segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Carta de Bruxelas.


 



Olhos nos olhos


As execuções capitais ofendem a sensibilidade contemporânea nas democracias ocidentais, e não só. O acto de matar deve ser realizado administrativamente, intra muros, nas instituições judiciais. Como pena judicial, é um momento previsto oficialmente, a ser resguardado dos olhares públicos. Além dos carrascos, podem assistir, por vezes, a família do criminoso ou as vítimas dele. Uma coisa é certa, não se aceita a execução como espectáculo social, nem momentâneo para o qual se alugavam janela em casas privadas ou se levavam crianças, muito menos como essas quase procissões que eram os autos da fé, pormenorizadamente organizados pela Inquisição, com a sua etiqueta solene e precedências rigorosas; tudo pontuado por uma sólida sucessão de episódios dramáticos. Não se pretende, em tais casos, morigerar; faz parte da execução dar o exemplo, sem dúvida. Mas o essencial não reside nisso. O castigo reabilita o criminoso, confere-lhe um lugar na comunidade cujas leis ofendeu. A solidão da morte é uma solidão com os outros. Está entre os seus, que são dele testemunhas. Não se trata apenas de uma coesão religiosa ou ideológica, com o poder definitivo de um ferrolho corrido. Recordam os historiadores que os condenados à morte, na sequência das purgas levadas a cabo na França revolucionário pelo Comité de Salvação Nacional, se preocupavam com a sua aparência e porte, as palavras que dirigiriam à multidão, a sua a conduta no momento de subir ao patíbulo. Para lá de todas as divisões resta sempre a comunidade humana que exorbita Estados, classes ou costumes.

Num pequeno relato, publicado presumivelmente em 1946 ao regressar do cativeiro, o romancista belga Joseph Wilkens, refere a propósito dos enforcamentos que os prisioneiros eram obrigados a presenciar: «Reunidos na praça da chamada, assistíamos impotentes ao assassínio dos nossos camaradas. As vítimas tinham de aguardar a sua vez. Minuto de sofrimento atroz, ver perecer de uma morte horrível, um amigo, até um familiar, e saber que, chegada a nossa vez, sofreríamos a mesma sorte. O supliciado procurava na multidão dos forçados um rosto amado e punha num derradeiro olhar toda a eloquência de um adeus supremo.» Não por acaso, o trecho provém de um capítulo intitulado O desprezo da morte. `O sistema concentracionário roubava à morte o seu carácter humano, precisamente por não reconhecer na morte um acto humano mas antes a eliminação de algo que definia a priori como infra-humano – os Untermenschen. O olhar em que Wilkens descobre o adeus supremo é um adeus de condenado a condenado, que pretende ser um adeus de homem a homem, lembra sem esperança, na palavra emudecida, já incapaz de um apelo, a humanidade comum. 

 

                                                                    João Tiago Proença

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