impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 65, # 66 - WAYNE SHORTER
Às
20h37 do dia 17 de Julho de 1996 apagou-se de repente dos radares o ponto de
luz que assinalava o vôo TWA800. O avião acabava de se fragmentar numa bola de
fogo a 15.000 pés de altitude, ao largo de Long Island. Nunca a investigação
científica conseguiu apurar a causa determinante do acidente; pelo contrário,
as teorias da conspiração, que sabem sempre tudo, já depreenderam díspares e
fenomenais explicações, qual delas mais cabal.
Na
lista dos 230 malogrados lia-se o nome de Ana Maria Patrício, nascida em
Aveiras de Cima, mas criada em Angola, donde transitou, ainda com os pais, para
os Estados Unidos. Em 1965 conheceu Wayne Shorter, que no fulminar da paixão
fez dela a sua musa. Ana Maria embarcara no vôo fatídico para ir ao seu
encontro em Paris, donde talvez seguissem em vilegiatura para o seu refúgio de
Aveiras. Sim, Wayne Shorter passeou-se pelas ruas de Aveiras, às vezes
acompanhado por Carlos Santana, sem que ninguém lhes descobrisse a celebridade.
Esta
rara tragédia foi a maior tribulação na existência de um Wayne Shorter que,
dir-se-ia, terá porfiado por biografia pouco acidentada.
Licenciatura,
mestrado e doutoramento, fê-lo, como tantos outros, nos Jazz Messengers de Art
Blakey. De tenorista promissor a alguém que talvez pudesse levantar a cabeça
entre enormidades como John Coltrane e Sonny Rollins – ponha-se lá na balança
Stan Getz e Ornette Coleman, só para dar lastro – foi empreendimento de 5 anos.
Desde
que Coltrane abandonara Miles Davis este andava a rondar Wayne Shorter, sem
consideração por Art Blakey. Mas Shorter que não, que não, quem sabe se por
cortesia para com o mestre, se reticente em sair da frigideira para o lume, ou
com vontade de seguir a sua própria estrela. Até que no início de 1964 lá se decidiu
a saltar do ninho dos Jazz Messengers. O disco “Juju” – até aí marcara terreno
com 4 trabalhos primorosos mas não deslumbrantes – levantou todas as orelhas na
sua direcção. Então este é que era o seu autêntico estro musical? Um semestre
depois, a voz que ali se destacava afirmou-se de vez, finalmente desembaraçado
da influência de Coltrane – ostensivo santo patrono de “Juju” – com “Speak No
Evil”.
Speak No Evil
1965 (2008)
Blue Note / EMI Music
Distribution - 7129
Wayne
Shorter (saxofone tenor), Freddie Hubbard (trompete), Herbie Hancock (piano), Ron
Carter (contrabaixo), Elvin Jones (bateria).
Daqui em diante há que seguir de
calendário da mão, porque a cronologia é exemplarmente complicada: “Speak No
Evil” foi gravado na véspera de Natal de 1964 – é favor fixar esta data.
Um par de meses antes Miles começara a
calibrar o seu “segundo grande quinteto”, estreando-o num concerto ao vivo no
próprio dia em que Wayne Shorter chegou a Los Angeles – viagem em primeira
classe: cortesia de Miles – e prosseguindo com uma digressão europeia, a qual
deu origem ao disco “Miles in Berlin”, com registo no dia 25 de setembro de
1964.
Pouco menos de
um mês depois de “Speak No Evil” o quinteto grava, entre 20 e 22 de janeiro de
1965, o primeiro álbum da sua lenda: “E.S.P.” Nele Miles Davis incluiu duas
composições de Wayne Shorter, uma delas a que dá título à obra.
“Speak No Evil” apenas viria a ser dado
à estampa e distribuído em 1966; ou seja: 6 meses depois de “E.S.P.”
Mas a confusão só aumenta com o que estando
antes, só veio a seguir:
O magnífico “Indestructible”, que foi a
derradeira inscrição do nome de Wayne na ficha dos Jazz Messengers, fabricado
às pinguinhas entre 24 de Abril e 15 de Maio de 1964, raiou nos escaparates tão-somente
no princípio de outubro de 1966. Quer dizer: depois de “Speak” e muito depois
de “E.S.P.”
Esta retorcida e vertiginosa sequência
editorial, além de comprovar que o jazz destes anos produzia obras-primas como
se não houvesse amanhã, confundiu aos ouvidos coevos as etapas da evolução
musical de Wayne Shorter.
As formações da época tinham geometria
variável. Como na dança das cadeiras, os músicos rodavam ao sabor das
oportunidades, ora liderando as suas próprias experiências, ora secundando o
desempenho de quem antes fora seu companheiro. Em “Speak No Evil” Wayne Shorter
traz boa parte da secção rítmica com quem começara a trabalhar à volta de Miles
(Herbie Hancock no piano e Ron Carter no contrabaixo), à qual agregou Elvin
Jones, que viera aqui ter apenas 15 depois dos êxtases de “A Love Supreme” de
John Coltrane. Ao lado de Shorter, na linha dos sopros, toma lugar o
trompetista Freddie Hubbard ainda vinculado aos Jazz Messengers, com quem havia
confabulado inúmeras vezes.
“Speak
No Evil” conceitua a qualidade de compositor de Wayne Shorter, distinguindo-o
como um dos artífices mais subtis do jazz. A sua música é peixe de águas
profundas, porque sem nunca encapelar a matriz harmónica do hard bop, que à
superfície parece ondular como habitualmente, denota, no âmago de cada tema,
nas “pontes” e na progressão, surpreendentes e sofisticadas soluções, que
deixavam muitos estudiosos a coçar a cabeça e perguntar como era possível.
Após “Speak No Evil” Wayne Shorter não
descolou de Miles e esteve com ele na sua fase mais eléctrica e funky (“Bitches
Brew”). Tanto gostou do género que o prolongaria com os “Weather Report”. O
jazz de fusão demonstrou ser de pavio curto. Trespasse para o qual muito
contribuíram o passo atrás (para dar dois em frente) dos restauracionistas de
80 liderados por Marsalis – que muito admirou Shorter, mas não o comoveu – e a
resiliência do free jazz, senhor do baluarte em que se fortificou. Depois de 15
anos com vento pelas costas, até à consumição do “Weather Report” em 1986,
Shorter passou quase duas décadas descansadamente à bolina, longe das ribaltas
e, com o tempo, adquiriu a previsibilidade dos consagrados.
Alegría
2003
Universal
/ Verve - 5435582
Wayne
Shorter (saxofone tenor e soprano), Brad Mehldau, Danilo Perez (piano), John
Patitucci (contrabaixo), Brian Blade, Terri Lyne Carrington (bateria).
E
ainda: Chris Potter (saxofone tenor, clarinete baixo), Lew Soloff, Jeremy Pelt
(trompete), Jim Pugh, Papo Vázquez (trombone), Marcus Rojas (tuba), Alex Acuña
(percussão), etc.
Se foi das efusões do novo século, ou se
o acendeu o regozijo de tocar com uma secção rítmica de músicos com idade para
serem seus pupilos, mas que, à boa maneira do jazz, o acompanhavam a par e
passo sem preito, Wayne Shorter despertou qual Bela Adormecida, no ano 2000, do
remanso em que o achavam. Se o primeiro resultado – Footprints! Live (2002) –
desta nova sociedade espantou, a segunda prova arrebatou. Num fósforo “Alegría”
propeliu até ao firmamento do jazz, com vendas, prémios e tudo.
“Alegría” é uma porta giratória de
músicos e composições; o que vem a seguir nada deva ao que ficou tocado e
atado. Se é Danilo Perez que está ao piano toque-se “Vendiendo Alegría” com
Wayne Shorter no saxofone soprano a desembainhar a melodia fio a fio; se for
Brad Mehldau reinvente-se “Angola” – um standard do Shorter dos anos 60 – como
se nunca houvesse sido decifrado. Nos metais fazem fila para entrar ora Jeremy
Pelt, ora Lew Soloff (trompetes), ora Chris Potter (saxofone tenor), numa
alternância de gerações e estilos surpreendente. No repertório é igual o enciclopedismo; venha
de lá uma balada do séc. XII, ou as “Bachianas Brasileiras” de Villa-Lobos – o
jazz como meta-música, portanto.
Com 70 anos de idade, quando dele se
esperavam palestras e tributos, Wayne Shorter ousa uma complexidade e, ao mesmo
tempo, uma jovialidade, que antes de se ter ouvido “Alegría” jurava-se
impossível.
José Navarro de Andrade
Não é para polémica mas o acidente do TWA800 foi explicado como uma explosão num dos tanques de combustível, ocasionado por o mesmo estar quase vazio.
ResponderEliminarhttps://en.wikipedia.org/wiki/TWA_Flight_800
Tenho alguns deste, lá irá um.
Caríssimo: por razões editoriais acabei por cortar precisamente essa explicação do texto. Mas ela é avançada com cautela pelos investigadores da NTSB, dado que não obtiveram provas irrefutáveis.
ResponderEliminarQuando "flagrei" o meu filho de 23 anos ouvindo esse disco percebi que devia tentar "renovar" o gosto.Era dos que eu não ousava gostar.Burro!Infelizmente voltará a acontecer,espero com o mesmo fim.
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