quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Quem não existe na avalanche das redes sociais está morto, deixa de merecer a vida presente.

 

 



Há bem mais de 20 anos que analistas de diferentes procedências se debruçam sobre o culto da velocidade decorrente de vivermos numa sociedade em rede, analisa-se quais as consequências deste frenesim, como se pulverizam as formas de equilíbrio que exigem maturação das coisas, dos lugares, da luz, dos referentes da história, isto quando reina a urgência, a instantaneidade, o breaking news que nos altera a vida inteira, as tais formas de equilíbrio que eram medidas pelo tempo físico e o tempo subjetivo, tudo ultrapassado pelo curto prazo, a necessidade de se reagir de imediato com o contacto, estar em permanência a consultar essas vastíssimas salas de conversa onde temos que ser opinativos, mostrar performance, interação, disponibilidade permanente – só assim se tem direito a estar vivo.

Os Dias do Ruído, de David Machado, Publicações Dom Quixote, 2024, é uma metáfora sobre a comunicação contemporânea, onde predomina a tal cultura da urgência, a plena sujeição aos riscos de viver com uma claque na sala de conversa digital, que por vezes tem uma abrangência planetária, ou, sofrer a ira declarada dos outros quando se adquiriu o estatuto de herói ou heroína. Não há político que não se esforce por dar opiniões diárias no X ou no Instagram, merecerão depois a sua transferência para as ondas televisivas ou hertzianas, e comentários noutras salas de conversa de dimensão gigantesca, como o Facebook. Os políticos, os homens de negócios, os astros do desporto, os heróis efêmeros, precisam de conselheiros que os ajudem a responder com uma frase que se pôde perpetuar nos diferentes meios de comunicação social. É um ruído avassalador de manchetes, imagens, vídeos – dá muito trabalho estar na crista da onda, prisioneiro do implacável quotidiano.

Laura, penicheira de origem, repórter afamada, andou pelas zonas de grande conflito onde ganhou créditos, evitou um atentado num café de Paris matando um terrorista islâmico; passou a escrito a sua história e anda pelo mundo fora promovendo o livro, considera mesmo voltar a escrever outro sobre mulheres heroínas que ela pretende distinguir, exemplos de cidadania, de coragem, de combate à vilania e à violência. Laura vive sempre no presente, guarda contactos com a irmã e escassas amigas íntimas, recebe mensagens do ex-marido, o caudal de acontecimentos onde se sujeita a provas de fogo são as sessões de autógrafos e as questões postas pelos fãs nas redes sociais, faz vídeos que depois circulam em onde planetária. Nisto começam a surgir mails com ameaças de morte, mas há turbulência na sua vida privada, a mãe dá sinais de demência, isto enquanto ela circula no planeta virtual, viajando de país em país; a editora conversa com Laura, dá-lhe conselhos, sugere imagens, está a par das ameaças de morte.

Entramos de golfão na vida familiar, em Peniche, conheceremos uma amiga íntima de Laura, Brielle, ficou mutilada num ato de terrorismo, andam todos permanentemente ao telefone, a irmã de Laura reconciliou-se com o pai, homem tirânico e indisposto com as filhas. Há repercussões paradoxais quanto à morte do terrorista islâmico: “Como se ainda houvesse dúvidas de que 99% da informação no mundo é apenas eco, dezenas de mensagens enviadas de todas as partes do planeta informam-me de que no site de uma organização neonazi húngara se vendem t-shirts com uma foto na qual apareço a asfixiar o ator egípcio. A legenda é aterradora e pretensiosamente poética: ‘Vamos varrer o país uma barata de cada vez’.” De Peniche continuam a chegar notícias alarmantes, a agente de Laura apela com caráter de urgência que se publique um novo livro, a enteada de Laura acompanha agora a madrasta de país em país.

Estamos agora num espaço fixo, Peniche, Laura regressa a outro tempo mas constata que tudo ali parou: “Tudo na casa está parado no tempo: o mapa de rachas dos azulejos da cozinha; o fedor a esgoto quando se abre a água quente do lava-loiça; a coleção de São Josés sobre o televisor bojudo, na sala, diante do sofá tão coçado; o xadrez amarelo e azul da toalha de plástico sobre a mesa; a lentidão com que as vozes viajam entre as divisões; uma melancolia de décadas acumulada nas gavetas da cómoda do corredor; a bata da minha mãe pendurada atrás da porta da casa de banho; o cheiro acre da pólvora; as botas enlameadas do meu pai arrumadas na cozinha, junto ao caixote do lixo; um arpão de apanhar polvos encostado à parede ao lado do frigorífico. Passo os dedos pelos objetos, pela madeira dos móveis, pela tinta acrílica das portas, e dou-me conta de que nunca saí completamente desta casa.”

O anfiteatro planetário está em polvorosa, o que aconteceu a Laura, foi presa, raptada, inicialmente Laura quer tomar o pulso à tão grande distância das décadas da sua ausência, dá-se a retoma de afetos com os pais e com a amiga Emília, o pai anda por ali a arquitetar voltar ao contrabando, o ex-marido telefona constantemente ou manda mensagens, sucedem-se as videochamadas, mas Laura corre o risco de morrer na sociedade em rede, crescem os prejuízos por ela ter cancelado os eventos, a imagem pública está danificada, a enteada apaixona-se e desapaixona-se, Laura publica nas redes algumas fotografias, a agente sonha com um filme com um intrigante reality show, seria um arranque estrondoso para a campanha de promoção do próximo livro. Parece que a vida familiar ganha uma nova forma de coesão, a irmão de Laura, Azul, também se integra na vida daquela casa, de onde se afastou há décadas. Falando com a sua agente, Laura admite não voltar a publicar nada, a agente “Fala da morte virtual do silencia absoluto. Pergunta-me se não tenho medo do silêncio absoluto, mas antes a que posso responder-lhe diz-me que serei apenas um corpo sem espírito, sem ligação à dimensão mais profunda da humanidade, uma memória eternamente perdida.

E as semanas passam, Laura todos os dias aparece nos seus murais para cuidar do reino virtual. “Faço-o com delicadeza, como se tratasse de plantas. No interior do reino, o ruído é mais polifónico e estridente do que nunca, grita-se tudo e o seu contrário, a comunidade só funciona porque ninguém está a ouvir ninguém. Contudo, mal saio, tudo o que resta é uma ligeira reverberação na minha pele que embala o corpo durante uns minutos.”

Parece que as ameaças desapareceram, Laura pensa que está próximo o dia em que deverá partir, há compromissos adiados, debates sobre terrorismo e feminismo. Apareceu o covid-19, o planeta está alvorotado, talvez Laura tenha vontade de voltar para junto do ex-marido, importa escrever um novo livro. “As horas passam. Os dias e os meses e os anos passam. O tempo torna-se amparo para tudo o que faço. Aquilo que sou muda com as estações. E aquilo que sou é impossível de expressar. Mas ser vista e entendida em toda essa definição: que coisa extraordinária.”

Este romance de David Machado está destinado aos bons fados, é uma prosa talhada ao sabor das cavalgadas dos tempos em que vivemos, nesta sociedade que parece funcionar sobre o único registo da reatividade e de uma enxurrada de palavras de ordem e breaking news.


                                                                    Mário Beja Santos




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