneiro, olhava-me sempre desconfiado. Na minha presença queixou-se várias vezes de que lhe desapareciam coisas expostas na livraria. Fazia-me sentir como um potencial ladrão! Para meu gáudio, quem parece que o roubou mesmo foi um fulano catita que por lá aparecia e com quem ele mantinha amenas cavaqueiras. Também este livreiro me vedava a entrada à sua 'sala de dentro', coisa só permitida a alguns sortudos. Ele tinha um real desprezo por quem lhe entrasse na loja com ar de ‘pechincheiro’ – ou seja, aquilo que qualquer cliente gosta de ser. O homem não era nada careiro, justiça lhe seja feita, mas odiava saber que tinha vendido algo por um preço estupidamente baixo. Isso aconteceu uma vez com uma edição raríssima, talvez a primeira, de Das Kapital, que ele, antimarxista ferrenho, despachou por 100 escudos. Uma coisa de bradar aos céus, pois essa edição vende-se hoje por 10 ou 20 mil euros. Também eu ‘explorei’ uma vez este livreiro, mas sem ele perceber, nem eu... Um dia comprei-lhe por 90 escudos um livreco antigo, sem especial valor, que só em casa descobri ter no seu interior uma faquinha de abrir estilo arte nova, toda em marfim, com o cabo magnificamente decorado. Coisa para valer na altura três ou quatro contos e que hoje não compraria por menos de 150 euros. Como o livreco em causa era da década de 1890 e estava aberto até ao sítio da faquinha, depreendi que o objecto deve ter ficado ali escondido durante cem anos. O livreiro nunca soube que foi dono daquela belíssima faca. Poupei-lhe esse desgosto...
    JB

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