sábado, 28 de dezembro de 2024

Carta de Bruxelas.

 


                                                                                        Plataformas logísticas

 


Para lá das cidades e antes do campo existem espaços que não são urbanos, nem rurais. São as zonas em que não há terrenos agrícolas com formas de vida específicas, nem as fábricas e o mundo do trabalho que lhes está associado. Não se vêem armazéns agrícolas, nem cooperativas, nem tratores, nem sacas de adubo puídas, espalhadas pelo chão; como também não se vêem fatos-macaco, nem gente reunida a gravitar à volta das instalações, nem os cafés e restaurantes medianamente encardidos, nem os sinais exteriores que distinguem os patrões dos operários.  Neles, as mercadorias da indústria, de laços já cortados com a produção, estão acondicionadas à espera de serem distribuídas; são como a seiva que vai irrigar a cidade e as suas actividades, concretizando-se no uso que lhes será dado pela multidão dos interesses e das preferências. São as plataformas logísticas onde, a par das mercadorias na sala de espera, se encontram os outdoors que oferecem produtos ou serviços, anúncios fora de moda, com uma estética canhestra, baratos, concebidos por estratos sociais suficientemente avançados para valorizarem as formas modernas de comercialização e da publicidade, mas não quanto baste para ombrearem com o gosto mais avançado, urbano. Tais espaços são não-lugares, estradas sem habitação e sem pessoas nas ruas que não existem, onde se encontra congelado o fervilhar da cidade na forma de valor de uso em suspensão. Daí a alegria que provocam nas crianças em viagem.

Nesses arredores de todas as cidades, vêem quando por eles passsam, à entrada, a promessa concentrada que se desmultiplicará na vida quotidiana; ou, à saída, o fim e a finalidade desse mundo do trabalho com que contactam em abstracto e em que sentem a superioridade da cidade sobre o campo da pobreza, de que as famílias saíram, ou ressentem com naturalidade as coisas que serão usadas provando com naturalidade a sua superioridade social. Independentemente da classe social, as plataformas logísticas, como lhes chamam, correspondem à predilecção infantil pelo novo, pelo nunca tocado, como os animais puros, sem mácula, que nunca foram arreados, nunca puxaram um arado, nunca entraram em commercium sexuale com os seus semelhantes, sendo por isso os únicos escolhidos para serem sacrificados aos deuses. Tudo se passa como se, para as crianças e à sua imagem e semelhança, as mercadorias não tivessem história, um passado determinado. O feitiço que lançam sobre o olhar infantil é tão-somente a história que não é história, a história por acontecer, a promissão, e todo o encanto da possibilidade, do vago que acolhe a felicidade a que se crêem destinadas, como as demais criaturas. Nas crianças, a sociedade dá-se no indivíduo na forma de um sensorium social, sem pensamento, antes como a confusão de todas as coisas – a infância do mundo – que o tempo apartará. Nesse sentido, a condição de possibilidade da sociedade como objecto cognoscível reside no sentimento inaugural. Na vida gasta, na velhice, as plataformas logísticas estão paralisadas no rigor mortis; o tempo e os seus desenganos já não encontram nelas a espontaneidade própria do paralogismo infantil. Tudo aquilo que estava prestes a entrar numa circulação feliz perfila-se inerte, despojado, já para lá da agonia. O segundo sentimento, senectutis, é como o segundo amor: já perdeu a capacidade de surpreender pela novidade, traz consigo a leve sombra da tristeza. A inutilidade das coisas é o paralogismo dos velhos, corresponde ao seu sentimento de inutilidade, a vida já se retirou como a maré deixando na areia despojos sem nexo. A sociedade como objecto desaparece por detrás do sentimento baço da inanidade geral, como se a sociedade desaparecesse com o indíviduo. A confusão das coisas é agora a quinquilharia amontoada sem obedecer a nenhum critério que não o critério exterior do tempo abstracto que sobre tudo reina com soberana indiferença. Um sentimento que talvez se redima na esperança de um novo começo, na esperança de que, ao passar pelas plataformas logísticas, se acenda o lume nalguma criança.


                                        Texto e fotografia de João Tiago Proença




1 comentário:

  1. Permita-me uma sugestão: "Volta a Portugal" Álvaro Domingues, ed. Contraponto

    ResponderEliminar