terça-feira, 30 de junho de 2015

De profundis.

 
 
 
 
         Antes de discursarmos nas Nações Unidas, vamos para uma salinha onde aguarda quem é o orador seguinte (…). Lembro-me de o embaixador me ter perguntado: «Senhor primeiro-ministro, posso ter o atrevimento de lhe perguntar se está nervoso?» Eu respondi-lhe: «Pouco.» E simpaticamente disse-me: «Não se impressione, todos os líderes do mundo ficam.» E contou-me que o Presidente Kennedy tinha o truque de segurar as mãos atrás das costas para disfarçar alguma agitação.
         Quando o presidente da Assembleia Geral anuncia o orador seguinte, abrem-nos a porta, entramos para a sala, sentamo-nos numa cadeira e então é-nos dada a palavra. Devo dizer a todos os que leiam estas palavras que é, na verdade, uma sensação especial, a de estar ali a falar para os representantes do mundo todo em nome da nossa Pátria.  
 
(Pedro Santana Lopes, «Momentos inolvidáveis», Correio da Manhã, de 28-06-2015)
 
 
 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Amaram-se na Selva, de Alexandre Malheiro.

 
 
 
 
 
– Já vejo onde quere chegar, Amélia. Não esqueça, porém, que, nós os portugueses, em contacto, durante séculos, com as mais variadas raças, tivemos cruzamentos de que a nossa gente ainda hoje se ressente. Eu próprio ignoro, e pouco isso me preocupa, se nas minhas veias correrá certa percentagem de sangue árabe, tão longo foi o domínio muçulmano na península ibérica.
– Tem razão, meu amigo. Mas Você deverá lembrar-se de que eu, embora branca, como qualquer europeia, não passo também de uma autêntica mestiça (ou mulata, como Vocês dizem), e bastante próxima dos meus antepassados africanos para que, por um fenómeno ancestral, admitido pelas ciências médicas, bem suas conhecidas, eu possa dar à luz um filho de côr. Não seria isso, para si, um sério motivo de desgosto?
– Nunca pensei em semelhante hipótese que, só como caso verdadeiramente esporádico, se poderia vir a dar – disse José Marques.
– Admita, porém, que esse estranho fenómeno se produzia comigo? – disse Amélia. – Eu, por mim, morreria de desgosto; e Você não poderia ficar muito satisfeito.
         – Era então esse o motivo da sua indecisão em aceder ao meu pedido?
         – Evidentemente. E acha que não tem fundamento bastante o meu retraimento, ou antes o meu escrúpulo em fazer de si meu marido quem, como já lhe disse e repito, muito gosto, sabendo que mais tarde o viria a presentear com um filho preto?
 
         (Alexandre Malheiro, Amaram-se na Selva, Porto, Domingos Barreira Editor, s.d., pp. 184-185, itálicos no original)

O meu herói Eusébio.

 
 
Fonte: http://tertuliabenfiquista.blogs.sapo.pt/1224138.html
 
Como calculam, tendo nascido em 1973 não tive a sorte de ver Eusébio jogar num estádio. Mas, tal como eu, muitos portugueses que nunca viram o «Pantera Negra» receberam a notícia da sua morte com profunda tristeza. As reacções à sua morte ultrapassaram fronteiras e vieram de todos os lados. A imprensa britânica foi particularmente enfática lembrando sempre aquele que foi o melhor jogador do Campeonato de 1966. Entre nós a morte de Eusébio foi seguida de um raro momento de convergência entre todos os clubes e adeptos. A explicação é óbvia: Eusébio foi um dos melhores jogadores do mundo e de sempre. Esta convergência também abrangeu a Assembleia da República que decidiu transladar os restos mortais de Eusébio para o Panteão Nacional.
Eusébio foi um craque num tempo em que o futebol não tinha ainda atingido o estatuto de «fenómeno» mundial. Assim Eusébio foi um pioneiro tal como outros grandes jogadores como Alfredo Di Stéfano ou Ferenc Puskás. E aqui estamos perante uma encruzilhada fundamental: como manter viva a memória de grandes jogadores pré-holofotes? Hoje em dia acompanhamos os jogos e a vida dos jogadores de forma instantânea e temos a sorte de poder ver todos os jogos a nível de clube e selecção na televisão. Sabemos tudo sobre um jogador cuja vida é constantemente «vigiada». Sabemos até demais. E assim como transmitir a um miúdo que todos os dias «acompanha» Messi e Cristiano o que foram estes grandes jogadores?

Fonte: http://www.dw.com/overlay_media/eus%C3%A9bio-o-primeiro-rei-africano-do-futebol/g-17343296
 
 
Para além do papel crucial das federações nacionais e dos clubes destes craques eu diria que o papel fundamental cabe a todos os que gostam de futebol. Por exemplo, eu diria que não se consegue explicar o que é a identidade do Real Madrid sem se ver Di Stéfano. E como transmitir aos mais novos o que foi o calibre de Eusébio? Há muitos momentos que poderíamos destacar mas penso que a escolha acabaria por recair sobre aquele jogo entre Portugal e a Coreia do Norte. Porque foi mais do que um jogo, foi um hino à luta, à resistência e ao não baixar os braços. Eusébio foi um super-herói.
 
 
Fonte: http://www.dw.com/overlay_media/eus%C3%A9bio-o-primeiro-rei-africano-do-futebol/g-17343296
 
Bem sei que categorizar Eusébio como um herói ou um «artista» não é totalmente consensual. Quando morreu tivemos quem destacasse a sua «pouca cultura». Confesso que não tenho paciência para o argumento pseudointelectual que se resume a «mas é só um jogador de futebol» e à clivagem entre o que é «intelectual» (e é claro «superior») e o desporto como meramente «físico» e é claro muito «simples».
        Eu argumentaria que «ler» o futebol assim é redutor e superficial. Ver hoje em dia, por exemplo, uma final da Liga dos Campeões com toda a preparação física, mental e sobretudo táctica é impressionante e inesquecível.
 
 

Eusébio, tal como outros craques, elevou o futebol a um estado de perfeição e os seus jogos e golos são verdadeiras obras de arte ou como diria Camões «obras valerosas». E assim se foi «da lei da Morte libertando» e ultrapassou fronteiras. Deixou de ser nosso e tornou-se um português do mundo.

Lembro-me quando perguntei ao meu avô o porquê da sua admiração do Eusébio. A sua resposta foi imediata: «Eusébio só nos deu alegrias mesmo quando chorou e nós chorámos com ele. E em tempos difíceis e sombrios fez-me sorrir. É um dos meus heróis.»

E foi assim que a «minha» descoberta do Eusébio começou.


Raquel Vaz-Pinto
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

domingo, 28 de junho de 2015

Lost in the stars.

 
 



         A Mariana é uma velha amiga do Porto, tão velha como a Foz onde mora. Durante muitos anos, a Mariana quis muito ser mãe. Tudo fez, virou mundo, correu planetas distantes. Ela e o marido, o Luís. Até ao dia em que o Miguel lhes apareceu portas adentro. Com o mais puro amor, a Mariana resgatou o Miguel de um destino marcado nas estrelas. Depois, lá fomos baptizá-lo a Sabrosa, à quinta dos pais da Mariana. O pai da Mariana morreu há uns anos. A mãe da Mariana morreu há uns dias. Assassinada a sangue frio numa praia da Tunísia.
 
Um beijo, Mariana, do 
 
António
 
 
 
 

sábado, 27 de junho de 2015

Salada russa.

 









 
 
A Helena, sempre amiga, mandou-me a notícia desta horrorosa maravilha. Uma herança do tempo dos czares, faustosamente recuperada nos anos 1950, que se prolonga e aprofunda nos tempos actuais de novo-riquismo oligárquico e putinesco. Não é a culinária russa tradicional, asseveram. Em todo o caso, estas horríveis decorações espelham uma certa dimensão da alma russa, que oscila entre o culto do sublime e o kitsch mais ridículo, ou repelente. É o que acontece a estes pratos, que só de os ver nos tiram o apetite. É preciso ter passado muita fome para apresentar assim a comida. Talvez esta não seja a verdadeira Rússia, mas que isto é um verdadeiro crime e castigo, ai isso é. No Ocidente também há disto? Sem dúvida. Por isso dizemos, uma vez mais: o mundo é um lugar estranho.
 
 
 

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Álbum de caça.

 
 























Um livro que li há anos, Safari, de Bartle Bull, diz que o primeiro safari aconteceu em 1836, quando William Cornwallis Harris atravessou o Transvaal em busca de presas. Não sei se é verdade. A matança deve ter começado antes. Escreve Bull, nostálgico, padecendo do mal d’Afrique:
«The game and the habitat waiting in Africa were the richest in the world. Between Cape Town and Cairo was a landscape so vast and varied, so complex in its magnificence, that it made the moors of Scotland and the forests of Germany into tame and modest gardens.»
Há dias, comprei este álbum de fotografias de caça. Aquilo que hoje nos parece bárbaro foi outrora um divertimento de seres humanos. So, do you think you are human? – pergunta Fernández-Armesto. O álbum, disse-me o vendedor, pertencia a uma senhora inglesa que, ao que parece, ainda vive no Areeiro. Da vida e da morte dos bichos, em poses triunfais. Animais mortos exibidos como troféus – faz confusão, mas aconteceu e ainda acontece. Um dia, a propósito de uma fotografia controversa do rei Juan Carlos e de um elefante, o João fez-me uma pergunta retórica: «Matar um elefante?». Elefantes, hipopótamos, leões, zebras, tudo serve para saciar o coração das trevas, dissimulado sob as vestes da «civilização». A caça furtiva e clandestina, desigual e feroz, continua em África e noutros lugares do mundo. O mundo é um lugar estranho.

 

 


quinta-feira, 25 de junho de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 88 - WYNTON MARSALIS

 
 
 
…e depois houve o incidente entre Wynton Marsalis e Miles Davis no Festival Internacional de Jazz Vancouver em 1986, uma ocorrência irrelevante, incongruente e momentânea, que se tornou histórica não pelo que nela sucedeu mas pelo que simbolizou. Talvez tenha sido comparável no jazz à relampejante e hostil troca de palavras entre Wittgenstein e Karl Popper, em que aquele não chegou a dar com um atiçador de lareira na cabeça deste.
O rastilho do que deflagrou nesse dia, nesse palco, fora aceso anos antes, quando um moço de 19 anos irrompeu na ribalta com assombro e desassombro, de imediato inflamando uma controvérsia como há muito não acontecia e clivando as placas tectónicas do jazz. Foi isto em 1982, um ano depois de Ronald Reagan ser eleito, marco que os antagonistas de Wynton Marsalis gostam de evocar. Para lembrar comoção equiparável seria preciso retroceder às catacumbas do Minton’s Playhouse, quando nos idos de 40 os boppers rugiram debaixo do som das bombas do Eixo, antes de estarrecerem o mundo à luz do dia; ou à aparição de Ornette Coleman no Five Spot Café em 1959, anunciando alvíssaras por um novo jazz.
Acrescentando à inevitável temeridade da juventude, Wynton Marsalis supunha-se infuso de um suplemento de patronímia por ser nativo da cidade santa do jazz de Nova Orleães, além de ser o primogénito do legendário professor de piano Ellis Marsalis, cujo prestígio, antes da fama do filho, infelizmente não desbordava as fronteiras municipais. O debutante trompetista não exibiu porém esta herança como um fardo ou uma regalia, mas antes como uma responsabilidade histórica da qual devia estar à altura, o que era reiterado num politizado apreço por fatos completos e gravatas de seda italiana, em contraste com as indumentárias espalhafatosas dos artistas pop e rock ou com o estilo no limiar do andrajoso dos contestatários.
O que trazia Wynton Marsalis de novo? Nada, precisamente. Ou seja, em vez da habitual e protocolar ruptura inovadora, o que ele propunha era a restauração da primazia absoluta do swing e do mais lídimo classicismo melódico, rítmico e harmónico. Novidade era, pois, que ele exprimisse o jazz não como crítica sistemática (e sistémica, que também fica bonito) mas como consolo e exaltação, uma perspectiva que se perdera nas circunvoluções da década de 70. Entendido quase como provocação ao anti-status, acusado de se haver regularizado como o novo status, era o facto de Marsalis operar esta regeneração com os argumentos do modernismo: dar um, dois, ou três passos atrás, para, de maneira muito leninística, proceder bastantes mais em frente.
Do ponto de vista da técnica instrumental, do conhecimento musical e da impregnação da cultura jazzística Wyton Marsalis era um prodígio de virtuosismo, nivelável com Mozart (assim exageravam os seus prosélitos). No encadeado de frases de um solo, o seu trompete sincopava como o de Louis Armstrong, estugava em acelerações à maneira de Dizzy, convocava os preceitos melódicos dos blues e do swing e era capaz de entre dois compassos transitar de um padrão harmónico para outro, como se ouvira Ornette Coleman fazer – tudo isto demorando mais tempo aqui a descrever do que ele a tocar.
Uma unânime ovação declarou Wynton Marsalis como o delfim da linhagem dinástica do trompete (King Oliver – Louis Armstrong – Roy Eldridge – Dizzy Gillespie – Miles Davis – e o aspirante Eric Dolphy) pronto a ser entronizado. Com ele o jazz, que alguns davam como moribundo, entraria, literalmente, na sua era renascentista. A Marsalis não lhe faltava, até, bardo e escudeiro na pessoa do sulfuroso crítico Stanley Crouch que por ele pintou a manta. Em 1986 haveria de incendiar a cidadela do jazz com o libelo “On the Corner: the Sellout of Miles Davis” que em resumo, invectivava o Imperador de ofender a integridade do swing ao ter adoptado a batida quadrada do funk, denunciando-o como corrupto e traidor ao jazz. Miles retorquiu com o azedume e a sobranceria que lhe eram conhecidos.
Estava-se então nisto aquando o Festival de Vancouver em Junho de 1986. Perante uma plateia entusiástica e repleta Miles Davis desvendava os temas do seu próximo disco “Tutu”. Eis senão quando Wynton Marsalis sobe impromptu ao palco, desafiando-o para uma jam session. Várias testemunhos têm desmentido que Miles lhe terá vituperado um “fuck off”, sequer que tenha tentado socá-lo. O certo é que a banda interrompeu o concerto e Wynton despachou, sozinho, um punhado de frases sem resposta, antes de retirar.
O disco “J Mood”, datado desse ano, é exemplar da vitalidade e da efervescência que Marsalis devolveu ao jazz. Regressar à tradição demonstrava-se como prosseguir um caminho interrompido por desvios que redundaram em impasses, havendo nele ainda muito que progredir.
Mas, ao ferir dois alvos com um tiro, o jazz de fusão e o free jazz, Marsalis levantou veemente relutância, sobretudo nos meios em que o progressismo era entendido como fruto de uma determinação história. Por outras palavras: foi denunciado como impostor e reaccionário e pouca ilibação lhe deu o reclamado vínculo a uma negritude originária, segundo a qual os vanguardismos musicais que contagiavam o jazz louvavam-se nas experiências musicais contemporâneas europeias, preterindo as raízes afro-americanas em que se fundava.
Assim como não há sol sem lua, no lado escuro do movimento desencadeado por Wynton Marsalis o que parecia virtude transmutava-se em deformidade. Em vez de se formalizar consagrando o seu estatuto no showbizz, como afortunadamente tinha acontecido com Herbie Hancock ou Quincy Jones, Marsalis institucionalizou-se com alguma petulância nas altas esferas da cultura formal, imolando o jazz na Academia e na programação do Lincoln Center, a sala de concertos de música erudita (à falta de melhor expressão) frequentada pelas classes altas e sofisticadas. Quer dizer: com tanta vontade de restabelecer em vez de romper, de se fazer respeitável em vez de se dar ao respeito, Wynton Marsalis havia embalsamado o jazz, condenando-o a reproduzir-se e a repisar fórmulas, a trivializar-se até à paródia ou à inanidade.
 
 
Live at the Village Vanguard
1999
Columbia – 69876
Wyton Marsalis (trompete); Wycliffe Gordon (trombone); Wessell Anderson (saxofone alto), Todd Williams (clarinete, saxophone tenor e soprano), Victor Goines (clarinete, saxophone tenor e soprano), Marcus Roberts (piano), Eric Reed (piano), Reginald Veal (contrabaixo), Ben Wolfe (contrabaixo), Herlin Riley (bateria).
 
No ocaso do século passado seria ainda impossível dar razão a estas reprovações ouvindo a edição dos seus concertos ao vivo no Village Vanguard. Se o coleccionador dispuser de tempo e vontade para se envolver demoradamente com Wynton Marsalis e se não for demasiado materialista, isto é, se não relutar possuir música em formato intangível e informático, então encontrará convertido em ficheiro pelo preço de um singelo disco, os 7 CDs resultantes desses recitais, decorridos entre 1990 e 1994 – uma irresistível pechincha!
As sessões decorreram com casa lotada e entusiástica e os septetos liderados pelo trompetista insuflaram-se de tal excitação, retribuindo com a inventividade das jam sessions doutros tempos. Logo de abertura, depois de uma promissora apresentação, dizendo aos espectadores que peçam café para se haverem com a duração do recital, Wynton Marsalis ataca o tema “Cherokee”. Isto deve ser ouvido como um manifesto, que numa cápsula de 7 minutos inscreve toda a história estilística do jazz, não como uma súmula mas como um devir. As 6 horas de música seguintes não desmerecem este impulso. “Foram os melhores tempos da minha vida” confessaria o trompetista.
O apogeu atingido em “Live at the Village Vanguard”, veio a saber-se já neste século, foi provavelmente um canto do cisne. Acomodado, convencional e cerimonioso, nunca mais Wynton Marsalis revelaria igual pujança. Pelo menos num ponto os cépticos são indesmentíveis: afinal, até hoje nenhuma das suas composições teve estofo para ascender ao estatuto de standard.
 
 
 
José Navarro de Andrade
 

terça-feira, 23 de junho de 2015

Vida Política e Morte de Humberto Delgado, pelo General Protero.

 
 
 
 
Não esqueça a Fundação que Salazar nunca quis ser Ministro,  e se o foi, isso se deve ao Exército Português e a Deus, que quiseram forçosamente que Salazar desse o Bem da Nação, salvando-a da falência em que se achava.


Nobre povo, nação valente.







         Em 1989, no caso Texas vs. Johnson, o Supremo Tribunal dos EUA pronunciou-se pela inconstitucionalidade das leis federais e estaduais que proibiam a «dessacralização» (flag desecration) da bandeira americana. Em resposta, o Congresso aprovou uma emenda ao Flag Protection Act que criminalizava condutas como mutilar ou rasgar a bandeira, queimá-la, espezinhá-la, deitá-la ao chão. No ano seguinte, no caso United States v. Eichman, o Supremo considerou inconstitucional essa legislação do Congresso. Grupos conservadores, como a American Legion ou a Citizens Flag Alliance, apelaram ao Presidente George Bush e este, por sua vez, instou a que fosse aprovada uma emenda à Constituição federal para impedir ultrajes à bandeira, uma controvérsia que sempre marcou a vida pública norte-americana. Em meados do século XX, o Supremo teve de lidar com uma lei que ordenava a saudação à bandeira nas escolas públicas, um gesto que algumas Testemunhas de Jeová se recusavam a fazer. No caso Gobitis, de 1940, o Supremo acabaria por entender que essa recusa era legítima, à luz da protecção constitucional da liberdade religiosa. Além dos flag salute cases, os tribunais dos EUA foram ainda confrontados, sobretudo aquando dos protestos contra a guerra no Vietname, com os flag burning cases, em que se discutia se era admissível queimar a bandeira em público.
         Não se pense que estas controvérsias são exclusivo de um país que faz do patriotismo uma «religião civil» e do culto à bandeira o traço identitário de uma nação em busca de si própria. Na Alemanha, em 1990, o Tribunal Constitucional teve de decidir o caso de um editor punido criminalmente por ter publicado um livro antimilitarista que, na contracapa, continha uma «colagem» de duas fotografias: numa, mostrava-se uma cerimónia castrense em que se exibia a bandeira alemã; noutra, um homem a urinar na rua. Mais tarde, o mesmo tribunal teria de pronunciar-se num caso em que uma publicação satirizava o hino nacional.
         Este livro de Nuno Severiano Teixeira não aborda estas questões, nem era suposto fazê-lo. Trata-se de uma obra centrada nos símbolos nacionais portugueses, com um propósito de divulgação. Como síntese da história política da bandeira e do hino nacionais, o livro cumpre exemplarmente a sua missão, fornecendo ao leitor uma apresentação esclarecida, informada e sobretudo muito informativa sobre os nossos símbolos. Trata-se, aliás, de um domínio que o autor já explorara, num ensaio publicado na obra A Memória da Nação, editada em 1991 sob coordenação de Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (curiosamente, Nuno Severiano Teixeira não assinala este seu texto na bibliografia final). Na linha de trabalhos iniciados por João Medina, e posteriormente desenvolvidos noutras direcções por José Manuel Sobral, Luís Reis Torgal, Fernando Catroga, Rui Ramos, António Pedro Vicente ou Sérgio Campos Matos, este estudo recolhe ainda o influxo da literatura estrangeira que mais detidamente se tem debruçado sobre a «invenção da tradição» (Hobsbawn) ou sobre as «comunidades imaginadas» (Anderson), sem descurar os contributos de Pierre Nora em torno dos «lugares da memória» ou de Anthony Smith acerca da identidade nacional. Como é dada prevalência à história política, outras dimensões são relegadas para segundo plano, nomeadamente o aprofundamento da ligação dos símbolos à «memória colectiva» (Halbwachs) ou à «memória social» (Fentress e Wickham), e, se quisermos, ao modo «como as sociedades recordam», para usar o título de um conhecido livro de Paul Connerton. De igual modo, os aspectos jurídico-institucionais não têm lugar de relevo, ponto que talvez devesse ter merecido mais atenção, nomeadamente se tivermos em conta que existe uma regulamentação específica sobre a bandeira – o Decreto-Lei nº 150/87, de 30 de Março – e que a Constituição portuguesa é, provavelmente, a única do mundo a proceder a uma recepção fornal da simbologia nacional preexistente, com referência expressa à sua origem. Mais ainda: não é frequente existir, nos textos constitucionais do mundo, uma «explicação» do sentido dos símbolos nacionais, tal como a que ocorre, desde 1989, no artigo 11º, nº 1, da Constituição, onde se diz que a bandeira é «símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal».


 
         Do ponto de vista da história política, o livro descreve de forma extremamente clara e rigorosa, sem arroubos patrioteiros nem iconoclastias descabidas, o processo da consagração da bandeira verde rubra nos alvores da República, nomeadamente a querela entre os partidários desse cromatismo, como Teófilo Braga, e os defensores da manutenção da bandeira azul e branca, como Guerra Junqueiro. Depois, assinalam-se diversos episódios que têm marcado a relação dos portugueses com os seus símbolos, com destaque para a exaltação verificada aquando do Euro 2004 e alguns «casos» mais problemáticos, que deram lugar a processos judiciais: quando João Abel Manta usou o escudo da bandeira como sátira ao nacional-cançonetismo, quando o actor João Grosso reinterpretou A Portuguesa em versão rock ou, mais recentemente, quando Élsio Menau, um estudante de artes plásticas da Universidade do Algarve, apresentou uma instalação intitulada Portugal na Forca, o que lhe valeu 17 valores na sua nota de final de curso e a instauração de um processo-crime (que culminaria na sua absolvição). De caminho, alude-se à proposta de Alçada Baptista, feita em 1997, para que a letra do hino perdesse o seu carácter belicista, a qual seria, de certo modo, secundada por João Medina (que propôs a adopção da Ode à Alegria) e do ex-ministro socialista Paulo Pedroso (que apelou a um aggiornamento do hino, por ocasião do centenário da República). Refere-se ainda a decisão tomada por Santana Lopes em 2004, no último dia do seu mandato como presidente da CML, de instalar uma colossal bandeira nacional, com 240 metros quadrados, no cimo do Parque Eduardo VII, ou o incidente com o hastear da bandeira ao avesso, na cerimónia comemorativa do 5 de Outubro realizada em 2012 nos Paços do Concelho, o que obrigou a um pedido público de desculpas por parte do então presidente da edilidade lisboeta, António Costa. Menciona-se também o gesto simbólico do general Rocha Vieira, ao receber e levar ao peito a bandeira aquando da transferência de soberania de Macau para a China, em 1999, e as acções subversivas do grupo «31 da Armada», que hasteou a bandeira monárquica nos Paços do Concelho, em Lisboa, em Agosto de 2009. Para além da presença da bandeira nas Olimpíadas, transportada pelos atletas vencedores nos seus momentos triunfais, refere-se o uso de um pin verde rubro na lapela do casaco dos membros do actual Governo. A este propósito, o autor coloca uma hipótese pouco plausível: segundo ele, ao não ter distribuído pins idênticos por todos os cidadãos da República, poderá estar a ocorrer uma «apropriação pelo Governo de um símbolo que é de todos os Portugueses».  


 
     

    Nesta resenha dos «casos» suscitados pelos símbolos nacionais no período democrático, seria interessante recordar a acusação feita a Mário Soares, no decurso da campanha presidencial de 1986, de que teria pisado a bandeira nacional aquando da visita de Marcelo Caetano a Londres em 1973, o que motivou de imediato a apresentação de uma queixa-crime de Soares contra a jovem estudante de Direito que o acusara de ultraje à bandeira. Doutro alcance, bem mais profundo (e, por isso, que teria justificado uma referência neste livro), foi a «guerra das bandeiras» que opôs as autoridades da República aos órgãos regionais, levando à aprovação, na revisão constitucional de 1989, da proposta do PCP para sublinhar, como atrás se disse, o sentido e o alcance dos símbolos nacionais.   
         Como o autor não adopta – nem era suposto que o fizesse – uma perspectiva comparativa, focando-se em exclusivo nos símbolos portugueses, o livro não aborda polémicas algo semelhantes, mas bastante mais intensas, que têm ocorrido noutros lugares, em especial em Estados regionalizados como Espanha. De igual modo, o contributo dos símbolos para a encenação e projecção do poder e para os rituais e liturgias do patriotismo não é especialmente assinalado, sobretudo num domínio caro ao autor, o das Forças Armadas, em que existem detalhados regulamentos relativos ao uso e honras devidas à bandeira e ao hino nacionais. Seria ainda importante realçar, até porque a matéria já foi objecto de decisões judiciais, a «apropriação» dos símbolos, ou de elementos deles constantes, pela publicidade comercial, nomeadamente a recriação de emblemas como a esfera armilar por algumas empresas cervejeiras, o que talvez suscite problemas face ao disposto no Código da Publicidade, que proíbe expressamente a associação da simbologia nacional à venda de bebidas alcoólicas. Seria interessante aludir também ao curioso episódio das bandeiras made in China que representavam, de forma errónea e adulterada, a iconografia inscrita nas quinas dos castelos. E, num tempo de fluxos migratórios e diversidade cultural, seria interessante analisar até que ponto a bandeira portuguesa convive com símbolos nacionais de outras comunidades radicadas no país, uma questão que, por exemplo, já mereceu intervenção da Corte costituzionale italiana. Mais pacífica e harmoniosa tem sido o convívio com os símbolos da União Europeia, possivelmente porque estes, aos olhos do cidadão comum, não se revestem de verdadeiro significado simbólico e, como tal, não suscitam frémitos identitários nem paixões de espécie alguma, quer nacionalistas, quer europeístas. Finalmente, seria interessante proceder à ligação entre os símbolos nacionais e outros tópicos do imaginário republicano e da sua iconografia, como os bustos da República (estudados por Antonio Pedro Vicente), figuras como o Zé-Povinho (analisado por João Medina), a vivência do tempo e os calendários do regime nascido em 1910, celebrações cívicas como a Festa da Árvore, o culto dos mortos da Grande Guerra e, nos nossos dias, as homenagens aos caídos nas guerras ultramarinas. Neste contexto, importaria assinalar a penetração, que o Estado Novo consolidou, do cromatismo verde rubro noutros elementos de aparato do poder, como a imagética das ordens honoríficas, o pavilhão e o estandarte presidenciais ou, mais recentemente, a bandeira da Assembleia da República.
         Enquanto obra de síntese sobre os símbolos nacionais, orientada para o grande público, este livro tem uma qualidade invulgar. Pela sua profundidade e desenvolvimento, distancia-se claramente de publicações dotadas do mesmo propósito, de que se pode referir o interessante Como Nasceu a Portuguesa, da autoria de Teixeira Leite, ou brochuras de divulgação, como: Os Símbolos Nacionais (editada em 2004 pelo Museu da Presidência da República); Bandeiras de Portugal ou Os Nossos Símbolos (das juntas de freguesia de São João de Brito e de Santa Maria de Belém, de 2004 e 2006, respectivamente); ou Bandeiras Portuguesas… Bandeiras de Portugal (de 2000, promovida pelo Museu República e Resistência da CML). Doravante, os leitores têm à sua disposição uma súmula desenvolvida e muito informada – escrita, ademais, numa linguagem clara, simples e directa – sobre os símbolos nacionais portugueses. Um livro oportuno e feliz, que atinge plenamente os seus objectivos.
         Resta saber, todavia, se os símbolos nacionais atingem sempre os seus objectivos integradores. A Constituição do Nepal vai ao ponto de especificar a flor, o animal e a ave nacionais, que são, respectivamente, o Rhodondendron Aroboreum, a vaca e o Lophophorus. Em 2013, foi eleita uma assembleia constituinte para elaborar uma nova lei fundamental. No início deste ano, registaram-se violentos e sangrentos confrontos em torno da nova Constituição. Meses depois, em Abril, um terramoto arrasava tudo, causando milhares de mortes. No momento em que são escritas estas linhas, chegam notícias de que, por causa do sismo de Abril, os partidos nepaleses alcançaram um entendimento sobre a futura Constituição do país. A acção da Natureza é sempre mais forte do que a teimosia dos homens – e dos símbolos que ornamentam o seu poder efémero.
 
António Araújo
 
 
P.S. - uma versão ligeiramente resumida deste texto saiu no jornal Público/Ípsilon, aqui.