terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Damião de Góis.

 



 

Há exactamente 450 anos, neste mesmo dia, morreu Damião de Góis em Alenquer. Ou então morreu há 452 anos, também a 30 de Janeiro, numa cela do Mosteiro da Batalha. Não se sabe ao certo.  

Já sobre a vida dele sabe-se muito. Mas por péssimos motivos: é que este intelectual português foi obrigado a relatar a sua vida em detalhe perante a Inquisição. Não uma, mas duas vezes. E em ambas foi condenado. 

O que fez ele para merecer o castigo do Santo Ofício? Deu-se com algumas das principais figuras do humanismo cristão (Erasmo e Thomas More, entre outros) e do protestantismo (Lutero e muitos mais), defendeu os cristãos coptas da Etiópia, quis uma Igreja que acolhesse as diferentes práticas do cristianismo. Numa época de Reforma e Contra-Reforma, com Portugal tão alinhado que até uma Inquisição tinha para punir os hereges, a tolerância de Damião de Góis não foi propriamente bem-vinda. 

A sua abertura a todos os crentes da “verdadeira fé” não o salvou da Inquisição (muito pelo contrário). Nem os seus escritos elogiosos da expansão marítima e cristã o salvaram. Nem o facto de pertencer à alta aristocracia portuguesa. Nem os muitos anos como diplomata e secretário da feitoria portuguesa em Antuérpia. Nem o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo. Nem a encomenda régia de uma crónica sobre Dom Manuel – nada disso o salvou da Santa Sé. Quando muito, salvou-o de ser executado. Mas não o salvou de viver boa parte dos seus últimos 30 anos quer na prisão, quer a defender-se no tribunal da Igreja, quer a receá-lo. 

Que contraste, que imenso contraste entre esses últimos 30 anos num Portugal tão negro e os 20 anos anteriores de trocas comerciais e intelectuais em Antuérpia, estudos universitários em Louvain e Padova, muitos manuscritos publicados, meses a viver com Erasmo e a debater com outras das mentes mais brilhantes do seu tempo entre Bélgica, Holanda, França, Alemanha, Rússia e Itália! 

É precisamente para lembrar esse contraste entre escuridão e luz que existe hoje, na terra natal deste humanista (um dos poucos da história de Portugal), um Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição. É pequeno, mas bem pungente, esse museu situado na Calçada Damião de Góis, em Alenquer. 

 


                                                                                         Rui Passos Rocha



 


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

São Cristóvão pela Europa (252).

 

 

Ainda no departamento de Indre et Loire, pertencente à Região francesa de Centro-Vale do Loire, estive em Villiers au Bouin.

A Igreja dedicada a São Pedro tem uma fachada e uma torre sineira muito originais, datando do Século XV.

No interior um fresco em mau estado e uma imagem de São Cristóvão.

 




  

 

Na Região de Nova Aquitânia só visitei a igreja de Nossa Senhora de Antigny no departamento de Vienne.

É uma notável igreja românica do Século XI. No interior, excelentes frescos do Século XIV descobertos em 1990. Entre eles o que representa São Cristóvão. Tem uma característica invulgar: Jesus Cristo é representado como adulto.

 




 

 

 

                                                        Fotografias de 26 e 27 de Outubro de 2023.

 


                                                                            José Liberato



Mumadona Dias.


 



A história que os manuais nos contam sobre Portugal tem algumas figuras centrais, como Dom Afonso Henriques, o infante Dom Henrique e Vasco da Gama. E tem também personagens secundárias, cujo propósito maior é engrandecer as personagens principais. A narrativa dominante sobre Dona Teresa, o infante Dom Fernando e Bartolomeu Dias reduz os seus feitos a isto: traidora, mártir cristão e aventureiro dos mares. Essa narrativa nacionalista e imperialista, muito disseminada pelo Estado Novo, perdura até hoje. 

E depois há figuras secundárias que, não tendo sido contemporâneas dos grandes heróis, entram na narrativa de forma rebuscada: Viriato a mostrar a índole lusitana, de que supostamente descendemos; Dom Dinis a lavrar o pinhal de Leiria, como que prenunciando as caravelas; e Mumadona Dias a erguer o castelo onde, diz-se, nasceu o primeiro rei de Portugal. 

Nos sete anos do seu governo, Mumadona teve de se haver com vikings na costa, com muçulmanos entre o Mondego e o Douro e, certamente, com os condes galegos e o rei de Leão. Mas tudo isso, tanto quanto se sabe, também foi o pão diário dos outros condes portucalenses da época. Então, porque a lembramos mais do que a eles? 

O que cola Mumadona às narrativas nacionalistas é o acaso de Dom Afonso Henriques ter ascendido ao poder em Guimarães. Porque foi ela quem fundou esse burgo, num testamento assinado a 26 de Janeiro; porque calhou ser no castelo de Guimarães, por ela mandado erguer, que século e meio depois Dom Henrique e Dona Teresa assentaram o poder de Portucale; porque foi também nesse castelo que, diz-se sem provas, nasceu o seu filho Afonso, o tal que é personagem principal; e porque foi no campo de São Mamede, que a lenda coloca junto ao castelo, que Afonso guerreou e venceu a mãe “traidora”. 

É essa ligação tortuosa ao primeiro rei que explica a memorialização de Mumadona. Fundadores de cidades há muitos, narrativas e estátuas sobre eles é que são bem menos. E Guimarães tem ambas. Bem no centro do Largo da Condessa Mumadona, uma estátua da fundadora, inaugurada em 1960, põe-lhe a cruz de Cristo numa mão e uma miniatura do castelo na outra. O olhar, esse, está posto na colina do castelo. Porque foi isso o que verdadeiramente interessou a quem “inventou” Mumadona. 

 

                                                                            Rui Passos Rocha

 


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Argélia: o tempo da fraternidade? (7).

 

 

 

A Casbah de Argel é o centro histórico da cidade.

O seu nome deriva da Cidadela que a encima e que já foi referida no anterior post.

Trata-se de um emaranhado de ruelas onde se podem observar inúmeros exemplos de arquitectura islâmica antiga.

Na Guerra da Argélia, que antecedeu a independência, desempenhou um papel fundamental como refúgio dos combatentes argelinos, ficando célebre a sua habilidade para saltar de edifício para edifício pelos telhados, embora esses saltos nem sempre tenham sido bem-sucedidos.

Não obstante manifestar indícios de degradação, integra o Património Mundial da UNESCO desde 1992.

Ainda existem na sua parte superior, ruínas das muralhas que a protegiam de investidas vindas de terra.

 








 

Voltarei à Casbah no próximo post.

     

                                                                Fotografias de 17 de Outubro de 2023. 


                                                                                        José Liberato




segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Henrique Galvão.



 




Não se fala sobre Henrique Galvão no Portugal democrático. O militar que escreveu um longo relatório sobre as condições laborais em Angola (pessoas transportadas como gado – palavras dele – para trabalho duríssimo e quase gratuito, sujeitas a punições físicas pelos mais pequenos erros), que apoiou dois candidatos presidenciais contra Salazar e que foi preso por planear uma revolução contra o Estado Novo. 

Mais do que isso, Galvão ficou famoso por ter desviado o cruzeiro Santa Maria. O navio português, que se dirigia aos EUA com tripulantes daquele país, estava atracado na costa venezuelana quando Galvão e outros setenta embarcaram, disfarçados, e se apoderaram do leme (num dia 22 de Janeiro, como hoje). Durante duas semanas, os piratas, como o governo português lhes chamou, levaram o navio para Sul, comunicando aos media dos EUA que apenas queriam alertar para a podridão da ditadura portuguesa. 

O problema é que Henrique Galvão foi um opositor manchado. Anos antes, tinha participado no sidonismo e no 28 de Maio, tinha sido deputado à Assembleia Nacional e um dos principais organizadores das exposições coloniais, de que ainda podemos ver, no espaço público de hoje, o Monumento ao Esforço Colonizador Português (no Porto) e o Padrão dos Descobrimentos (em Lisboa). Admirava regimes autoritários e conservadores, era um anti-comunista ferrenho e um colonialista irredutível (concebeu o mapa do “Portugal não é um país pequeno”).

 

Em suma, Galvão não almejava propriamente uma democracia liberal. Queria substituir Salazar por outro “homem forte” (ele próprio?) que, acima de tudo, trouxesse desenvolvimento económico às colónias. Quanto à autodeterminação dos colonizados, podia esperar. Sentada.

 

É por isso que, apesar do muito que arriscou para destronar Salazar, Galvão é uma figura pouco apreciada hoje. Vivemos num regime democrático, anti-colonial e com dois partidos marxistas no Parlamento, tudo coisas que ele repudiaria. E é também por isso que, se procurarmos Henrique Galvão no espaço público, não encontraremos qualquer estátua em sua homenagem ou qualquer topónimo mais relevante do que rua ou travessa. Com uma única e honrosa excepção: a da Avenida Henrique Galvão, no Barreiro, onde nasceu.

 

 

                                                                        Rui Passos Rocha


Carta de Bruxelas.


 



Olhos nos olhos


As execuções capitais ofendem a sensibilidade contemporânea nas democracias ocidentais, e não só. O acto de matar deve ser realizado administrativamente, intra muros, nas instituições judiciais. Como pena judicial, é um momento previsto oficialmente, a ser resguardado dos olhares públicos. Além dos carrascos, podem assistir, por vezes, a família do criminoso ou as vítimas dele. Uma coisa é certa, não se aceita a execução como espectáculo social, nem momentâneo para o qual se alugavam janela em casas privadas ou se levavam crianças, muito menos como essas quase procissões que eram os autos da fé, pormenorizadamente organizados pela Inquisição, com a sua etiqueta solene e precedências rigorosas; tudo pontuado por uma sólida sucessão de episódios dramáticos. Não se pretende, em tais casos, morigerar; faz parte da execução dar o exemplo, sem dúvida. Mas o essencial não reside nisso. O castigo reabilita o criminoso, confere-lhe um lugar na comunidade cujas leis ofendeu. A solidão da morte é uma solidão com os outros. Está entre os seus, que são dele testemunhas. Não se trata apenas de uma coesão religiosa ou ideológica, com o poder definitivo de um ferrolho corrido. Recordam os historiadores que os condenados à morte, na sequência das purgas levadas a cabo na França revolucionário pelo Comité de Salvação Nacional, se preocupavam com a sua aparência e porte, as palavras que dirigiriam à multidão, a sua a conduta no momento de subir ao patíbulo. Para lá de todas as divisões resta sempre a comunidade humana que exorbita Estados, classes ou costumes.

Num pequeno relato, publicado presumivelmente em 1946 ao regressar do cativeiro, o romancista belga Joseph Wilkens, refere a propósito dos enforcamentos que os prisioneiros eram obrigados a presenciar: «Reunidos na praça da chamada, assistíamos impotentes ao assassínio dos nossos camaradas. As vítimas tinham de aguardar a sua vez. Minuto de sofrimento atroz, ver perecer de uma morte horrível, um amigo, até um familiar, e saber que, chegada a nossa vez, sofreríamos a mesma sorte. O supliciado procurava na multidão dos forçados um rosto amado e punha num derradeiro olhar toda a eloquência de um adeus supremo.» Não por acaso, o trecho provém de um capítulo intitulado O desprezo da morte. `O sistema concentracionário roubava à morte o seu carácter humano, precisamente por não reconhecer na morte um acto humano mas antes a eliminação de algo que definia a priori como infra-humano – os Untermenschen. O olhar em que Wilkens descobre o adeus supremo é um adeus de condenado a condenado, que pretende ser um adeus de homem a homem, lembra sem esperança, na palavra emudecida, já incapaz de um apelo, a humanidade comum. 

 

                                                                    João Tiago Proença

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Rotunda de São Bernardo.





 

Há coisa de 850 anos, também num dia 18 de Janeiro, o Papa canonizou Bernardo de Clairvaux. E o que é que eu tenho a ver com isso? - pensam vocês. É que este santo da actual França teve um papel determinante na independência de Portugal. 

Bernardo nasceu numa família aristocrata, o que, historicamente, já era meio caminho para chegar a santo. Apenas três anos depois de entrar na ordem de Cister (com mais 30 familiares e amigos), recebeu aval para fundar uma abadia em Clairvaux. Aí, nos anos que se seguiram, os seus escritos, regra monástica e lista de contactos atraíram muita gente. Inclusive o futuro Papa Eugénio III. 

Eugénio III tornou-se Papa em 1145. No ano seguinte, pediu a Bernardo que pregasse a cruzada contra os muçulmanos. O discurso deste perante as ordens militares ficou para a História: disse-lhes que Deus estava zangado com a cristandade por permitir o avanço dos infiéis e garantiu que quem fosse combater teria a eternidade no Paraíso. Resultou. Ao longo dos séculos seguintes, o espírito de cruzada e guerra santa foi muito forte. 

Cá no rectângulo, Dom Afonso Henriques andava há anos a combater os almorávidas entre Coimbra e Leiria. Em 1147, pediu ajuda de cruzados para tentar tomar Santarém e Lisboa. Foi então que prometeu a Bernardo de Clairvaux (borgonhês tal como o pai de Afonso) ceder 44 mil hectares de território a Cister se Santarém passasse para mãos cristãs. Vieram charters de cruzados, claro. 

Santarém caiu e, logo a seguir, o território do actual concelho de Alcobaça, mais coisa menos coisa, passou para as mãos de Cister. A ordem religiosa englobou esses terrenos no seu vasto sistema de produção e comércio agrícolas, que ia de Portugal à Suécia, aproveitando a muita mão-de-obra gratuita (os camponeses trabalhavam para comer). Cister continuou tão poderosa que Bernardo se manteve influente no Vaticano. E essa influência (mais os rios de dinheiro que Dom Afonso Henriques enviou ao Estado papal, vá) foi fundamental para que, em 1179, o Papa declarasse a independência de Portugal. 

Em Alcobaça, a Ordem de Cister ergueu um mosteiro imponente, símbolo da vitória de Portugal sobre os mouros. A poucos metros do Mosteiro de Alcobaça, e voltada para ele, pode ver-se uma estátua em honra do santo, numa rotunda que leva o seu nome: a 𝗥𝗼𝘁𝘂𝗻𝗱𝗮 𝗱𝗲 𝗦𝗮𝗼 𝗕𝗲𝗿𝗻𝗮𝗿𝗱𝗼. 

 

 

                                                                                       Rui Passos Rocha  


São Cristóvão pela Europa (251).

 

 

A Igreja de Saint Christophe sur le Nais, no departamento francês de Indre et Loire, agrega na realidade duas igrejas gémeas, uma monacal e outra paroquial. Foram construídas entre os Séculos XII e XVI e reunidas em 1700.

A igreja está repleta de imagens de São Cristóvão. Diz-se que são onze no total! Mas concentremo-nos nas mais importantes.

A mais espectacular é um baixo-relevo gigante do Século XVIII da autoria de um artesão lol chamado Roquentin.

No altar-mor, um São Cristóvão em terracota policromada.

Noutro altar, consagrado à Ascensão de Jesus Cristo, a imagem do nosso Santo está colocada no alto.

Noutro altar ainda, uma bela tela representando São Cristóvão.

Um relicário está colocado na parede.

E finalmente, um vitral numa rosácea.

 













 


                                    Fotografias de 26 de Outubro de 2023.

 

                                                                        José Liberato

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Imperadores.

 




Foi num dia 16 de Janeiro que Augusto se fez imperador e assim criou o Império Romano. Por cá, foi o culminar de séculos em que Roma “pacificou” à força os lusitanos e os outros povos ibéricos – uma gente incivilizada que não queria a paz.

Sabemos o que se seguiu: estradas, termas e villas; leis e administração; cidadãos de primeira e de segunda; recursos minerais extraídos até ao tutano; e o poder político lá longe. Mais ou menos o que Portugal depois fez nas ex-colónias. Aprendemos a civilizar com os melhores.

Uns bons dezoito séculos depois do nascimento do Império Romano nasceu um outro império, mais pequeno em escala, mas não em sonho: a vila de Manique do Intendente, com 2000 habitantes (à data e também hoje), entalada entre a serra de Montejunto e o Tejo. A povoação azambujense já existia, mas Dona Maria II achou boa ideia renomeá-la, fazer dela concelho e assim honrar Pina Manique, que lá tinha morgadio.

Pina Manique também achou boa ideia. Assim que se viu com uma vila nas mãos, contratou arquitectos e idealizou a sua Manique do Intendente com uma grande praça hexagonal, ladeada por edifícios em estilo neoclássico, com um pelourinho ao centro e cinco longas ruas a projectarem-se da praça para os concelhos vizinhos. Cada rua com o nome de um ilustre romano: Sertório, Júlio César, Augusto, Trajano e Justiniano.

Dois séculos depois, resta o pouco que se construiu naqueles anos: as ruas com os nomes romanos, que iam ser longas, têm meia dúzia de metros e não levam a lado nenhum; e dos edifícios neoclássicos fez-se apenas o da Câmara Municipal, visível na imagem. Nesse edifício funciona hoje um centro de dia, porque a vila já não é concelho, nem sequer freguesia, apenas parte de uma união de freguesias.

Ali perto, resta também a fachada do palácio que Pina Manique mandou erguer, mas que assim ficou, pela fachada e pouco mais, quando ele morreu.

Esta é a ordem natural das coisas: desaparecer e virar fachada. Tal como desapareceu o Império Romano, subsistindo hoje nessa modesta fachada que é a 𝗣𝗿𝗮𝗰̧𝗮 𝗱𝗼𝘀 𝗜𝗺𝗽𝗲𝗿𝗮𝗱𝗼𝗿𝗲𝘀 𝗱𝗲 𝗠𝗮𝗻𝗶𝗾𝘂𝗲 𝗱𝗼 𝗜𝗻𝘁𝗲𝗻𝗱𝗲𝗻𝘁𝗲, um hexágono com 300 metros quadrados no meio do nada.

 

                                                                                       Rui Passos Rocha






terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Argélia: o tempo da fraternidade? (6)

 

 

 

A Cidadela de Argel é a fortaleza que, construída nas alturas, domina a cidade.

Terminada em 1518 por um corsário turco, só em 1818 a principal autoridade otomana, o dey de Argel, aí se instalou.

É na principal sala da Cidadela que se desenrolou a célebre cena do Coup de l’éventail ou o Golpe do leque.

Em 30 de Abril de 1827, o dey de Argel recebeu em audiência na Cidadela o Cônsul de França. Na conversa entre os dois a propósito de uma dívida da França, o Dey aproximou o seu leque demasiadamente próximo do rosto do Cônsul. O gesto foi considerado por este como uma ofensa à França.

O Rei de França, Carlos X à época, deu logo instruções para se planear uma retaliação de forma a reparar a honra do país. A invasão iniciou-se em 4 de Julho de 1830 e deu origem a uma ocupação que durou mais de 130 anos. No entanto, Carlos X foi forçado a abdicar a 2 de Agosto não beneficiando da “glória” do êxito militar.

A Cidadela encontra-se em trabalhos de restauro e não é normalmente visitável.

 






 

Perto situa-se a Prisão de Serkadji, tristemente conhecida pela sua sinistra actividade antes da Independência mas também depois.

 


 

 

                                                Fotografias de 17 de Outubro de 2023

 

                                                                                       José Liberato







sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Os Últimos do Estado Novo, por José Pedro Castanheira.

 



 


 

O jornalista José Pedro Castanheira, com uma notável carreira profissional, explica de forma meridiana na apresentação deste seu livro a essência de Os Últimos do Estado Novo, Tinha da China, 2023:

“Já reformado, a organizar o meu arquivo, verifiquei, com algum espanto, que tivera oportunidade de conhecer e fazer um trabalho jornalístico com e sobre alguns dos principais derrotados do 25 de Abril – o último diretor da Censura, o último presidente do Partido Único, o último responsável pelo campo de concentração do Tarrafal, os membros do último Governo da ditadura, o último secretário particular de Marcello Caetano, o seu último porta-voz. Paralelamente, tivera o ensejo de fazer reportagens em torno de episódios e acontecimentos marcantes, precisamente por terem sido os últimos do género a ocorrer durante a ditadura: o último deportado, os últimos presos políticos, a última entrevista concedida por Oliveira Salazar. E pensei que faria sentido reunir todos estes trabalhos e publicá-los em livro.” E faz comentários sobre a natureza de entrevistas e entrevistados, ficam algumas pontas de mistério, seguramente não haverá resposta para o conteúdo da documentação que Alexandre Carvalho Neto, secretário pessoal de Marcello Caetano, destruiu na residência de S. Bento, no cumprimento das instruções dadas pelo deposto presidente do Conselho de Ministros. E o leitor que se prepare para uma viagem que tem pouco de nostálgica, permite um sem número de clarificações e, impressão minha, da própria sensibilidade manifestada pelos entrevistados, há mais reconciliação que ressabiamento pelo fim do regime ditatorial.

Eduardo Vieira Fontes, diretor do “campo de trabalho” do Tarrafal, abre as hostilidades, um cabo-verdiano que nunca quis a nacionalidade cabo-verdiana, que guarda recordações amenas de Amílcar Cabral e do seu trabalho em Angola, que considera ter agido com elevado sentido do dever no Tarrafal, reaberto em 1961, a PIDE criticava muitos dos seus procedimentos para com os presos, durante a entrevista mostra testemunhos de detidos, francamente favoráveis para a maneira como conduzia a vida no campo. “Nunca mais voltou a Cabo Verde, mas vinha quase todos os anos a Portugal. Faleceu nos EUA, em East Providence, em 9 de novembro de 2021, escassos meses após a morte da mulher. Tinha 99 anos.”

Não menos interessante é a reportagem sobre os últimos presos políticos, tudo se passou em abril de 1974, ficamos a saber quem e porquê foi detido. O mesmo se dirá do último Governo da ditadura, há para ali aspetos curiosos de escolhas de ministros e secretários de Estado, e há o depois do 25 de Abril. Pedro Feytor Pinto, que teve uma intervenção direta nos acontecimentos do 25 de Abril dá-nos as suas impressões sobre aspetos da governação de Marcello Caetano, o seu relacionamento com os liberais, os bastidores da oposição ao Governo dentro do regime, o que se passou depois da queda da ditadura. Não deixa de causar estranheza certas afirmações de Alexandre Carvalho Neto, foi secretário particular de Marcello Caetano e antes ocupara um cargo semelhante junto de Spínola na Guiné, não só diz inverdades como destrata quem não se pode defender, isto quanto à Guiné. Que antes de Spínola havia a iminência de uma derrota militar, que Schulz foi destituído e que ainda regressou a Bissau para empacotar os serviços de prata do Palácio de Bolama. Acontece que a guerra não estava perdida nessa época (1968), que Schulz não foi demitido, cumprira quatro anos na governação e como comandante-chefe e interrogo-me como era possível um governador trazer pratas de um palácio que estava em ruínas, fora abandonado em 1941, impensável deixar ali pratas, enfim, tricas com uma pontinha de maledicência, resta saber para quê. E ficamos a saber que ajudou Marcello Caetano a instalar-se no Rio de Janeiro.

O leitor jamais ficará dececionado com este repositório de entrevistas onde iremos ver discorrer Elmano Alves, o presidente da última comissão executiva da Ação Nacional Popular, Mário Bento Soares, o último diretor da Censura, o autor entrevistará o jornalista francês Roland Faure que entrevistou Salazar quando este já não era o homem todo-poderoso e vivia debilitado em S. Bento, a Censura cortou a entrevista, para o regime marcelista era totalmente inaceitável que os nostálgicos ouvissem Salazar dizer coisas como: “Conheço bem Marcello Caetano. Foi várias vezes meu ministro e aprecio-o. Ele gosta do poder: não para retirar quaisquer benefícios pessoais ou para a família; é muito honesto. Mas gosta do poder pelo poder. Para ter a impressão exaltante de deixar a sua marca nos acontecimentos. É inteligente e tem autoridade, mas está errado em não querer trabalhar connosco no Governo. Porque, como sabe, ele não faz parte do Governo.”

O leitor será confrontado com o relacionamento de Salazar com o major Silva Pais, o último diretor da PIDE, as matérias que tratavam, as informações que a PIDE fazia chegar a Salazar não só sobre acontecimentos internos como internacionais, fica perfeitamente claro que o ditador soube do assassinato do general Humberto Delgado com todos os pormenores, dando depois em discurso uma versão totalmente descabelada, atribuindo a tensões entre oposicionistas, atribuindo à oposição o crime. Iremos ler os acontecimentos da deportação de Mário Soares em S. Tomé e Príncipe. E o livro termina com uma reportagem de acontecimentos muito pouco conhecidos e praticamente não tratados pela historiografia, os sindicatos corporativos, afetos por natureza ao regime, mas que estavam em ebulição e mesmo em rutura com o então subsecretário das Corporações não só dado o agravamento do custo de vida, como os penosos horários de trabalho e salários bloqueados. Iremos viajar ao último plenário destes sindicatos, haverá reuniões com Salazar e uma reunião desse plenário no Coliseu dos Recreios. É nesse plenário que os dirigentes sindicais divulgarão o teor de uma mensagem entregue a Salazar a que o ditador fez 23 cortes e alterações no texto que lhe entregaram. O ditador será sócio honorário de 300 sindicatos. E diz-se no último plenário dos sindicatos corporativos por que a máquina corporativa sofrerá alterações de fundo com o fim da Segundo Guerra Mundial e com a agitação política trazida pelo Movimento de Unidade Democrática. Gota a gota, elementos de oposição irão infiltrando-se nos sindicatos, a aliança com a governação irá desaparecer.

Esta coletânea de entrevistas é uma preciosidade, ajuda a compreender mentalidades dominantes do salazarismo e do marcelismo e como a ditadura não ofereceu resistência a quem vinha trazer as liberdades, o desejo de viver em democracia e pôr fim à inconsequente guerra colonial.


                                                                                    Mário Beja Santos