O Amor nos Tempos de
Cólera, por Gabriel García Márquez apareceu em 1985 e é das obras do autor colombiano que mais fama
goza, na tradução portuguesa das Publicações Dom Quixote tem conhecido
reedições sucessivas, deu inclusivamente filme que, ao que parece, desapontou
cinéfilos e esteve longe de acompanhar a trepidante história de amor que a
literatura consagrou. Era uma vez um jovem telegrafista que se deslumbrou por
uma gringa que apareceu naquela capital com muitos séculos. Escreveu-lhe
calhamaços de cartas, ela acedeu a corresponder-se, a prosa dele era fogo, a
dela meros apontamentos do quotidiano. O pai da enamorada considerou
inadmissível um genro tão pobretana, toda de a enviar para o exílio, a
fraternidade dos telegrafistas foi tão avassaladora que não perderam a
comunicação. Depois ela voltou, o pai estava em apuros e inopinadamente Fermina
Daza descobre que nada a prende a Florentino Ariza, mal ela sabia mais de 50
anos depois ia receber uma proposta de casamento – há paixões inextinguíveis.
Livro metafórico, fabuloso, onírico, talvez um conto de fadas para adultos, um
encadeado de amores tumultuosos, muita cólera pelo meio, cólera metafórica,
entenda-se, há a cólera que mata por ser peste, mas há igualmente a cólera que
enrubesce os sentidos e esquece as idades, as etiquetas sociais, vamos ver
velhos com devaneios adolescentes experimentados.
Uma narrativa de entontecer, com
episódios miríficos. Fermina casará com um médico conceituado, um homem
generoso, cultíssimo, polivalente, coração de muitas causas, Juvenal Urbino.
Viverão décadas em comum, será um papagaio o obreiro da destruição da vida do
casal. Um papagaio extravagante que estava naquela casa fazia mais de vinte
anos e ninguém soube quantos vivera antes. “Todas as tardes depois da sesta, o
doutor Urbino sentava-se com ele na varanda do quintal, que era o lugar mais
fresco da casa. Tinha apelado para os recursos mais árduos da sua paixão
pedagógica até aqui o papagaio aprendeu a falar francês como um académico.
Depois, por mero vício da virtude, ensinou-lhe a acompanhar a missa em latim e
alguns excertos escolhidos do Evangelho segundo São Mateus, tentando, sem
sorte, inculcar-lhe uma noção mecânica das quatro operações aritméticas. Numa
das últimas viagens à Europa trouxe o primeiro gramofone de manivela, com
muitos discos da moda e os seus clássicos favoritos. Dia após dia, uma e outra
vez durante vários meses, arranjava maneira de o papagaio ouvir as canções de
Yvette Gilbert e de Aristide Bruant, que fizeram as delícias da França no
século passado, até aprendê-las de cor”. O papagaio solta-se, o octogenário sobe
uma escada, dá-se o desastre, ainda se despede de Fermina:
“Chegou a reconhecê-la no meio da
confusão, através das lágrimas da dor única de morrer sem ela, olhou-a pela
última vez para todo o sempre, com os olhos mais luminosos, mais tristes e mais
agradecidos que ela jamais vira em meio século de vida em comum, conseguindo
dizer-lhe com o último suspiro:
- Só Deus sabe quanto te amei”.
E no velório, o velho Florentino
Ariza, agora um dos mais prósperos empresários avança para ela e diz-lhe:
“Esperei esta ocasião durante mais de meio século, para repetir-lhe uma vez
mais o juramento da minha fidelidade eterna e do meu amor para sempre”.
Narrativa viçosa, luxuriante,
permanente trepidação na mudança de cenários do passado e do presente, qualquer
descrição de pormenor é para estarrecer e guardar para sempre. O doutor Juvenal
chega de Paris, vem toldado por progressos, a sua casa de família é um
escombro: “O antigo palácio do Marquês de Casalduero, residência histórica dos
Urbino de la Calle, não era o que se conservava mais altivo no meio do
naufrágio. O doutor Juvenal Urbino descobriu-o com o coração apertado quando
entrou pelo saguão tenebroso e viu o repuxo, repleto de pó, no jardim interior,
e os canteiros sem flores por onde andavam as iguanas, e apercebeu-se de que
faltavam muitos ladrilhos de mármore e que outros estavam partidos. O pai,
médico mais abnegado do que eminente, morrera durante a epidemia de cólera
asiática que assolara a povoação seis anos antes, e com ele morrera o espírito
da casa. Dona Blanca, a mãe, sufocada por um luto previsto para ser eterno,
tinha substituído por novenas vespertinas os célebres serões líricos e os
concertos de câmara do falecido marido. As duas irmãs, contra as suas graças
naturais e a sua vocação festiva, eram carne para o convento”.
Entrementes, Florentino dispersa-se
por amores licenciosos, vai ser muito ajudado pelo tio Leão XII, aos poucos irá
ser encaminhado para o topo da Companhia Fluvial das Caraíbas. Acompanharemos a
progressão destas vidas, de amores entretanto aplacados e acalmados, haverá
arrufos entre Fremina e Juvenal, Florentino envelhece, conheceu a calvície,
tudo experimentou, em muito elixir confiou: “Ao cabo de seis anos tinha
experimentado cento e setenta e dois produtos, além de outros processos complementares
que apareciam nos rótulos dos frascos, e a única coisa que conseguiu com um
deles foi um eczema do crânio, urticante e fétido, a que os curandeiros da
Martinica chamavam ‘tinha boreal’, porque irradiava uma luminosidade
fosforescente na escuridão (…) Experimentou uma peruca tão parecida com o seu
cabelo original que até ele receava que se lhe eriçasse com as mudanças de
humor, mas não conseguiu aceitar a ideia de levar na cabeça os cabelos do
morto”.
Um génio a tratar as situações mais
delicadas, como as noites de núpcias dos velhos Fermina e Florentino. Se o
doutor Juvenal Urbino na noite de núpcias explicou cientificamente à mulher a
fisiologia dos seus órgãos sexuais, o que a aborreceu muito, a ponto de
observar que havia para ali coisas supérfluas, agora, naquela estonteante
viagem de barco, que ameaça prosseguir até à eternidade, há descrições
insuperáveis de ternura e um processo exímio da escrita para galgar o que pode
ser visto como desconforme com o sexo dos seniores, assim:
“Então, ele olhou para ela. Viu-a nua
até à cintura, tal como ele a imaginara. Tinha os ombros enrugados, os seios
caídos e as costelas forradas por uma pele pálida e fria como a de uma rã. Ela
cobriu o peito com a blusa que acabava de despir e apagou a luz. Então ele
endireitou-se e começou a despir-se na escuridão, atirando para cima dela cada
peça que ia despindo e ela devolvia-lhas a rir à gargalhada.
Ela nunca tinha ouvido dizer que ele
tivesse uma mulher, nem uma sequer, numa cidade onde se sabia tudo mesmo antes
de acontecer. Disse-lho de uma maneira casual, e ele replicou-lhe imediatamente
sem uma vacilação na voz:
“ – É que me conservei virgem para
ti.
Ela não teria acreditado de todos os
modos, mesmo que fosse verdade, que as suas cartas de amor estavam cheias de
frases como essa que não tinham valor pelo seu sentido, mas pela sua capacidade
de deslumbrarem. Mas agradou-lhe a coragem com que o disse. Florentino Ariza,
pelo seu lado, perguntou-se então o que nunca tinha atrevido a perguntar-se:
que tipo de vida oculta tinha levado ela à margem do casamento. Mas fez bem em
não lho perguntar. Em troca, a prudência de Florentino Ariza teve uma
recompensa inesperada: ela estendeu a mão na escuridão, acariciou-lhe o ventre,
os flancos, o púbis quase imberbe”. E farão amor, não se separaram por um
momento nos dias seguintes. “Se saiam do camarote era para irem comer. O
comandante Samaritano, que descobria instintivamente qualquer mistério que
quisesse guardar no seu navio, mandava-lhes a rosa branca todas as manhãs, pôs-lhes
uma serenata de valsas do seu tempo, mandava-lhes preparar comidas de
brincadeira com condimentos alentadores. Não voltaram a tentar fazer amor senão
muito depois, quando lhes chegou a inspiração sem que a procurassem.
Bastava-lhes a felicidade de estarem juntos”.
Há cólera no rio, Floretino dá ordens
para que aquela viagem prossiga, será um ir e vir que o comandante,
estarrecido, lhe pergunta até quando:
“Florentino Ariza tinha a resposta
preparada já há cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com todas as suas
noites.
- Toda a vida – disse”.
Não interessa saber como prosseguira a viagem, a metáfora amorosa triunfará e garanto ao leitor que leio O Amor dos Tempos de Cólera sempre como se fosse a primeira vez, este é o sentimento da descoberta, do desassossego e do florescimento sentimental que só as obras literárias supremas nos podem provocar.
Mário Beja Santos
O Amor é sempre eterno... enquanto dura.
ResponderEliminar.
Abraço poético.
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Esta magnífica obra passou a filme, que já deu na TV (canal de cabo) por várias vezes. Bem realizado e com excelentes actores.
ResponderEliminarCumprimentos
José Leite
Achei o livro apaixonante e o filme uma desilusão.
ResponderEliminarQuando por fim trocaram um beijo, sabia a velho …
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