quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
46750.
O João Pina já andou muito. Pelas
cadeias da ditadura portuguesa, pelos desaparecidos da Operação Condor e agora
pelo Rio de Janeiro, favelado e violento. O produto do trabalho dos seus anos cariocas está agora em livro, que pode – e deve!
– comprar até 5 de Março (http://46750book.joao-pina.com/). Sim, é publicidade descarada, pois vale a pena. Sobre
o Rio dos morros há um coffee table book interessante, colorido, apelativo,
Inside the Favelas, de Douglas Mayhew. O
livro do João é diferente, muito diferente. Se me permitem, esmagadoramente
diferente – e melhor.
Notas sobre A Grande Onda - 16
16.
Uma
das xilogravuras de Hokusai em que é mais notória a interacção entre os dois
elementos – terra e mar – pertence à série Cem
Poemas por Cem Poetas, datada de finais da década de 1830 (mais
precisamente, circa 1835-36).
Publicada
por Nishimuraya Yohachi, o mesmo editor de Trinta
e Seis Vistas do Monte Fuji, onde se insere A Grande Onda, a série Cem
Poemas por Cem Poetas (Hyakunin
isshu uba ga etoki; 百人一首 宇波がゑとき, que em inglês tem a designação One Hundred Poems by One Hundred Poets, Explained
by the Nurse, e em francês Cent
poèmes de cent poétes expliqués para la nourrice, podendo ser traduzida
como Cem Poemas por Cem Poetas, Explicados
pela Nutriz), reveste-se de particular significado na obra de
Katshushika Hokusai, sendo um dos seus últimos trabalhos em xilogravuras de
grande formato.
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Da série Cem Poemas por Cem Poetas
Museu Britânico, 1906, 1220, 0.583
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A série
reproduz uma antologia de poemas datada do século XIII que ainda hoje é das
mais apreciadas e populares no Japão, tendo-se prestado no passado a um curioso
divertimento da burguesia citadina: nesse jogo de salão, um dos participantes
citava a primeira estrofe, cabendo aos restantes parceiros dizer quem era o
autor e prosseguir a declamação do poema.
A
xilogravura, descrita aqui, está assinada «Do pincel de Iitsu, o antigo Hokusai» (Saki
no Hokusai Iitsu hitsu; 前北斎為一筆) e tem por título Yamabe no Akahito
(山部の赤人), o nome do autor do poema.
Atente-se no modo como as ondas se projectam
sobre a costa a partir da Baía de Suruga. Ao fazê-lo, entram pela terra
adentro, o que poderia indiciar estarmos perante um mar revolto, o que é desmentido
pela placidez das águas na baía, pela serenidade dos dois navios, pela suave
correnteza das ondas que riscam horizontalmente o espaço central da imagem. À
semelhança de A Grande Onda, os
elementos mais relevantes não se encontram no centro mas nas margens da gravura,
que é preenchida por completo em todas as suas dimensões verticais e
horizontais, estando mais carregada de elementos na secção inferior, com as
figuras humanas e a elevação rochosa ocupando todo o extremo-direito, e o
contraponto das ondas descaído para o centro e a esquerda, numa faixa
horizontal que acaba por destacar a presença do Monte Fuji, o qual surge no espaço
menos preenchido da imagem, erguendo-se na metade superior do desenho.
A terra – se quisermos, a vegetação
terrestre – vai adquirindo uma coloração mais esverdeada à medida que se desce
a encosta. E, no sopé, duas ondas penetram os arbustos, a ponto de apenas
percebermos o que é da terra e o que é do mar devido à coloração distinta das
vagas e das plantas (plantas que, à medida que se desce a encosta, adquirem um
perfil cada vez mais próximo do das vagas marítimas, a ponto de Hokusai ter sentido
a necessidade, por assim dizer, de colocar no fundo um conjunto arbóreo a azul,
com os ramos bem identificados, para se perceber que estamos ainda perante dois
mundos diversos, o da terra e o do mar). Se acaso os arbustos que emergem do mar
tivessem uma cor azul, ou branca, não julgaríamos serem ondas ou a sua espuma?
Originalmente, pensou-se que a série Cem Poemas… teria, como o nome indica,
cem gravuras, sendo um empreendimento de grande fôlego. Muito provavelmente,
foi a crise económica que afectou o Japão em meados e finais da década de 1830 que
levou à interrupção da série, da qual só foram publicadas 27 estampas.
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Da série Cem Poemas por Cem Poetas
Museu Britânico, 1951, 0714, 0.40
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Por esse motivo, conserva-se uma peça
única, de extraordinário valor, descrita aqui: o desenho original de Hokusai para uma das
gravuras, não destruído no processo de impressão. Mais precisamente, aquilo que
se designa «desenho pronto para gravação» (hatsushita-e ),
tal como Hokusai o traçou. Taira no Kanemo (平兼盛), o nome do poeta falecido em 990 a.C. A gravura, de delicado traço, mostra um conjunto
de viajantes que fazem uma paragem na sua jornada para consultar um
fisionomista profissional, que analisa o carácter e a personalidade de um dos caminheiros
escrutinando o seu rosto com o auxílio de uma lupa.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Ao fundo das malhas.
De
Maria Clotilde Almeida, Bibiana de Sousa, Paula Órfão e Sílvia Teixeira, eis um
livro portentoso. Jogar Futebol com as
Palavras. As metáforas nas páginas de A
Bola. A primeira parte pode parecer enfadonha e excessivamente académica.
Mas, feito o intervalo, regressa-se ao campo com pérolas inauditas, tais como:
− «A testa franzida do grego do Alto
do Pina» (sobre Fernando Santos)
− «Banho turco de João Moutinho
homem invisível da armada lusa»
− «Os dois querem dançar com a
rainha» (Vitória de Guimarães e FCPorto, sendo a Taça de Portugal a «prova
rainha do futebol português»)
− «Jesus diz que é tempo de esquecer
a nota artística»
− «Meio olé a caminho da vitória»
(empate com a selecção de Espanha)
− «Águia empurra águia para baixo»
(Académica vs. SLBenfica)
− «Que se Danny o empate!»
− «FCP com baixa para Manchester mas
carregadinho de moral»
− «Dois sopros de Quaresma afugentaram
o fantasma»
− «Com o mágico de serviço foi uma
noite do diabo»
− «Novo fantasma no horizonte de um
dragão sem medo do passado: entre o céu e o inferno»
− «Lisandro ofereceu corpo a dragão
pouco arrojado»
− «Quem escapa em dois infernos
merece bem o paraíso»
− «A história de um dragão
preguiçoso que virou papão»
− «Jorginho de bandeja… César a
banquetear-se»
− «“Rato” Miccoli devorou a massa
tenra leiriense»
− «Caldeirão nem aqueceu»
− «Camarões para intoxicar!»
− «Recheio de Figo»
− «O título está na ementa»
− «No confronto dos génios… o
Mustang virou Ferrari!»
− «Sado de águas tranquilas»
− «Atitude de campeão maquilhou
rugas de mau futebol»
− «Primeiro foi o eclipse e só
depois alguma luz»
− «Plantel vai emagrecer»
− «De fraque ou fato-macaco, leão
não perde a classe»
− «Confronto de almirantes»
− «Ronaldo dinamitou o Villa»
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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Notas sobre A Grande Onda - 15
15.
Algumas
análises do trabalho de Katsushika Hokusai, como a que é empreendida por Olaf
Mextorf em Hokusai (Könemann, 2017),
sublinham a existência de várias fases numa obra que se desenvolveu ao longo
de várias décadas.
Assim,
distingue-se o período Shunrō, de 1779 a 1794, o período Sōri, de 1794 a 1798,
o período Hokusai, de 1798 a 1810, o período Taito, de 1810 a 1820, o período
Iitsu, de 1820 a 1834, e, no final, o período Gakyō rōjin Manji, de 1834 a 1849.
As
ondas – marítimas, fluviais, lacustres – estão presentes em todas as etapas da
trajectória artística de Hokusai.
Muitas
aproximações à Grande Onda começam
por escrutinar o modo como Hokusai representava as ondas, ou como foi evoluindo
essa representação na sua obra.
O
catálogo do Museu Britânico tem 743 entradas referentes a Katsushika Hokusai,
mas nem todas possuem imagens disponíveis online.
Procedeu-se
a uma selecção de alguns exemplos mais significativos, com base exclusivamente
na colecção do Museu Britânico, ou seja, não contemplando outras obras onde a
presença das ondas é marcante, com destaque para Vista de Honmoku ao largo de Kanagawa, de 1803, e Kaijo no Fuji, no segundo volume de Cem Vistas do Monte Fuji, de 1834.
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Vista de Honmoku ao largo de Kanagawa,1803
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Versão colorida de Kaijo no Fuji
Cem Vistas do Monte Fuji, 2ª volume, 1834
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Mais
do que um inventário exaustivo, este itinerário não cronológico por 18 imagens permite
entrever semelhanças – e dissemelhanças – com A Grande Onda.
No
entanto, e talvez mais interessante do que explorar o modo como Katsushika
Hokusai desenhava as ondas será ver a forma como a terra se confunde com o mar;
em termos simples, as ondas terrestres.
Na
série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji,
onde se inscreve A Grande Onda, encontra-se
uma xilogravura da qual existem duas impressões, uma com as rochas esverdeadas (descrição aqui),
outra inteiramente feita a azul da Prússia (descrição aqui). Tem a assinatura «Do pincel de Ilitsu,
o antigo Hokusai» (Saki no Hokusai Litsu
hitsu, 前北斎為一筆).
A paisagem representa Kajikazaw, na província de Kai, e a gravura foi impressa
no início da década de 1830.
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Da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji
Museu Britânico, 1907, 0322, 0.3
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Da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji
Museu Britânico, 1937, 0710, 0.162
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As afinidades com A Grande Onda são flagrantes.
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Primavera em Enoshima, 1797
Museu Britânico, 1937, 0710, 0.206
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É
comum apresentar-se como antecedente de A
Grande Onda a representação do mar em Primavera
em Enoshima (Enoshima Shumbo, 江ノ島春望), xilogravura de 1797 assinada «desenhada por Hokusai Sori» (Hokusai Sori ga, 北斎宗理画), integrada no livro Yanagi no ito (descrição aqui).
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xilogravura sem título
Museu Britânico, 1907, 0531, 0.158
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Atente-se no mar serpenteante e naquilo que parece ser, não o sendo, espuma que se acumula aos pés da figura feminina – ou de actores em papéis femininos (onnagata) – presente nesta xilogravura sem título de finais de 1770 a princípios de 1790, correspondendo à primeira fase da carreira de Hokusai, o período Shunrō (1779 a 1794). A inscrição no lado esquerdo da imagem diz precisamente «desenhado por Shunro» (Shunro ga, 春郎画) (descrição aqui).
Um
dos tópicos mais interessantes desta xilogravura consiste precisamente na
indistinção entre terra e mar, um elemento sincrético também marcante em A Grande Onda. O rochedo é envolto pelas
ondas a ponto de se confundir com elas, sensação que se adensa pela continuidade
das elevações rochosas de ambos os lados da figura feminina e, bem assim, pelos
pontos negros que salpicam a parte inferior da paisagem, os quais tanto podem
ser solo firme como salpicos salgados de um mar bravio.
Rostos do apartheid: David Goldblatt.
Duas crianças brincam, uma branca e uma
negra. Fotografadas assim, na África do Sul, corria 1963. Aparentemente, tudo
normal. Mas era a África do Sul de 1963, em que a criança branca era um kleinbaas, um «pequeno senhor», e a
negra era um klonkee, um «pequeno
negro». Brincavam juntas, mas na hora de puxar o carrinho, quem se erguia e
esforçava era o negro, sempre o negro. «Quem puxava sempre era o negro», diz
David Goldblatt (1930-), que há mais de sessenta anos fotografa o seu país, a preto e
branco. Agora, o Centro Pompidou dedica-lhe uma enorme retrospectiva.
domingo, 25 de fevereiro de 2018
Notas sobre A Grande Onda - 14
14.
Debussy.
O
facto de, ao responder ao famoso questionário de Proust, Georges Remi (1907-1983) ter escolhido como seu compositor favorito o autor
de La mer será porventura um indício
da paixão, que ambos terão partilhado, pela obra de Hokusai – e, em particular,
por A Grande Onda.
A
onda, como é sabido, ilustra a edição original da partitura de La mer, de 1905.
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Partitura original de La Mer, de Claude Debussy, A. Durand & Fils, 1905
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Dois
anos depois – mais precisamente, a 22 de Maio de 1907 –, Georges Remi nascia
em Etterbeek, uma das comunas de Bruxelas; seria imortalizado sob o nome de
«Hergé», criador de Tintin.
Segundo
alguns especialistas na obra de Hokusai, com destaque para Timothy Clark (cf. Hokusai’s Great Wave, British Museum,
2011, pág. 56), Hergé ter-se-á inspirado em A
Grande Onda numa vinheta da obra Os
Charutos do Faraó, quando Tintin e Milou enfrentam uma vaga gigantesca,
celerada, cuja configuração visualmente se assemelha à da xilogravura de
Hokusai.
Além
de Timothy Clark, curador das colecções japonesas do Museu Britânico, a proximidade
entre os desenhos de Hergé e de Hokusai é sustentada, sem grandes bases ou
argumentos, por Jacques J. F. Commandeur, coleccionador de xilogravuras
nipónicas, cujo importante acervo é acessível em formato digital, num
interessante site em que é possível
obter uma georreferenciação de várias obras de Hokusai (mas não de A Grande Onda, note-se).
Também na retrospectiva da obra de
Hergé que teve lugar no Grand Palais, em Paris, de Setembro de 2016 a Janeiro
de 2017, é salientada a semelhança entre a vinheta da prancha 12 de Os Charutos do Faraó e a estampa de
Hokusai, dizendo-se, algo cautelosamente, que «se pode comparar» uma e outra (cf.
o catálogo da exposição Hergé,
L’exposition en papier, Éditions Moulinsart-Réunion des musées nationaux,
2016, pág. 10).
A
referida vinheta das aventuras de Tintin, com as dimensões de 6.3 x 9.5, surge
na edição de 1955 de Os Charutos do Faraó
(Les Cigares du Pharaon), a qual,
por sua vez, se integra na republicação de todos os álbuns de Tintin (à
excepção de Tintin no País dos Sovietes)
iniciada pela Casterman em 1942 com A
Estrela Misteriosa (cf., por ex., Stéphane Steeman, Tout Hergé. Itinéraire d’un collectionneur chanceux, 2ª ed. revista
e corrigida, Casterman, 1991, pp. 29-30).
Curiosamente,
das aventuras anteriores à guerra, Os
Charutos do Faraó foi a última a ser republicada, como nota Benoît Peters, um
dos maiores especialistas na obra de Hergé, em Le Monde d’Hergé, 2ª ed., Casterman, 1990, pp. 40-41.
Se
observarmos a edição original de Os Charutos do Faraó,
saída sob a forma de folhetim com o título «Tintin, reporter, en Orient» nas
páginas do Le Petit Vingtième entre 8
de Dezembro de 1932 e 8 de Fevereiro de 1934, nota-se que a imagem de Tintin e
Milou à deriva no Mar Vermelho (publicada no nº 6, edição de 9 de Fevereiro de
1933) não tem um influxo perceptível da xilogravura de Hokusai.
«Tintin, reporter, en Orient», prancha 20
Le Petit Vingtième, nº 6, de 9/2/1933
|
Refira-se,
por curiosidade, que, além de ter sido nessa altura que se iniciou a relação comercial entre Georges Remi e a editora Casterman,
foi nesta aventura de Tintin que viram a
luz três (ou quatro, se contarmos os dois Dupond/Dupont, ou até cinco, se
contarmos com Alan) personagens célebres: o mercador lisboeta Oliveira da
Figueira, o sinistro Roberto Rastapopoulos
e os gémeos detectives Dupond e Dupont
(denominados, na edição original, X 33 e X 33 bis) (cf. Benoît Peters, Hergé. Fils de Tintin, Flammarion, 2002,
pp. 100ss, em esp. pág. 105, o qual segue de muito perto o livro de Pierre
Assouline, Hergé. Biographie, Plon,
1996, pp. 73ss).
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A primeira aparição de Roberto Rastapopoulos
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Dupond e Dupont, os gémeos ou quase
gémeos (d-t) que passarão a surgir em todas as aventuras subsequentes de
Tintin, à excepção de Tintin no Tibete
e Voo 714 para Sydney, terão sido
inspirados no pai e no tio de Hergé,, que eram gémeos ditos «verdadeiros» (homozigóticos),
e, provavelmente, numa fotografia de capa do jornal parisiense Miroir, na sua edição de 2 de Março de
1919, como salienta Michael Farr naquela que é uma das mais completas e
informadas análises da obra de Hergé (cf. Tintin.
Le rêve et la réalité. L’histoire de
la création des aventures de Tintin, Éditions Moulinsart, 2001, pp.
40ss). Para distinguir um do outro, Dupont tem um bigode cujas extremidades apontam ligeiramente para cima, como a base da letra «t», e Dupond possui um bigode mais arredondado, como um «d».
Há quem sustente, pelo contrário, que
os Dupond-t descendem directamente dos inspectores Craig e Fry, detectives que
Jules Verne fez entrar em cena no romance Les
tribulations d’un chinois en Chine (Atribulações
de um Chinês na China, 1879), designados também «Craig-Fry» ou «os dois
inseparáveis» (cf. Jean-Paul Tomasi e Michel Deligne, Tintin chez Jules Verne, Lefrancq, 1998, pp. 43, autores que, de um
modo algo forçado, também encontram semelhanças entre os Dupond-t e os dois
gigantes Arminius e Sigimer, guardas do corpo de segurança pessoal do terrível
professor Schultze, noutro livro de Verne, Cinq
Cent Millions de la Bégum¸ igualmente publicado em 1879; afirmando que a
fonte inspiradora dos Dupond-t foram Alexis e Georges Remi mas também os
detectives Craig e Fry, a quem Jules Verne chamava «dois irmãos siameses», cf.
Jacques Langlois, «Dupont et Dupond et vice versa!», Le Point – Historia, hors-série,
Les personnages de Tintin dans l’Histoire. Les événements de 1930 à 1944 qui
ont inspire l’œuvre d’Hergé, vol. 1, s.d., pp. 28ss).
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Craig e Fry (no canto inferior direito)
Jules Verne, Les tribulations d’un chinois en Chine, 1879, pág. 56
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As
aparições dos Dupond e Dupont nas aventuras Tintin são caracterizadas por um dispositivo
humorístico em que os detectives proferem afirmações redundantes, vazias de
significado (v.g., o célebre «je
dirai même plus»), e a comicidade resulta justamente dessa duplicação visual e
retórica: «deux visages, dont aucun ne fait rire en particulier, font rire
ensemble par leur ressemblance», dizia um autor que Hergé lera quando estudante
(cit. in Le Musée Imaginaire de Tintin,
Casterman, 1980, pp. 41-42). Isolado, actuando a solo, um Dupond (ou Dupont)
não tem graça ou força expressiva, ao contrário do que sucede com o Capitão
Haddock, por exemplo.
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A primeira aparição de Oliveira da Figueira
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Quanto
ao comerciante português, aquele a quem os árabes chamavam
«o-branco-que-vende-tudo» (e um daqueles cuja fisionomia menos se alterará ao
longo das aventuras de Tintin), o nome Oliveira da Figueira surge em Os
Charutos do Faraó mas, mais tarde, e após uma reaparição em Tintin no País do Ouro Negro
(1947), na aventura Carvão no Porão (Coke en
Stock, de 1958), o seu nome será estranha e erroneamente mudado para Oliveira
de Figueira (em O Segredo do Licorne, mas desta feita de forma deliberada, Hergé
converterá o apelido dos Dupond e Dupont em Dupondt). Na página oficial de Tintin o nome surge grafado da forma
original e mais correcta, como Oliveira da Figueira.
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O signo de Kih-Oskh
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Em Tintin. Le rêve et la réalité, Michael Farr analisa também o signo de Kih-Oskh, presente nesta aventura, afirmando que ele, bem como todo o ambiente em que decorre o início da acção de Os Charutos do Faraó, é tributário dos hieróglifos do Antigo Egipto e da influência exercida pela descoberta de Howard Carter, em 1922, do túmulo de Tutankhamon, bem como pela leitura dos trabalhos do egiptólogo belga Jean-François-Désiré Capart (1877-1947).
O
signo do faraó Kish-Osh criado por Hergé é uma versão estilizada de um
hieróglifo egípcio mas, de igual modo, e segundo Michael Farr (na esteira de Frédéric Soumois, Dossier Tintin, Casterman, 1992), uma evocação do
símbolo filosófico chinês do Yin e do Yang, que Hergé, ávido leitor da obra do
psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961),
terá visto na portada de um dos livros deste último. O ponto é interessante na
medida em que, de acordo com algumas interpretações, de duvidoso fundamento
(aqui, por exemplo,
mas também na versão francesa da Wikipedia, aqui),
o Yin e o Yang também emergem em A Grande
Onda de Hokusai.
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A Grande Vaga estilizada, com a suposta presença do símbolo Yin e Yang
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Na
verdade, se, numa entrevista de 1982 a Benoît Peters – e na linha das célebres
conversas com Numa Sadoul, nos anos 70 (Tintin
et moi, Casterman, 1975) –, Hergé
confessa ter um interesse pelo budismo zen e pelo taoísmo, afirma ser esse
interesse recente na sua trajectória intelectual, tendo cinco ou seis anos e
datando da leitura do livro Psicoterapia
oriental e ocidental, de Alan Watts; ao invés, e como também afirma nessa
entrevista, a curiosidade por Jung era mais antiga, a ponto de Hergé ter
consultado um dos seus discípulos, o professor Ricklin, de Zurique, aquando da
elaboração de Tintino no Tibete (cf.
Benoît Peters, Le Monde d’Hergé, 1ª
ed., Casterman, 1983, pp. 11ss). Tudo sugere, pois, que a influência do Yin e
do Yang no signo do faraó Kish-Osh – devendo observar-se que, como nota Michael
Farr, este último está longe do equilíbrio e da serenidade do primeiro – não
tem um significado particular nem é passível de permitir extrapolações sobre
uma hipotética atracção de Hergé pela filosofia oriental, já que na década de
1930, quando o folhetim saído no Le Petit
Vingtième é concebido, essa atracção nem sequer existia.
De
acordo com a leitura de Timothy Clark (ob.
cit., loc. cit.), a chuva que
vemos na imagem de Tintin e Milou perdidos no mar turbulento inspira-se talvez
na obra de outro mestre da xilogravura nipónica, Utagawa Hiroshige
(1797-1858), e há uma nítida influência de Hokusai, patente, desde logo, na
subtil alusão ao Monte Fuji contida numa das vagas do oceano, recortada no
horizonte, sem espuma (a vermelho, na imagem em baixo).
Citando
Clark, o desenho de Hergé «draws brilliantly on a central meaning of Hokusai’s
original – namely that man is dwarfed by the elemental power of the sea. But we
also sense this is a genuine homage; Hergé, through is alter ego Tintin,
graciously acknowledging that he is dwarfed by the wave (Hokusai)».
Trata-se
de uma interpretação possível, ainda que porventura demasiado elaborada.
Na
verdade, nenhum elemento na imagem, na biografia de Hergé ou na sua obra (e, em
particular, em Os Charutos do Faraó,
quer na edição original de 1932-1934, quer na edição colorida de 1955) permitem
sustentar que Hergé pretendeu figurar Hokusai como uma onda gigante, prestando-lhe
tributo de uma forma tão metafórica e velada, quase críptica.
Por
outro lado, e algo estranhamente, a observação da imagem invertida – ou seja,
mais próxima da cenografia original organizada por Hokusai – pode apresentar
certa afinidade visual mas, do mesmo passo, também parece afastar a vinheta de
Tintin da gravura do mestre japonês, diminuindo em boa medida a similitude
entre ambas.
As
ondas dessa vinheta de Tintin, onde soará um eco da estampa de Hokusai, não
são, de resto, diferentes do modo como Hergé desenhará as vagas do mar noutras
aventuras do seu herói (por exemplo, na prancha 47 de O Caranguejo das Tenazes de Ouro, na edição colorida de 1943). Ou
seja, desvanece-se em parte a ideia de que aquela vinheta de Os Charutos do Faraó se singulariza no
contexto da obra de Hergé como uma representação dos oceanos que pretende
homenagear a opus magnum de Katshushika Hokuasi.
Note-se
ainda que, sendo o criador de Tintin et
l’Alph-Art um coleccionador apaixonado pelo mundo da arte e seus meandros,
as gravuras japonesas não são apontadas como uma influência no seu trabalho,
que parece ter sido marcado, acima de tudo, pela pintura do Norte da Europa (o
nome de Hans Holbein, o Jovem, é recorrentemente citado), pela arte egípcia,
pelos neoclássicos franceses, pelos pioneiros da banda desenhada (Geo McManus,
Benjamin Rabier e sobretudo Alain Saint-Ogan) e, enfim, pelos surrealistas,
como sublinha o crítico de arte Pierre Stercx, «Les maîtres qui ont inspiré le
maître», Geo, hors-série – Les arts et
les civilisations vus par Tintin, 2015, pp. 42ss.
Em
1965, tendo-se encontrado na galeria Carrefour, de Marcel Stal (antigo militar
e amigo do irmão de Hergé, Paul Remi), situada nas proximidades do estúdio de
Hergé, este solicitou a Pierre Stercx, então
professor de História de Arte no Institut Saint-Luc, que lhe desse aulas
particulares daquela disciplina, os quais tiveram lugar a partir dessa altura,
tendo Stercx desempenhado um papel essencial na formação do gosto de Georges
Remi, que ao longo dos anos reuniu uma colecção de pintura contemporânea em que
figuravam nomes como Jean-Pierre Raynaud, Tom Wesselman ou o ítalo-argentino Lucio
Fontana, a par de uma colecção de máscaras e amuletos africanos, provenientes
do Mali (Bambaras), da Costa do Marfim (Baoulés, Gouros) e da Nigéria (Ibos), a
que se juntavam algumas, poucas, peças de arte egípcia (uma cabeça de madeira
dourada da III dinastia) e chinesa (bronzes e porcelanas, com destaque para
duas peças de cerâmica da dinastia Song, 926-1279). No entanto, além da
atracção pela arte contemporânea e pelas vanguardas ser o traço dominante da
sua colecção, esta revestia-se de grande eclectismo, integrando obras do
minimalista americano Kenneth Noland ou de Alexander Calder (em 1971, Hergé
hesitou, mas desistiu, na compra de uma tela de Rothko, já na altura muito
valorizada). Na célebre entrevista a Numa Sadoul será lapidar: «Je
constate que [mês goûts] vont de plus en
plus vers de géométrique ou, plus exactement, vers ce qui est construit, bâti,
structuré: Herbin, Vasarely, Dewasne, Lipsyc en France, Stella, Noland, chez
les Américains».
Entre
os artistas que mais admirava encontram-se, além dos já citados, Joan Miró, o
francês de origem russa Serge Poliakoff e Roy Lichtenstein, tendo este último
nome (de que Hergé tinha quatro litografias da catedral de Ruão, à la Monet), a par de outros consagrados
da Pop Art, como Andy Warhol, um papel importante na revisitação da obra de
Hokusai no Ocidente. Em 1971, Hergé, fascinado pela obra de Warhol, visitou a
The Factory e Warhol, por sua vez, pintou em 1977 o retrato do criador de
Tintin.
Nos
anos 1960, como se sabe, Hergé terá uma efémera incursão pela pintura,
recebendo aulas de um conceituado pintor abstracto belga, Louis Van Lint (1909-1986).
Nunca exporá ao público as suas obras (cerca de trinta, pintadas entre 1960 e
1964), nas quais são patentes a marca do surrealismo – e de Miró, em particular
– mas não da arte oriental e, em particular, japonesa (cf. Claude Pommereau,
«Itinéraire d’un collectionneur éclairé», Beaux
Arts – hors-série – Hergé. Les
secrets du créateur de Tintin, 2016, pp. 40ss; sobre a colecção artística
de Hergé, cf. ainda «Visite privée d’un musée intime», Geo, hors-série – Les arts et les civilisations vus par Tintin,
2015, pp. 122ss). Saliente-se, para mais, que este impulso artístico de Hergé
só tem lugar de forma mais nítida a partir dos anos 60, ou seja, é posterior à
edição de 1955 de Os Charutos do Faraó,
pelo que, a ter existido já aí uma referência velada a Hokusai, ela
dificilmente pode ter surgido por via da Pop Art norte-americana e dos seus
cultores; é mais plausível a hipótese de Hergé estar familiarizado com o
universo nipónico dos «mundos flutuantes» através da profunda influência que as
estampas japonesas tiveram na cultura francófona desde finais do século XIX,
por intermédio dos impressionistas e de autores como Edmond de Goncourt.
Em
face de tudo isto, não será descabido colocar a hipótese de, a ter existido uma
inspiração de Hokusai, ela não resultar directa e linearmente de A Grande Onda. De facto, e num certo
sentido, a remissão para a obra de Hokusai parece ser apoiada de forma mais
visível noutros trabalhos do mestre, designadamente O Monte Fuji sobre as ondas (Kaijo
no Fuji), gravura integrada de 1835 na série Cem
Vistas do Monte Fuji (Fugaku Hyakkei),
vol. 2, fl. 8.
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Katshushika Hokusai, O Monte Fuji sobre as ondas (Kaijo no Fuji), 1835
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Poderá
ainda colocar-se a hipótese de o desenho de Hergé ser uma fusão ou mescla de
vários trabalhos de Hokusai, especialmente das duas gravuras atrás referidas, A Grande Onda mas também, ao menos em
parte, de O Monte Fuji sobre as ondas.
Seja como for, é inquestionável que em Os Charutos do Faraó (como, de resto, em
muitas aventuras de Tintin), abundam as alusões e as referências externas, os
jogos à clef, os trocadilhos e os
divertimentos mais ou menos explícitos, como sucede, por exemplo, com a colocação
de um álbum de Tintin numa cena do deserto, debaixo da tenda do xeque Salaam
Aleikum, com a alusão a actores de cinema célebres (Rudolfo Valentino na versão de 1934, ou Gary Cooper/Kirk Douglas na de 1955) ou com a presença de outro génio da banda desenhada, amigo e
colaborador de Hergé, igualmente apaixonado pela egiptologia, Edgar Pierre Jacobs (1904-1987), que surge mumificado
sob o nome E. P. Jacobini.
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Edição de 1934, com o álbum Tintin en Amérique
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Edição de 1955, com o álbum Objectif Lune
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Edição de 1934, com alusão a Rudolfo Valentino
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Edição de 1934, com alusão a Gary Cooper ou Kirk Douglas
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Edgar Pierre Jacobs, figurado como E. P. Jacobini
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Estes
elementos podem tornar plausível a hipótese de A Grande Onda – ou, pelo menos, uma versão compósita da mesma,
agregando outros trabalhos de Hokusai – estar presente na edição de 1955 de Os Charutos do Faraó.
Em
Portugal, Os Charutos do Faraó foram
primeiramente publicados na revista infanto-juvenil O Papagaio, do nº 115, de 24 de Junho de 1937, ao nº 161, de 12 de
Maio de 1938, e, depois, na revista Tintin,
do nº 11, 5º ano, de 5 de Agosto de 1972, ao nº 41, do 5º ano, de 3 de Março de
1973.
Entretanto,
circularam entre nós os álbuns desta aventura em edições brasileiras da
Flamboyant (São Paulo, 1967) e da Record (Rio de Janeiro, 1970).
A
primeira edição portuguesa deste álbum foi feita apenas em 1994 com a chancela
da Difusão Verbo, Lisboa, de acordo com a informação disponibilizada aqui.
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