quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Mais animais.

 
Desenho da elefanta Hansken, Trzebiatów, Polónia, 1693

 

Giovanni Battista Vaccarini, Fontanna dell'Elefante, Piazza del Duomo, Catânia

 
         Por via da amizade de José Liberato, Joanna Jarecka-Gomez falou-me de dois elefantes. Um, que não conhecia, é o símbolo da cidade de Trzebiatów, na Polónia, onde existe um grafito da elefanta Hansken, feito em 1693 (Hansken fez um famoso tour pela Europa, foi desenhada por Rembrandt e os seus restos mortais estão hoje em Florença, existindo até um livro sobre ela, Rembrandt's Elephant, por sinal caríssimo). Outro, mais próximo de nós, está no centro de Catânia, Sicília, na Fontana dell’Elefante, obra feita no século XVIII pelo arquitecto Giovanni Battista Vaccarini. Para o efeito, Vaccarini inspirou-se no Obelisco de Minerva, da autoria de Gian Lorenzo Bernini, que está em Roma, e que foi brutalmente vandalizado há dois anos. Horror. Tanto mais horror quanto, além de várias lendas e historietas romanas, o paquidérmico obelisco terá sido fonte de inspiração a Salvador Dalí para o seu quadro As Tentações de Santo António, pintado em 1946.
 
 

Bernini, Obelisco de Minerva, Roma, 667

 
 
Salvador Dalí, As Tentações de Santo António, 1946
 
 
Túmulos de D. Manuel e de D, Maria, Mosteiro dos Jerónimos
 
 
 
 
Túmulo de Fernão Telles de Menezes, Museu de História Natural e da Ciência,
Rua da Escola Politécnica, Lisboa
 
 
Desenho do túmulo por Gustavo Matos Sequeira
     
 
    E agora já íamos falar dos elefantes nos túmulos do Mosteiro dos Jerónimos e, também em Lisboa, no túmulo de Fernão Telles de Menezes, governador da Índia e do Algarve, recentemente desemparedado (aleluia!) ali à Escola Politécnica: Mandou esta Senhora fabricar hum magestozo mausoleo de mármores, assentado sobre dous elefantes em hu vão no lado do Evangelho da Capella mor, escreveu o Padre António Franco no anno 1719. E com isto, claro, isto lá nos desviávamos do rinoceronte, objectivo precípuo destas viagens, pelo que regressamos à Sicília, depressa e em força. Não longe de Catânia, a cerca de hora e picos de automóvel, a Villa del Casalle, de tempos romanos, famosa e patrimonializada devido aos seus mosaicos, com destaque para umas senhoras em bikini e para o corredor da «Grande Caçada». Na quinta cena dessa expedição venatória, um mosaico exibe a captura de rinocerontes numa paisagem do Nilo, ainda que não haja a certeza de que o rinoceronte figurado no dito mosaico seja africano ou indiano. Se o observarmos, vemos que só tem um corno e que a sua configuração é muito parecida com a de um rinoceronte indiano, bem diferente dos seus congéneres de África que vemos em França, no «Painel dos Rinocerontes» da francesa gruta de Chauvet (ou em Tassili n'Ajjer, no Saara, Argélia), ou na moeda do imperador Tito Flávio Domiciano que viveu entre 51 e 96 d.C.
 



Villa del Casale, Sicília
 


Gruta de Chauvet, França 


Tassili n'Ajjer, Sara, Argélia
 
Moeda do imperador Domiciano, 84-90 d.C.
 
 
      Diz-se aqui que a moeda comemorava a primeira entrada de um rinoceronte africano no Coliseu, mas o certo é que, antes dela, já muitos rinocerontes tinham estado em Roma. No fascinante livro The Day Commodus Killed a Rhino, o historiador Jerry Toner, da Universidade de Cambridge, refere que Pompeu Magno, o grande rival de Júlio César, importou rinocerontes para os seus jogos, em 55 a.C., e em 29 a.C. o imperador Augusto também teve rinocerontes nos jogos que promoveu para celebrar a abertura do templo a Júlio César, seu amado e endeusado pai. Segundo Jerry Toner, o rinoceronte que vemos a caminho de Roma, no mosaico da Villa del Casale, Piazza Armerina, na Sicília, é um exemplar indiano, opinião que acompanhamos, e o historiador de Cambridge conta a história absolutamente extraordinária de Cómodo, o filho de Marco Aurélio que, em conflito aberto com o Senado, usou os jogos como esplendorosa manifestação do seu poder. Ele próprio entrou na arena e, do alto de paliçada de madeira especialmente construída para o efeito, matou centenas e centenas de animais, em dias sucessivos, uma orgia de sangue. No primeiro dia dos jogos, assevera um senador romano, Dio Cassius, Cómodo matou mais de cem ursos, a golpes de lança. Os animais era colocados diante de si, enjaulados ou presos em redes, e o imperador Cómodo só tinha de os matar, comodamente. Até uma pequena girafa foi trespassada pelo seu furor, que não poupou o rinoceronte, a piéce de résistance devido à ferocidade do seu espírito e à espessa couraça da sua pele. Os jogos duravam vários dias, muitos e muitos dias, e eram, acima de tudo, um instrumento político de vital importância nos surdos conflitos entre o imperador e o Senado. No ano de 354, 176 dias foram dedicados aos jogos. Do ponto de vista animal, uma carnificina. Nos jogos de Trajano, por exemplo, foram massacrados 11.000 animais. Nos jogos de Tito, realizados para celebrar a abertura do Coliseu, dizimaram 5.000 animais num só dia. Jerry Toner calcula que, só para alimentar tantos bichos, eram necessárias 45 toneladas de alimentos por dia. E, no final da matança, o amontoado de carne era montanhoso, obviamente. E variado. Nos jogos promovidos pelo imperador Filipe, o Árabe, realizados em 248 d.C. fora, mortos 32 elefantes, 10 veados, 10 tigres, 60 leões, 32 leopardos, 10 hienas, um hipopótamo e, claro, um rinoceronte, entre muitas e muitas outras alimárias. Anos depois, em 281 d.C., o imperador Marco Aurélio Probo presidiu à chacina de mil avestruzes, mil javalis, mil veados, cem leões, duzentos leopardos, trezentos ursos, não havendo notícia de rinocerontes.

 


         Ao promover uma justa entre um elefante e um rinoceronte em Lisboa, no ano de 1515, Dom Manuel I, o Venturoso, estava porventura a convocar para si a glória pretérita dos imperadores de Roma. Na Lisboa da época – e muito provavelmente na sua corte – era conhecido o escrito de Plínio, o Velho, sobre a inimizade lendária entre o rinoceronte e o elefante, dizendo Plínio que o primeiro, antes de investir sobre o segundo, afiava o corno numas pedras e procurava trespassar o adversário na barriga, onde a pele era mais fina e sensível. Opinião diversa teve Marco Polo, que na ilha de Java recolheu a impressão que era a língua do rinoceronte e não o seu corno a parte mais letal do animal. Assim, sobre o reino de Basman, na ilha de Java, escreveu Marco Polo nas suas Viagens:
         «Têm muitos elefantes e unicórnios, que não são nada inferiores aos elefantes; têm pêlo de búfalo, as patas como os elefantes e no meio da cabeça têm um corno grosso e negro. Digo-vos que não fazem mal com aquele corno mas sim com a língua, porque é espinhosa, cheia de espinhas muito grandes; têm focinho parecido com o do javali, e levam-no inclinado para baixo: sentem-se muito bem entre o lodo e a lama. É um animal muito feio à vista e não é um animal que se deixe apanhar facilmente, muito pelo contrário». (Marco Polo, Viagens, trad. de Ana Osório de Castro, Assírio & Alvim, 2006, p. 159).
 
         É possível que tenha sido este relato de Marco Polo que motivou a existência de um estranho mosaico na Basílica de São Marcos em Veneza, de que já falámos, e sobre o qual há grandes discrepâncias quanto à respectiva datação, havendo mesmo quem diga que a obra é do século XX, dos anos 1960!
 
Basílica de São Marcos, Veneza
 
         Mas que a lenda da inimizade entre rinocerontes e elefantes tem raízes em várias partes do mundo, e projecção artística rica e opulenta, disso não se duvida, como veremos em próximo fascículo desta desvairada série.
 



 

4 comentários:

  1. Lembro que há sarcófagos sobre elefantes em túmulos da Capela Panteão dos Castros em São Domingos de Benfica.

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  2. Muitíssimo obrigado, caro Rubem, mais uma pista a explorar!

    Um abraço grato e amigo, Bom Ano,

    António

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  3. Trzebiatów tem um acento no o.
    Lê-se tjebiatuv. Se não tivesse acento seria tjebiatov.

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  4. Obrigado, vou já corrigir

    Boas Festas

    António Araújo

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