Desenho da elefanta Hansken, Trzebiatów, Polónia, 1693
|
Por via da amizade de José Liberato,
Joanna Jarecka-Gomez falou-me de dois elefantes. Um, que não conhecia, é o
símbolo da cidade de Trzebiatów, na Polónia, onde existe um grafito da elefanta Hansken, feito em 1693 (Hansken fez um famoso tour pela Europa, foi desenhada por Rembrandt e os seus restos mortais estão hoje em Florença, existindo até um livro sobre ela, Rembrandt's Elephant, por sinal caríssimo). Outro, mais próximo de nós, está
no centro de Catânia, Sicília, na Fontana dell’Elefante, obra feita no século
XVIII pelo arquitecto Giovanni Battista Vaccarini. Para o efeito, Vaccarini
inspirou-se no Obelisco de Minerva, da autoria de Gian Lorenzo Bernini, que
está em Roma, e que foi brutalmente vandalizado há dois anos. Horror. Tanto
mais horror quanto, além de várias lendas e historietas romanas, o paquidérmico
obelisco terá sido fonte de inspiração a Salvador Dalí para o seu quadro As Tentações de Santo António, pintado
em 1946.
Salvador Dalí, As Tentações de Santo António, 1946
|
Túmulos de D. Manuel e de D, Maria, Mosteiro dos Jerónimos
|
Túmulo de Fernão Telles de Menezes, Museu de História Natural e da Ciência,
Rua da Escola Politécnica, Lisboa |
Desenho do túmulo por Gustavo Matos Sequeira
|
E agora já íamos falar dos elefantes
nos túmulos do Mosteiro dos Jerónimos e, também em Lisboa, no túmulo de Fernão
Telles de Menezes, governador da Índia e do Algarve, recentemente desemparedado (aleluia!) ali à Escola Politécnica: Mandou esta Senhora fabricar hum magestozo
mausoleo de mármores, assentado sobre dous elefantes em hu vão no lado do
Evangelho da Capella mor, escreveu o Padre António Franco no anno 1719. E com
isto, claro, isto lá nos desviávamos do rinoceronte, objectivo precípuo destas
viagens, pelo que regressamos à Sicília, depressa e em força. Não longe de
Catânia, a cerca de hora e picos de automóvel, a Villa del Casalle, de tempos
romanos, famosa e patrimonializada devido aos seus mosaicos, com destaque para
umas senhoras em bikini e para o corredor da «Grande Caçada». Na quinta cena
dessa expedição venatória, um mosaico exibe a captura de rinocerontes numa
paisagem do Nilo, ainda que não haja a certeza de que o rinoceronte figurado no
dito mosaico seja africano ou indiano. Se o observarmos, vemos que só tem um
corno e que a sua configuração é muito parecida com a de um rinoceronte
indiano, bem diferente dos seus congéneres de África que vemos em França, no «Painel dos Rinocerontes» da francesa gruta de Chauvet (ou em Tassili n'Ajjer, no Saara, Argélia), ou na moeda do imperador Tito Flávio Domiciano que viveu entre 51 e
96 d.C.
Villa del Casale, Sicília
|
Gruta de Chauvet, França
|
Moeda do imperador Domiciano, 84-90 d.C.
|
Diz-se aqui que a moeda comemorava a primeira entrada de um rinoceronte
africano no Coliseu,
mas o certo é que, antes dela, já muitos rinocerontes tinham estado em Roma. No
fascinante livro The Day Commodus Killed a Rhino, o historiador Jerry Toner, da Universidade de Cambridge,
refere que Pompeu Magno, o grande rival de Júlio César, importou rinocerontes para
os seus jogos, em 55 a.C., e em 29 a.C. o imperador Augusto também teve
rinocerontes nos jogos que promoveu para celebrar a abertura do templo a Júlio
César, seu amado e endeusado pai. Segundo Jerry Toner, o rinoceronte que vemos
a caminho de Roma, no mosaico da Villa del Casale, Piazza Armerina, na Sicília,
é um exemplar indiano, opinião que acompanhamos, e o historiador de Cambridge
conta a história absolutamente extraordinária de Cómodo, o filho de Marco
Aurélio que, em conflito aberto com o Senado, usou os jogos como esplendorosa
manifestação do seu poder. Ele próprio entrou na arena e, do alto de paliçada
de madeira especialmente construída para o efeito, matou centenas e centenas de
animais, em dias sucessivos, uma orgia de sangue. No primeiro dia dos jogos, assevera
um senador romano, Dio Cassius, Cómodo matou mais de cem ursos, a golpes de
lança. Os animais era colocados diante de si, enjaulados ou presos em redes, e
o imperador Cómodo só tinha de os matar, comodamente. Até uma pequena girafa
foi trespassada pelo seu furor, que não poupou o rinoceronte, a piéce de résistance devido à ferocidade
do seu espírito e à espessa couraça da sua pele. Os jogos duravam vários dias,
muitos e muitos dias, e eram, acima de tudo, um instrumento político de vital
importância nos surdos conflitos entre o imperador e o Senado. No ano de 354,
176 dias foram dedicados aos jogos. Do ponto de vista animal, uma carnificina.
Nos jogos de Trajano, por exemplo, foram massacrados 11.000 animais. Nos jogos
de Tito, realizados para celebrar a abertura do Coliseu, dizimaram 5.000
animais num só dia. Jerry Toner calcula que, só para alimentar tantos bichos,
eram necessárias 45 toneladas de alimentos por dia. E, no final da matança, o
amontoado de carne era montanhoso, obviamente. E variado. Nos jogos promovidos
pelo imperador Filipe, o Árabe, realizados em 248 d.C. fora, mortos 32
elefantes, 10 veados, 10 tigres, 60 leões, 32 leopardos, 10 hienas, um hipopótamo
e, claro, um rinoceronte, entre muitas e muitas outras alimárias. Anos depois,
em 281 d.C., o imperador Marco Aurélio Probo presidiu à chacina de mil
avestruzes, mil javalis, mil veados, cem leões, duzentos leopardos, trezentos
ursos, não havendo notícia de rinocerontes.
Ao promover uma justa entre um elefante
e um rinoceronte em Lisboa, no ano de 1515, Dom Manuel I, o Venturoso, estava porventura
a convocar para si a glória pretérita dos imperadores de Roma. Na Lisboa da
época – e muito provavelmente na sua corte – era conhecido o escrito de Plínio,
o Velho, sobre a inimizade lendária entre o rinoceronte e o elefante, dizendo
Plínio que o primeiro, antes de investir sobre o segundo, afiava o corno numas
pedras e procurava trespassar o adversário na barriga, onde a pele era mais fina
e sensível. Opinião diversa teve Marco Polo, que na ilha de Java recolheu a
impressão que era a língua do rinoceronte e não o seu corno a parte mais letal
do animal. Assim, sobre o reino de Basman, na ilha de Java, escreveu Marco Polo
nas suas Viagens:
«Têm muitos elefantes e unicórnios, que
não são nada inferiores aos elefantes; têm pêlo de búfalo, as patas como os
elefantes e no meio da cabeça têm um corno grosso e negro. Digo-vos que não
fazem mal com aquele corno mas sim com a língua, porque é espinhosa, cheia de
espinhas muito grandes; têm focinho parecido com o do javali, e levam-no
inclinado para baixo: sentem-se muito bem entre o lodo e a lama. É um animal
muito feio à vista e não é um animal que se deixe apanhar facilmente, muito
pelo contrário». (Marco Polo, Viagens,
trad. de Ana Osório de Castro, Assírio & Alvim, 2006, p. 159).
É possível que tenha sido este relato
de Marco Polo que motivou a existência de um estranho mosaico na Basílica de
São Marcos em Veneza, de que já falámos, e sobre o qual há grandes discrepâncias
quanto à respectiva datação, havendo mesmo quem diga que a obra é do século XX,
dos anos 1960!
Basílica de São Marcos, Veneza
|
Mas que a lenda da inimizade entre
rinocerontes e elefantes tem raízes em várias partes do mundo, e projecção
artística rica e opulenta, disso não se duvida, como veremos em próximo
fascículo desta desvairada série.
Lembro que há sarcófagos sobre elefantes em túmulos da Capela Panteão dos Castros em São Domingos de Benfica.
ResponderEliminarMuitíssimo obrigado, caro Rubem, mais uma pista a explorar!
ResponderEliminarUm abraço grato e amigo, Bom Ano,
António
Trzebiatów tem um acento no o.
ResponderEliminarLê-se tjebiatuv. Se não tivesse acento seria tjebiatov.
Obrigado, vou já corrigir
ResponderEliminarBoas Festas
António Araújo